sábado, 20 de outubro de 2012

crônica da semana - motocicletas


Mickey Rourkes papa-chibés.

O comentário que ouvi até que não é de todo maldoso. Concordo mesmo que esta prodigalidade de procissões que orbitam o Círio de Nazaré está no limite. Não tão radicalmente ao ponto de dizer que “até shopping faz procissão”, mas periga. 
As caminhadas, as procissões tradicionais, os encontros nas casas, são intervenções sociais de impacto na quadra nazarena. Compõem o mosaico indispensável de religiosidade e fé. Enriquecem o momento, desenham o mês de outubro com outros traços, senão os do cotidiano. Sou simpático a todas, inclusive a dos motoqueiros. Mas... 
Sei que naquela que é, para mim, a grande oportunidade de estar junto à Santa, fui impelido à renúncia não só pelo ronronar feroz das motocicletas, pois deste barulho, já estava até íntimo, mas desta vez, também pela afronta teti-a-teti. Fui, literalmente, empurrado para a margem da Presidente Vargas, na chegada da Romaria Fluvial, pelos Mickey Rourkes papa-chibés. 
Do que lembro, as motos sempre existiram, e participaram no acompanhando da Santa, na chegada da Fluvial e a seguir, na romaria até a Basílica. Mas comportavam-se com mais decoro. Agrupavam-se sem soberbas ou intimidações no estirão que ia da Castilhos França à entrada da Marechal Hermes, embalados apenas pela fervorosa trilha dos motores. Esperavam, ansiosos, mas cordatos, as saudações, as contemplações do povo e só depois que o cortejo levando a nossa padroeira se deslocava Presidente Vargas acima, é que elas saíam. Faziam um ruidoso, mas belo fechamento para aquela passagem. O povo que se aglomerava na rua, podia ver de perto a imagem da Virgem, orar, agradecer a ela, pedir a bênção. Quando as motos chegavam a nossa ‘desobriga’ já estava cumprida. É o meu momento preferido. Vejo uma harmonia singular, um simbolismo reconfortante, naquele caminhar de  Nossa Senhora sobre as águas da Guajará. Para mim, representa a assunção da mãe de Deus, das águas, para os corações do povo do Pará. É um momento forte. Pleno de emoção. 
Este ano, porém, esbarrei nas descargas das motos. Já na praça Magalhães, dei que os pequenos não estavam a fim de esperar. Embora houvesse um arremedo de liderança para aquela horda, um isso ou um aquilo de ordem não se viu. As motos avançaram sobre o meio-fio, partilharam a calçada com os promesseiros, com os romeiros ou com meros observadores, como eu. Queriam porque queriam adiantar-se. Ser os pri. Submeteram idosos, crianças, portaram-se como se fossem a única parte interessada e com direitos, naquela manhã de sábado. 
Uma cena me assustou pela gravidade: parte da Assis de Vasconcelos estava fechada para o trânsito. Ali estavam dois carros barrando a passagem, um em cada faixa da avenida. Na parte adiante, o trânsito estava destinado apenas para os pedestres, incautos que buscavam ver a Mãe de Deus surgindo das águas. Pois não é que, mesmo sob os olhares incrédulos de transeuntes e agentes da Ctbel, os motoqueiros romperam a barreira varando pela calçada e tomaram completamente a rua. E foi desse jeitinho mesmo, avançando como uma ferocidade pagã sobre as pessoas que eles dominaram o leito da Presidente Vargas. 
E eu que estava acostumado a ficar naquele cantinho, na subida da ladeira, fiquei foi com medo. Do barulho, da quentura da descarga, dos ânimos. 
Desisti da espera. Quando a Santa chegou eu já me esgueirava por entre as alas folgazãs do Arrastão do Pavulagem. Atinei de longe, para a berlinda que avançava ao largo, acenei com respeito e fé e voltei meu olhar sequioso para a tarde que chegava. Lá em cima a multidão dispersa e o esturro feliz dos motores. 

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