sábado, 13 de outubro de 2012

Crônica da semana- mudança


Mudança

Nada me dá mais gastura, me causa mais chiliquitos e pitis, do que mudança. 
Mudança pra mim, sempre significa perda. Tanto de peças concretas, substâncias vulgares, como de sentimentos. 
Depois de 17 anos morando na Vila dos Cabanos, resolvi mudar. Convoquei minha mulher e meus meninos (que já migraram pra Belém faz um tempão) para me ajudarem a embalar as coisas. Pra quê. Perdas na certa. 
Sou do tipo que guarda tudo. Recortes de jornal, folderes de eventos diversos, prospectos de remédio. Receitas, certificados de presença no dia dos pais na escola dos meninos... 
Tenho cartas enviadas pela mamãe, por amigos, que datam de 1983, ano em que saí de Belém e fui trabalhar em Rondônia. Já todas amareladinhas, esmigalhadinhas. Guardo fotos, cartões de Natal. Convites de casamento. Revistas de tudo quanto é qualidade e espécie. A leva mais libertina da “Chiclete com Banana”, os primeiros números da “Casseta Popular” e do “Planeta Diário”; A edição número 1 da Revista Super Interessante, de outubro de 1987, aquela dos supercondutores, sabe, eu tenho. Textos de quando eu era sindicalista, informativos que escrevi, minutas de acordos coletivos, documentos teóricos dissertando sobre o futuro da classe operária em Barcarena e em todo o mundo conhecido, memórias ilustradas das conquistas emblemáticas da companheirada. Livros. Uma mina de livros. Minhas pedras. Sou de me apegar a tudo em quanto. Tinha uma tralha respeitável empilhada ali no quartinho. Tinha, porque quando minha assessoria chegou, pôs a metade fora. 
Minha mulher Edna, conheço, é o avesso de mim. Não suporta quinquilharia. Chegou com os olhos vidrados, ávidos, selvagens, ameaçadores, reinando: vou jogar tudo fora, vou jogar tudo... 
Não teve apelação. Não disse que rolava um sentimento, também, com as minhas coisinhas? Quando ela deitou fora a casinha do Argelzinho, meu coração disparou. Busquei cumplicidade. Olha Argel, olha, a tua casinha que brincavas feliz quando eras bebê (verdade. A imaginação do meu filho o levou a divertidos, embora solitários, momentos com aquele conjunto inusitado. Constava de uma casa de plástico seccionada entre paredes e telhado que não sei a que servia originalmente, mas que em determinado momento, houve de ser cenário para as fantasias do pequeno Argel. Outros elementos enriqueciam o enredo. Lembro de alguns. Um dinossaurozinho de plástico, uns dois ou três bonecos de heróis que faziam sucesso nos desenhos da TV, umas letras de plástico rígido, dentre as quais me é marcante o A, o C e o Ó. Outros atores, de igual maneira esquisitos, formavam as tribos imaginárias de Argel. Ele separava as partes. Telhado de um lado, paredes do outro e passava horas sentadinho num canto inventando contendas. Ás contra bonecos, Cês contra o dinossaurozinho, Ós contra Ás. Cês, Ós, Ás, dinossaurozinho contra os bonecos...Às vezes aparecia uma bola e a guerra virava um jogo de futebol e o A como tinha a perninha, era quem mais fazia gol. E eu só espiando de longe. Aquela casinha era um santo remédio pra manter o Argelzinho em casa entretido, concentrado, brincando e criando ilusões). 
Foi para a margem, a casinha. Meu aliado Argel nem thum. Limitou-se a dizer que, por ora, aquilo teria mais serventia nas mãos de uma outra criança. Consegui salvar umas bonecas de Amaranta e alguns belengodengos meus, mas foi na raspa, meu último suspiro. Fechei os olhos e dei adeus a meus pertences que, mesmo que eu teime, de vera, não me pertenciam mais. Enquanto Edna, ávida, descartava, descartava... Descartava tudo em sacos vermelhos e tristes. 

2 comentários:

  1. Muitas coisas já não nos pertence mais há tempos, Sodré, e a gente insiste em guardá-las, e é preciso um empurrão pra enxergarmos isso, um tapa na cara. É por isso que temos essa sensação de perda, mas é tão necessário quanto vital. Vou tomar como exemplo a Dona Edna. rsrsr...

    ResponderExcluir
  2. Raimundo, desculpa tá, mas achei engraçado!
    Adoro tuas crônicas, porque realmente és o acreano mais paraense que já li - tens um jeito impagável de contar os "causos"...kkkkk

    Abraços,

    Deizi Lorena

    ResponderExcluir