quarta-feira, 10 de outubro de 2012

crônica remix- o dia mais...


O dia mais feliz da minha vida
Ele ajuda, comenta a mãe, orgulhosa, com a mulher que distribui O Legionário. E é verdade. Um garoto esmirradinho. Entanguido mesmo, mas danadinho! Sai junto com a mãe todo santo dia, cedinho. O dinheiro no cós do short. A geladeira colada ao corpo, num abraço cúmplice.
É o meu homem, diz a mãe, deixando escapar um olhar cheio de carinho. É mesmo. Espertinho, abastece a geladeira com vários sabores, não sem antes choramingar um desconto e ainda levar uns picolés de ganho. Paga no dinheiro vivo. E vai, arrastando a sandália japonesa num estirão de terra batida suburbano, até dar na calçada do Alzira Pernambuco.
Só tem um problema, diz a mãe para a vizinha curiosa, ele é meio envergonhado, meio sistemático. Realmente. No caminho até a escola, não levanta a cabeça, não olha pro’s lados e Deus o livre de quem o chame  lá de longe: “ei picolé”! De si para si, dispara palavrões, muito pê. E não adianta chamar que ele não vai não, menino. Na frente do colégio sim, ladeado pelo pipoqueiro, pelo unheiro, pelo bombonzeiro, sente-se à vontade. Ali, na frente do Alzira, sente-se protegido pelos colegas de venda. Ali sim ele é picolezeiro. E olha o extra picolé! E tem de groselha, uvita, morango e dois sabores. E tá acabando.
Ele é muito responsável, confessa a mãe à tia preocupada. Com toda certeza . Com a venda, ele sempre garante o dia de amanhã.
O garoto não precisava de nada. Comia aquele tantinho com um punhado de farinha, se mandava pra escola (na fila era o pri, do menor para o maior) e estudava direitinho. Nada de se meter na bandalheira com a molecada. Depois da escola, lerdava pela rua ou reunia com os outros embaixo da mangueira da vizinha madrinha.  À noitinha, descia lá para a esquina pra esperar a mãe. Ela não tinha hora pra chegar da Aveirense: “enquanto houvesse movimento...”
A mãe chegava e ele lhe repassava a renda do dia. Comentava os episódios curiosos enquanto ela esquentava o jantar e depois, prestimoso, a acompanhava até a rede para um sono reparador. Depois, ligavam o rádio no programa do Joel Pereira, até que um ou outro adormecia. Dormiam assim, lado a lado. Mãe e filho, como é de ser. Lado a lado. O rádio a endeusar: “tu és divina e graciosa estátua majestosa do amor...”
O garoto fazia e acontecia. Andava pelo mundo, pastoreava as irmãs e a mãe. Fazia como gente grande, mas em verdade, era uma criança. Fora o futebol clandestino no Areal, ele mesmo não reconhecia momentos que lhe sinalizassem sobre sua condição infantil. Ele não estava nem “seu Souza”. Mas a mãe, é claro, sentia esse envolvimento precoce do filho. Essa responsabilidade exagerada com o mundo verdadeiro, tão cedo.
Naquele dia não haveria aula. Os alunos estavam em festa. Era feriado pelo Dia das Crianças. Ele nem sabia (achava que já era Círio). Mas a mãe sabia e queria prestar uma homenagem ao filho. Ao seu pequeno grande homem.
À noite, na parada do Pedreira Nazaré, ele percebeu a mãe descer com uns pacotes na mão. Em casa, os desembrulhos. Para o  meu menino, um presente pelo dia das crianças.
Um barco e um trenzinho de plástico verde e branco, desses que são vendidos pelo chão do arraial. No dia seguinte o menino esqueceu até da venda. Desceu ali pro garapé da Visconde, todo faceiro. Uma lágrima de emoção rolava cada vez que o barquinho embicava lá pras bandas da Mauriti (rolava muito menos que agora, enquanto escrevo esta história). O barquinho, presente da mamãe, a deslizar rumo ao sul. Brincadeira de criança (como é bom. Ah, como é!). Naquele que foi o dia mais feliz da sua vida.   

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