segunda-feira, 29 de outubro de 2012

crônica remix - sanduíche


Xis tudo de queijo
Poucas situações me deixam tão categoricamente desconcertado quanto comer um sanduíche em público. Para mim, é sempre um desafio, uma superação. Ainda mais estes de agora, grandões que não tem nem como a gente abarcar. Fazer um lanche, zelando pelos conceitos mínimos de educação é comprovadamente impossível, mas a garotada dá o maior valor num sanduichão e a gente que é pai, ó, embarca...
Tudo começa na hora do pedido. Aviso logo aos meninos, para nos determos nos despretensiosos. Nada de espécimes no superlativo. Se os simplesinhos já dão um trabalho no manuseio, que dirá os gigantões. Sugiro uns exemplares da família do ‘Xis’ (que, segundo a minha filha, quer dizer queijo em inglês, e não é xis, pai, é cheese). Ah, tá.
Então, mãos à obra. O arranjo, fumegante, me chega abrigado numa cestinha e vestido em um plastiquinho todo molenga. Examino, movimento o sanduíche entre as mãos buscando um lugarzinho menos quente para aprumar o tato e um espaço mais ou menos organizado, limitado pelas duas fatias de pão em que eu possa, com confiança, dar a primeira mordida. Dimensiono a amplitude da mordedura (nessa hora, lembro aos meninos a reportagem da TV que mostrava aquele bichinho da Tasmânia e contava que ele tem, proporcionalmente, a maior abertura de boca entre os mamíferos. Com os incisivos a postos, deduzo que esse povo da TV não, ainda não mediu um sapiens devorando um fast-food muito dos seus porrudo), inclino o xistanic uns 30 graus, assim, para bombordo, miro num vértice ornado por uma folhinha de alface e preenchido por um riozinho de maionese e ketchup, fecho os olhos e ataco.
O resultado desta primeira investida foi uma casquinha amarelinha de milho escorregando pela bochecha e se acomodando soberana, na parte mediana do meu queixo; uma pinta ridícula de molho rosé na ponta do nariz; um patético desenho de especiarias nas reentrâncias do bigode; e a boca cheia, tentando articular um pedido para que alguém, pelo amor de Deus me socorresse com um ‘lenfinho’ de papel.
Os meninos, nem aí.
Percebi que vigora um acordo tácito neste ritual bizarro de atacar um sanduíche. Os comensais, parece que reconhecendo a indelicadeza da coisa, fecham-se em si. Impõem-se o fim único de destruir aquele conjunto calórico. E, alheios aos anteparos sociais, retornam alguns milhares de anos na história e deixam-se dominar pelo instinto. Sucumbem aos tiques primitivos, aos lambuzeios neandertalenses. A palavra, falada, é claro, dá lugar somente a alguns grunhidos e todos, objetivando única e exclusivamente, mais um chumaço de ‘lenfinhos’. Eu, besta que não sou, segui o bonde. Baixei a cabeça e esqueci do mundo. O intervalo permitido nesta batalha é destinado somente a um gole de refri, para dar aquela força na ingestão. E depois, é vapt, vapt, vapt...
Uma reflexão, milagrosamente, de vez em vez, interrompe este sistema caótico e desperta a mente para um detalhe extraordinariamente lógico: há uma indicação nítida de que tem pouco pão, para muito recheio. E esta observação vai se avolumando quentinha, bem naquela quinazinha da embalagem plástica.
Ao final da aventura, não tive coragem, como fizeram os meninos e todos os outros que estavam na lanchonete, de virar o plastiquinho do avesso e, sem remorsos, comer aquele cuizinho acumulado na dobra (eu, hein! Sou um cara de responsa, mas que deu vontade de levar aquela sobrazinha pra casa e comer com farinha, ah, isso deu). Mas como os outros, estava todo breado, reivindicando uma redentora sensação de adstringência nas mãos. A fila do lavatório, por sua vez, estava um horror, e tive que me contentar com mais uns ‘lenfinhos’. Aliás, segundo uma pesquisa da Universidade de Harvard, comer sanduíche na rua é a atividade humana que mais consome lencinho de papel.
Não duvido, não. A cestinha ficou por acolá mesmo.


sábado, 27 de outubro de 2012

crônica da semana - farinha


Quando Deus dá a farinha...

Vez sim, vez não, me pego de olho nas coisas do mundo em busca de simetrias. É um costume que tenho, mas não é uma piração total, não. Digamos que é um sestro comedido. Um viciozinho que se desencadeou depois que fiz uma disciplina no curso de Geologia que identificava e classificava a semelhança entre as faces dos minerais. A natureza abriga múltiplas formas e este jeitinho de ser está presente em todos os componentes da criação (não só dos minerais). Lá nas aulas de laboratório, nos pegávamos com uma série de minerais, posicionávamos o cristal entre os dedos, virávamos para um lado, para o outro, inclinávamos, desvirávamos, rotacionávamos verticalmente, horizontalmente...Era um exercício de percepção numa busca metódica por faces iguais. 
Daí, que eu saía da aula de Mineralogia e ficava com aquela coisa no cocuruto. Esbarrava com uma árvore, fazia a rotação possível e apreendia a simetria dela. Procurava simetria nas pessoas, nas casas, nos postes, nos cachorros da esquina, nos móveis da casa, nas peças eletrônicas, nos caderninhos de anotações, nas escovas de cabelo, de dente; nos sorvetes de uma bola, nas moedas de um Real, nos relógios de parede, nas cestas de lixo reciclável, na carteirinha de meia-passagem, nos óculos do camelô, nos barcos ancorados na foz do Piry, nas janelas da Casa das Onze Janelas, no busto (bastante assimétrico) do Camões, nas naves da Sé, nas panelas empretadas de tisna, no ovo cozido, no copo de vinho, nas estátuas das praças e das lojas de 1 e 99, nos semáforos e nas placas de pare. Nos carrinhos de mão dos operários da construção civil e em alguns prédios da alta burguesia belemense... 
Porque a simetria, na vera, é a repetição das partes de desenhos ou de contornos iguais de entes e objetos que formam o nosso mundo. Pode ser conforme, com a reprodução aparentemente idêntica da forma; ou inversa (no ser humano, as mãos são um exemplo extraordinário de simetria inversa: são iguais, mas são diferentes). Para dar um exemplo bacana, podemos nos acudir na funcionalidade do cubo, este de gelo mesmo que temos à mão para o uisquinho, que é uma forma geométrica de alto grau de simetria ou podemos também sucumbir aos encantos do jambeiro que é uma árvore de uma combinação encantadora (a gente arrodeia a lindinha e é sempre aquela sensação verde de harmonia e beleza). 
Até hoje faço isso. E assim, observando, examinando, refletindo, combinando, fui descobrindo que na verdade, na verdade, a simetria é apenas uma busca. Ela, não vinga em plenitude. Na real, ela não existe. O universo, como dizem os estudiosos, é elegantemente assimétrico. 
Não há motivo, porém, para decepção. Não exigimos a perfeição. Aliás, o que move o mundo é a descompensação, a descontinuidade, mesmo que nanométrica. A verdade vem da contradição, do conflito, asseverava Marx. 
A sabedoria popular, inclusive, reconhece as assimetrias de forma prosaica quando reconhece que “quando Deus dá a farinha, o Diabo vem e leva o saco”, ou seja, considera a estabilidade uma utopia; o dizer do povo entende ser a vida tranquila e sem traumas, uma ilusão. 
No meu primeiro livro, diligenciei no rumo do povo, afirmando que temos sempre uma oração coordenada adversativa no nosso caminho: “o cidadão comprou fogão novo? Comprou, mas veio com problema”. 
No muito que podemos crer é que as formas e os conteúdos se disponham aparentemente iguais. O mais aparentemente igual possível, compõe a maior simetria. E com isso, com esta certeza, nos havemos na vida, observando, examinando, buscando...desigualdades e contradições. 

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

crônica remix-o artesão

Sobre O Artesão e Sonhos
Quero falar das maravilhas que se encerram em O Artesão dos Sonhos, conto agraciado com a Menção Honrosa no IX Concurso de Contos da Região Norte, promovido pela UFPA.
Uma tragédia ribeirinha costurada com os tenazes fios do suspense e matizada com o gracioso lirismo caboclo. Um drama centrado na (desconcertante) imagem do artesão Cazuza exposta em silencioso recorte de jornal.
Quero dizer da belezura que é o texto de O Artesão... quando revela, em passagens elegantemente elaboradas, as dores causadas pela morte de Cazuza. Mas não tenho a pretensão de me esmerar em viagens explicativas para a obra, mesmo porque, por ser iluminado pelos fachos de Zé Fogueteiro, o conto explica-se por si.
Convido as pessoas de bom coração, portanto, a lerem o conto. Ele faz parte da coletânea publicada pela UFPA em edição que pode ser encontrada no campus do Guamá e no Núcleo de Artes, na Praça da República.
O conto expõe, sutilmente, um mosaico de emoções arquitetado no palavreado que vinga na baixa do Tocantins.
A autora, Neusa Rodrigues, mira-se no espelho do dialeto abaetetubense e se arvora por um caminho que vai muito além do proselitismo da língua. Assim, nos brinda com impressões, com imagens, com dores e sabores. Neusa na literatura, é cor, é som, é luz. É quase cinema.
E ali, nos dizeres dos personagens, nas onomatopéias da vida, ali, eu vi Cazuza riscar o miriti com precisão, e ali, vi o charme do dialeto afrancesado, e ali, como todo crente, eu vi a ilha da Pacoca virando um mundo encantado de luz. E ali, eu vi, na morte do artesão Cazuza, que sonhos, não se resgatam. Sonhos se conquistam, se realizam. E vi também, que o som da esperança: Fiásss...Pei! Pei! Pei! O foguetório da vida, pelo menos para nós, que escrevemos sobre ela (mesmo quando falamos sobre a morte), Fiásss...Pei! Pei! Pei! Ele, o espocar dos sonhos, encanta exatamente, por vir liberto das aspas.
Em O Artesão..., Neusa faz referências a modalidades particulares de utilização da linguagem, ao acervo histórico, religioso, aos costumes de nosso povo, em medidas, de tal grau envolventes, que nos transportam para as cenas. Esta prática literária, por vezes, é rotulada de Resgate Cultural. Um tipo de classificação que, fiel às nossas travessuras lingüísticas, eu ‘disconcordo’. Porque, ora, ora, só se resgata, só se recupera, aquilo que se perdeu. E nós, não perdemos absolutamente nada. O Artesão... nos mostra isso.
Não perdemos, e nem perderemos. A nós, que tratamos com os ‘causos’, com a história (não aquela desgastada, no passado, mas esta aqui, viva no presente e promissora, no futuro). A nós que utilizamos a palavra como forma de resistência e como garantia de felicidades, de amores, de prazeres, canto e música, a nós, não nos cabe resgatar. A nós, nos cabe viver, e quem sabe, sob a leveza e o colorido das peças de miriti do artesão Cazuza.
É bater e ver. Quando leio (e eu leio, leio, releio...) O Artesão dos Sonhos, sinto um orgulho danado de ter sonhos com as cores e o sotaque do paraense da beira.

sábado, 20 de outubro de 2012

crônica da semana - motocicletas


Mickey Rourkes papa-chibés.

O comentário que ouvi até que não é de todo maldoso. Concordo mesmo que esta prodigalidade de procissões que orbitam o Círio de Nazaré está no limite. Não tão radicalmente ao ponto de dizer que “até shopping faz procissão”, mas periga. 
As caminhadas, as procissões tradicionais, os encontros nas casas, são intervenções sociais de impacto na quadra nazarena. Compõem o mosaico indispensável de religiosidade e fé. Enriquecem o momento, desenham o mês de outubro com outros traços, senão os do cotidiano. Sou simpático a todas, inclusive a dos motoqueiros. Mas... 
Sei que naquela que é, para mim, a grande oportunidade de estar junto à Santa, fui impelido à renúncia não só pelo ronronar feroz das motocicletas, pois deste barulho, já estava até íntimo, mas desta vez, também pela afronta teti-a-teti. Fui, literalmente, empurrado para a margem da Presidente Vargas, na chegada da Romaria Fluvial, pelos Mickey Rourkes papa-chibés. 
Do que lembro, as motos sempre existiram, e participaram no acompanhando da Santa, na chegada da Fluvial e a seguir, na romaria até a Basílica. Mas comportavam-se com mais decoro. Agrupavam-se sem soberbas ou intimidações no estirão que ia da Castilhos França à entrada da Marechal Hermes, embalados apenas pela fervorosa trilha dos motores. Esperavam, ansiosos, mas cordatos, as saudações, as contemplações do povo e só depois que o cortejo levando a nossa padroeira se deslocava Presidente Vargas acima, é que elas saíam. Faziam um ruidoso, mas belo fechamento para aquela passagem. O povo que se aglomerava na rua, podia ver de perto a imagem da Virgem, orar, agradecer a ela, pedir a bênção. Quando as motos chegavam a nossa ‘desobriga’ já estava cumprida. É o meu momento preferido. Vejo uma harmonia singular, um simbolismo reconfortante, naquele caminhar de  Nossa Senhora sobre as águas da Guajará. Para mim, representa a assunção da mãe de Deus, das águas, para os corações do povo do Pará. É um momento forte. Pleno de emoção. 
Este ano, porém, esbarrei nas descargas das motos. Já na praça Magalhães, dei que os pequenos não estavam a fim de esperar. Embora houvesse um arremedo de liderança para aquela horda, um isso ou um aquilo de ordem não se viu. As motos avançaram sobre o meio-fio, partilharam a calçada com os promesseiros, com os romeiros ou com meros observadores, como eu. Queriam porque queriam adiantar-se. Ser os pri. Submeteram idosos, crianças, portaram-se como se fossem a única parte interessada e com direitos, naquela manhã de sábado. 
Uma cena me assustou pela gravidade: parte da Assis de Vasconcelos estava fechada para o trânsito. Ali estavam dois carros barrando a passagem, um em cada faixa da avenida. Na parte adiante, o trânsito estava destinado apenas para os pedestres, incautos que buscavam ver a Mãe de Deus surgindo das águas. Pois não é que, mesmo sob os olhares incrédulos de transeuntes e agentes da Ctbel, os motoqueiros romperam a barreira varando pela calçada e tomaram completamente a rua. E foi desse jeitinho mesmo, avançando como uma ferocidade pagã sobre as pessoas que eles dominaram o leito da Presidente Vargas. 
E eu que estava acostumado a ficar naquele cantinho, na subida da ladeira, fiquei foi com medo. Do barulho, da quentura da descarga, dos ânimos. 
Desisti da espera. Quando a Santa chegou eu já me esgueirava por entre as alas folgazãs do Arrastão do Pavulagem. Atinei de longe, para a berlinda que avançava ao largo, acenei com respeito e fé e voltei meu olhar sequioso para a tarde que chegava. Lá em cima a multidão dispersa e o esturro feliz dos motores. 

sábado, 13 de outubro de 2012

Crônica da semana- mudança


Mudança

Nada me dá mais gastura, me causa mais chiliquitos e pitis, do que mudança. 
Mudança pra mim, sempre significa perda. Tanto de peças concretas, substâncias vulgares, como de sentimentos. 
Depois de 17 anos morando na Vila dos Cabanos, resolvi mudar. Convoquei minha mulher e meus meninos (que já migraram pra Belém faz um tempão) para me ajudarem a embalar as coisas. Pra quê. Perdas na certa. 
Sou do tipo que guarda tudo. Recortes de jornal, folderes de eventos diversos, prospectos de remédio. Receitas, certificados de presença no dia dos pais na escola dos meninos... 
Tenho cartas enviadas pela mamãe, por amigos, que datam de 1983, ano em que saí de Belém e fui trabalhar em Rondônia. Já todas amareladinhas, esmigalhadinhas. Guardo fotos, cartões de Natal. Convites de casamento. Revistas de tudo quanto é qualidade e espécie. A leva mais libertina da “Chiclete com Banana”, os primeiros números da “Casseta Popular” e do “Planeta Diário”; A edição número 1 da Revista Super Interessante, de outubro de 1987, aquela dos supercondutores, sabe, eu tenho. Textos de quando eu era sindicalista, informativos que escrevi, minutas de acordos coletivos, documentos teóricos dissertando sobre o futuro da classe operária em Barcarena e em todo o mundo conhecido, memórias ilustradas das conquistas emblemáticas da companheirada. Livros. Uma mina de livros. Minhas pedras. Sou de me apegar a tudo em quanto. Tinha uma tralha respeitável empilhada ali no quartinho. Tinha, porque quando minha assessoria chegou, pôs a metade fora. 
Minha mulher Edna, conheço, é o avesso de mim. Não suporta quinquilharia. Chegou com os olhos vidrados, ávidos, selvagens, ameaçadores, reinando: vou jogar tudo fora, vou jogar tudo... 
Não teve apelação. Não disse que rolava um sentimento, também, com as minhas coisinhas? Quando ela deitou fora a casinha do Argelzinho, meu coração disparou. Busquei cumplicidade. Olha Argel, olha, a tua casinha que brincavas feliz quando eras bebê (verdade. A imaginação do meu filho o levou a divertidos, embora solitários, momentos com aquele conjunto inusitado. Constava de uma casa de plástico seccionada entre paredes e telhado que não sei a que servia originalmente, mas que em determinado momento, houve de ser cenário para as fantasias do pequeno Argel. Outros elementos enriqueciam o enredo. Lembro de alguns. Um dinossaurozinho de plástico, uns dois ou três bonecos de heróis que faziam sucesso nos desenhos da TV, umas letras de plástico rígido, dentre as quais me é marcante o A, o C e o Ó. Outros atores, de igual maneira esquisitos, formavam as tribos imaginárias de Argel. Ele separava as partes. Telhado de um lado, paredes do outro e passava horas sentadinho num canto inventando contendas. Ás contra bonecos, Cês contra o dinossaurozinho, Ós contra Ás. Cês, Ós, Ás, dinossaurozinho contra os bonecos...Às vezes aparecia uma bola e a guerra virava um jogo de futebol e o A como tinha a perninha, era quem mais fazia gol. E eu só espiando de longe. Aquela casinha era um santo remédio pra manter o Argelzinho em casa entretido, concentrado, brincando e criando ilusões). 
Foi para a margem, a casinha. Meu aliado Argel nem thum. Limitou-se a dizer que, por ora, aquilo teria mais serventia nas mãos de uma outra criança. Consegui salvar umas bonecas de Amaranta e alguns belengodengos meus, mas foi na raspa, meu último suspiro. Fechei os olhos e dei adeus a meus pertences que, mesmo que eu teime, de vera, não me pertenciam mais. Enquanto Edna, ávida, descartava, descartava... Descartava tudo em sacos vermelhos e tristes. 

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

crônica remix- o dia mais...


O dia mais feliz da minha vida
Ele ajuda, comenta a mãe, orgulhosa, com a mulher que distribui O Legionário. E é verdade. Um garoto esmirradinho. Entanguido mesmo, mas danadinho! Sai junto com a mãe todo santo dia, cedinho. O dinheiro no cós do short. A geladeira colada ao corpo, num abraço cúmplice.
É o meu homem, diz a mãe, deixando escapar um olhar cheio de carinho. É mesmo. Espertinho, abastece a geladeira com vários sabores, não sem antes choramingar um desconto e ainda levar uns picolés de ganho. Paga no dinheiro vivo. E vai, arrastando a sandália japonesa num estirão de terra batida suburbano, até dar na calçada do Alzira Pernambuco.
Só tem um problema, diz a mãe para a vizinha curiosa, ele é meio envergonhado, meio sistemático. Realmente. No caminho até a escola, não levanta a cabeça, não olha pro’s lados e Deus o livre de quem o chame  lá de longe: “ei picolé”! De si para si, dispara palavrões, muito pê. E não adianta chamar que ele não vai não, menino. Na frente do colégio sim, ladeado pelo pipoqueiro, pelo unheiro, pelo bombonzeiro, sente-se à vontade. Ali, na frente do Alzira, sente-se protegido pelos colegas de venda. Ali sim ele é picolezeiro. E olha o extra picolé! E tem de groselha, uvita, morango e dois sabores. E tá acabando.
Ele é muito responsável, confessa a mãe à tia preocupada. Com toda certeza . Com a venda, ele sempre garante o dia de amanhã.
O garoto não precisava de nada. Comia aquele tantinho com um punhado de farinha, se mandava pra escola (na fila era o pri, do menor para o maior) e estudava direitinho. Nada de se meter na bandalheira com a molecada. Depois da escola, lerdava pela rua ou reunia com os outros embaixo da mangueira da vizinha madrinha.  À noitinha, descia lá para a esquina pra esperar a mãe. Ela não tinha hora pra chegar da Aveirense: “enquanto houvesse movimento...”
A mãe chegava e ele lhe repassava a renda do dia. Comentava os episódios curiosos enquanto ela esquentava o jantar e depois, prestimoso, a acompanhava até a rede para um sono reparador. Depois, ligavam o rádio no programa do Joel Pereira, até que um ou outro adormecia. Dormiam assim, lado a lado. Mãe e filho, como é de ser. Lado a lado. O rádio a endeusar: “tu és divina e graciosa estátua majestosa do amor...”
O garoto fazia e acontecia. Andava pelo mundo, pastoreava as irmãs e a mãe. Fazia como gente grande, mas em verdade, era uma criança. Fora o futebol clandestino no Areal, ele mesmo não reconhecia momentos que lhe sinalizassem sobre sua condição infantil. Ele não estava nem “seu Souza”. Mas a mãe, é claro, sentia esse envolvimento precoce do filho. Essa responsabilidade exagerada com o mundo verdadeiro, tão cedo.
Naquele dia não haveria aula. Os alunos estavam em festa. Era feriado pelo Dia das Crianças. Ele nem sabia (achava que já era Círio). Mas a mãe sabia e queria prestar uma homenagem ao filho. Ao seu pequeno grande homem.
À noite, na parada do Pedreira Nazaré, ele percebeu a mãe descer com uns pacotes na mão. Em casa, os desembrulhos. Para o  meu menino, um presente pelo dia das crianças.
Um barco e um trenzinho de plástico verde e branco, desses que são vendidos pelo chão do arraial. No dia seguinte o menino esqueceu até da venda. Desceu ali pro garapé da Visconde, todo faceiro. Uma lágrima de emoção rolava cada vez que o barquinho embicava lá pras bandas da Mauriti (rolava muito menos que agora, enquanto escrevo esta história). O barquinho, presente da mamãe, a deslizar rumo ao sul. Brincadeira de criança (como é bom. Ah, como é!). Naquele que foi o dia mais feliz da sua vida.   

sábado, 6 de outubro de 2012

crônica da semana- fumaça e fogo


Couro quente
Éraste, um tantinho só que andei do meu ponto de ônibus até em casa, na chegada do trabalho, já constipei. Todo dia é assim. Tô bem que só, mas quando cai a tarde, já viu, começa o ronc-ronc. É essa maldita fumaça que me consome. E pela natureza acutilada do ataque ou pelo odor agudizado do golpe, parecendo mais um feixe de lâminas se infiltrando pelas fossas nasais, rasgando cartilagens, pelinhas, estraçalhando pelinhos, gerando muco, muito muco, e espirros salteados, só pode ser fumaça de mata queimando. Desse jeito, morre a floresta. Morro eu, morremos todos os seres e verbos.
Todo ano é assim, aqui na Vila dos Cabanos. O povo aproveita o estio e deita fogo na mata. Não tem quem suporte. Mais ainda ao pôr do sol, que de romântico, por aqui, não tem nada. Nessa hora, a atmosfera esfria e concentra uma carrada de porcarias próximo à superfície. Particulado, voláteis, gases. O clima, literalmente, assenta-se pesado, chega a vista fica turva, arde e discerne pouco. Não tem, também, ninguém que evite ou coíba as queimadas, a casa aqui é da mãe joana, lambança total. Até candidato a vereador queima (bem aqui, na porta de casa e logo quando vira o geral e o vento vem pra cá, ao invés de ir empestar a casa dele, do dito peste).
Esse negócio de fogo, nos arredores de aglomerados urbanos, além de irritar e fazer mal a saúde, é uma questão séria de segurança.
Aconteceu comigo em Rondônia. Havíamos montado um acampamento perto da vila residencial. Minha equipe, na época, era uma teba. Pra mais de sessenta pessoas. Como íamos ficar um bom tempo ali, construímos os barracos com um zelo pouco comum. Montamos dois vãos estirados na orientação longitudinal do terreno, dividimos em pequenos quartos e fizemos as paredes com palhas especiais, que eu até hoje conheço como pindoba, mas outros dizem ser o olho ou o filhote da palmeira. Eram, por certo, palhas mais jovens, algumas nem abertas estavam, nós é que a desfolhávamos na obra. Eis que a cobertura, a gente fazia com palha verde e as paredes, com palhas amarelas. Nosso acampamento ficou um mimo. Chiquerérrimo. No mesmo padrão, erguemos a cozinha e um barraco que eu fazia de escritório e de meu cantinho para atar a rede na hora da preguicinha da tarde.
Tudo no seu devido aquele, a labuta seguiu reta. A galera com um certo orgulho de morar num lugar colorido de dois sabores e ainda mais, com a cores nacionais.
Mas não era perto da vila? E na vila não tem moleque? E moleque quando apronta, a gente sabe, pra desatar é um custo.
Certo dia, quando voltamos do trabalho, a mata do entorno estava ardendo. Quase atingindo a nossa cozinha. Foi uma correria. Busca água, faz aceiro, corta pau. Cheguei a entrar em umas das varações. Coisa impressionante. É assustadora a cena de árvores queimando. Bananeiras brabas simplesmente explodiam. A área compreendia uma faixa de vegetação secundária que ia do fundo na nossa cozinha até a fronteira com a vila residencial, ou seja, as casas estavam em risco. Arrodeamos o fogo e o isolamos. Depois, ateamos fogo ao contrário. Foi quando conseguimos controlar a situação. O pouco vento que se bandeou pra’li, não se alvoroçou e não demorou muito estávamos aliviados e livres do perigo (o que não foi o caso dos atentados que provocaram a confusão, pois entraram na chinela e, bem merecidamente, foram dormir com o couro quente).
O fogo como, com tamanha inspiração, depõe Caetano, “ergue e destrói coisas belas”. Amanhã elegeremos os nossos mais próximos representes. De minha parte observo: não tão próximo como o meu vizinho.Gosta de um fogo, este pequeno...

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

crônica remix - sapato novo


Sapato Novo
O pobre é ralado mesmo, até quando ele tá por cima, ele tá por baixo (não, não que eu fale assim tentando depreciar esta categoria, que eu nem acho que seja uma compartimentação social. Sei lá, acho que ser pobre, além da carteira vazia, espelha um estado de espírito. Pô, sou franciscano).
Mas vendo assim, pelo lado do espírito...
Não sou luxento. Gosto de ter minhas coisinhas, mas não tenho aspirações grandiosas como casa em Salinas, mansão em Marituba, Chevete último tipo, calça jeans de 40, 50 Reais, celular que bate foto e até faz ligações, não. Meus sonhos são aqueles neoclássicos: uma casa no campo, meus discos, meus livros, meus amigos...
Aliás, eram. Agora, com a comunicação instantânea incluí a internet. Sim, sim, e depois que cortaram o meu telefone, pautei a minha linha fixa como uma conquista irrefreável. Eu quero o meu 25 04 de novo.
Então, os meus sonhos miúdos atualizados são uma casa no campo, meus discos, meus livros, meus amigos, a internet e minha linha fiiiiiiixa, quero meu vintecincozinho zero quatro de volta.
Estas lufadas de humildade me têm colocado em algumas saias justas. Olha só, nos últimos anos, não tinha disponível aqui no meu armário, nenhuma roupa de sair que me levasse decentemente para as partes. Sério.
Apesar de que, eu não vou para as partes mesmo. O meu negócio é um banquinho, um violão, copo na mão, boa companhia e um bom papo. Claro fica que para isso não precisa de roupa bacana, “basta a mente quieta, a espinha ereta, o coração tranqüilo” e uns Reais no bolso para a coleta da gegé. Mas, vez por outra, tenho que me virar. Desde 1999, tenho freqüentado o estande dos escritores paraenses na Feira do Livro, lançando, prestigiando os outros autores, ou só prestando reparo mesmo, e isso me levou ao convívio saudável dos deuses da literatura papa-chibé. E nas programações que orbitam a Feira, durante o ano, sempre tem um sarau, um isso, um aquilo cultural bacana com gente de peso, escritores do Olimpo da literatura nacional. Saí que vez por outra me chega um convite do Governo do Estado, através da Secult, para os eventos (às vezes, revelo, o convite chega depois do caso passado, mas não vamos nos deter nessas ressentimentos agora).
E eis que tive que me render a uns panos mais aquele. A minha sorte, é que tenho o amigo José Raimundo Vaz na minha vida. Acho que o Vaz pensa “pôxa, o mundiquinho só anda avacalhado, com aquela ‘percata’ velha, aquela camisa de meia esticada na gola, aquela calça de tergal sem vinco”. E atento aos movimentos, todo ano, no meu aniversário, o Vaz me dá uma camisa bacana. De vera, as melhores camisas que tive na minha vida, foi o Vaz que me deu. Esta aí na foto da coluna, é obra do Vaz, uma peça finérrima em crepe que eu tenho até vergonha de ficar dentro dela. Só uso a bichinha em ocasiões especiais.
E como o Vaz entrou com a camisa, tive que me aviar com a calça e com um sapato de responsa para completar o conjunto que me leva às partes nas boas horas.
Mas eu não falei que saio pouco, assim, amparado pela erudição do vestuário? Pouco mesmo. E o meu conjunto fica na maior parte do tempo guardado.
Só que um dia, eu quis transgredir. Fazer uma graça. Saí cedinho para a Universidade na maior pinta, todo na minha manga comprida e coisa e tal. Um repente, sabe, só pra tirar um sarro com a petizada da Geologia.
Ai, ai, eu não disse que o pobre é isso, é aquilo...O meu sapato lindão, que devo ter usado umas 10 vezes, no máximo, desde que o comprei, lá por 2004. O meu sapato simplesmente descolou a sola. Todinha, de fora a fora, não foi só o salto não, e eu voltei de Belém me arrastando com aquela porqueira. Com aquela cara de besta, me justificando pros outros, sabe?...é, soltou a sola...soltou, agorinha mesmo...
Pô, meu sapato novisco!