domingo, 30 de junho de 2019
sábado, 29 de junho de 2019
crônica da semana - cara ou coroa
Cara
ou coroa
Ali
pela adolescência, e ainda na juventude, analisava o mundo à minha volta, de
acordo com as polarizações ideológicas e comportamentais. O meu lado foi sempre
o esquerdo. Militei incondicionalmente de par com meus iguais. Mesmo reconhecendo
a existência dos outros. Até na época de maior militância, e ao mesmo tempo, de
maior dedicação à Escola Técnica, onde tinha que dividir espaços, formar
equipes de trabalhos, de viagens de campo, ou seja, tinha que me haver com
outras patotas; procurava me postar à distância conceitual de pessoas que
divergiam dos meus atos e pensamentos. A minha praia era mesmo a companheirada.
Tínhamos objetivos comuns, práticas partilhadas, os mesmos sonhos e semelhantes
métodos de luta. Esta convivência seletiva tornava as minhas relações
aplainadas pelo consenso, pelos alinhamentos, ao menos da parte conjuntural. Não
havia espaço para surpresas ou sobressaltos. O ritmo da vida era na base do
cara ou coroa.
Essa
conduta tinha seu lado penso. Exclusivista. Não experimentei o verso dessa
postura, fora do âmbito conjuntural (o sistema sim com suas mazelas, era o eixo
a ser vergado). Vivi, durante um tempo, num alheamento confortável, sem
turbulência. O arranjo era bem mais didático. Havia o sistema e havíamos nós. O
meu pensamento romântico não encontrava no meio da conjuntura, atores sociais
dissonantes.
Uma
vidinha toda ordenada, arrumadinha. Tudo no lugar, certinho, se encaixando. Uma
realidade forçada, idealizada. Um mundo esférico sem os chatos e achatados dos
pólos. Era assim que eu desenhava meu espaço, meu tempo. Meus humores, meus
amores. Requisitava um universo sem defeitos. Puro, sensato. Transigente,
obsequioso.
Uma
teba d’uma pretensão a minha. Algo que totalitária. Impositiva. Um credo à
soberba. Uma deixa para a presunção. Escapava um isso da mais solitária
esquisitice.
Mas
ao mesmo tempo era vibração, turbulência que desencadeava a autodefesa. A
necessária superação. A resistência.
Uma
fase perfeitamente perdoável e explicável. Que foi se desmanchando, se
desfazendo.
O
choque de realidade aconteceu quando iniciei minha vivência sindical. Aportei
em Barcarena. Comecei a participar das mobilizações. Aí dei a perceber uma
diversidade que eu pensava não existir. Destaque para a composição partidária.
Na minha cabeça, só estariam na direção do sindicato, integrantes ou
simpatizantes de (um único) partido de esquerda. Qual o quê. Tinha até gente
sem partido. Outro aspecto que me balançou: a presença de evangélicos na
entidade. E eu que achava que a luta operária era uma propriedade da raia laica
da sociedade. Outras divergências, tensas controvérsias foram aparecendo e eu
me esforcei ao aprendizado. Exercitei a versatilidade de concepções na vida e
descobri que a salada de entendimentos se multiplicava em ingredientes, quando
descia ao chão da fábrica ou subia ao céu do mundo.
De
lá para cá, busquei um caminho pavimentado de compreensões. Aprendi a negociar,
e a admitir múltiplas interpretações para o mesmo fato. Valorizei o argumento
em si e não os grupos que o defendem.
Eis
que quando dou fé, a história dá uma pirueta, se desequilibra. O sistema se
mimetiza ao lado da gente. Aparece a figura do operário de direita. A Terra, em
sua plana superfície parece dar voltas para trás.
A
contragosto, adolesci novamente e voltei a admitir o ritmo da vida sendo na
base do cara ou coroa
sábado, 22 de junho de 2019
crônica da semana - idealismo
Idealismo
(minhas férias)
As
aulas do professor Juan Hoyos eram concorridas. O horário dele era cedo. Às seis da tarde, começava a falar e só parava
na batida da campa. Apesar de ministrar uma disciplina tida e havida como
difícil e chata, vinha gente de outras turmas para as aulas. A moçada sentava
no chão, ficava gente pelo corredor. Só prestando atenção. Da minha passagem
pelo curso de Geografia trago algumas lembranças daquelas aulas. Uma delas se
fez muito ativa nessas minhas férias. Foi quando Hoyos falou sobre o Idealismo.
Filosofia não é assim, de repente, que se apreende, e ele sabia disso. Era um
professor. Fez comparações para nos explicar como os processos, os eventos, as
coisas e as artes podem existir independentes de a gente poder apalpá-las,
enxergá-las ou cheirá-las. Deu o exemplo da neve. Todos nós, das beiradas
tropicais, das baixas altitudes, afirmamos na sala, ter ciência do que seria a
neve, mas reforçamos que jamais havíamos tido contato. A neve existia somente no
mundo das idéias. Límpida e clara. Friinha, fofa. Brilhante e sonante...
A
igreja de Aparecida, aqui na Pedreira, está localizada a uma altitude de 20m.
Ocupa um dos pontos mais altos do bairro. Esta indicação quer dizer que o
templo foi erguido 20 metros acima do nível do mar. A referência serve para que
a gente perceba a interação do lugar onde estamos com a movimentação das águas
do mar e de superfície. Em Belém, por exemplo, conhecer a altitude de onde se mora
significa saber se a área pode alagar na maré alta. O Igarapé do Galo, ali
perto da praça Eneida de Moraes, por estar numa altitude de 10m, se for
alimentado por águas de chuva forte e ao mesmo tempo ser invadido pela maré
cheia, transborda e avança o leito sobre as margens, pondo no fundo as casas
próximas. Em baixas altitudes, se respira de um jeito, o metabolismo é adaptado,
o sol produz alta temperatura e umidade; as nuvens movimentam-se em determinada
velocidade, o céu é longe. A água ferve a 100 graus. Isso tudo, nós, do
estuário guajarino, sentimos na pele. Estas apreensões representam o contrário
de Idealismo.
Fazer
as experimentações. Estar de palmo e cima com as diferenças radicais, com o
contraditório. Enfrentar temperaturas negativas, subir as cordilheiras,
encaixar-se entre as rochas vulcânicas eram metas para essas minhas férias.
Visitei
um lago que fica a 3.000 metros de altitude. É como se o telhado da igreja de
Aparecida tivesse três quilômetros de altura. Encaixado no meio de formações
pontiagudas da cordilheira dos Andes, modelei uma bola de neve e trouxe aquela
idealização de massa límpida e clara, friinha, fofa, brilhante e sonante para o
tímido calor de minhas mãos. Reconheci que um neguinho das beiradas do Amazonas
não se sente confortável, de jeito e maneira, debaixo de uma temperatura de -14
graus. Lá em cima, constatei a diversidade de ambientes e a enorme capacidade
humana para vencer obstáculos naturais. Lembrei das explicações do professor
Juan Hoyos sobre a existência de artes e coisas somente no cocuruto e me
deslumbrei com o contrário disso. A realidade das cordilheiras me fascinou e eu
que não creio, agradeço ao bom pai por esta oportunidade. Pela maravilha das
montanhas, por testemunhar a tensão que constrói, por sentir a dramaticidade da
subducção e por trazer esta vivência a menos 14 graus existindo em boas e reenergizadas
memórias.
sábado, 8 de junho de 2019
Crônica da semana - de pernas pro ar férias
De
pernas pro ar
Vou
dar um tempo do mundo. Tirar umas merecidas férias. Desligar os plugs.
O
porto a que me vou não tem nem luz elétrica. Celular, nem do pisca. Televisão
não pega. Correio é só de quando em quando. Internet é poeira que se vê longe. Rádio,
só se a gente sair pra fora de casa e virar a antena para o poente. O porto a
que me vou “não é alegre, velho, triste, das galinhas, nem tampouco é
Portugal”. É um porto seguro de águas calmas encravado nas enseadas da razão e
da solidão. Do silêncio e da lucidez. Do frio rígido das horas. E da sonolência
sagrada do ócio. O porto a que me vou é tão perto e certo, que o sinto dentro
de mim, me chamando para o estado absoluto de paz, da morrinha e da mansidão.
Então,
leitores amigos que me acompanham nesses 13 anos de coluna, não pensem me
encontrar nas duas próximas semanas. Porque não estarei aqui. Estarei de pernas
pro ar em alguma beira de rio, por aí. Em alguma praia de águas verdes. No alto
das montanhas geladas ou quem sabe, às margens do igarapé do Zé, só curtindo
aquele ventinho. Só embalando na minha redinha.
Durante
anos, as minhas férias eram... como direi, meu pai?... Autóctones. Quer dizer: realizavam-se
no mesmo lugar em que eu vivia e labutava. O gozo das férias era uma mera
formalidade. Morava na Vila dos Cabanos e lá é que era o destino de quem tirava
férias. O comum era os parentes, amigos e aderentes largarem as pernas pro ar,
por aquelas bandas de lá. Então por uma contaminação conceitual, assim que eu
assinava a papelada de férias, já transformava aquele lugar de trabalho no
porto de comodidades que imagino nos parágrafos aí de cima.
O
direito a férias é quase centenário. Foi instituído por decreto em 1925. É
considerado o primeiro benefício geral amparado pelo direito trabalhista no
Brasil. Foi estabelecido por lei, mas antes mesmo, já havia setores industriais
que promoviam o descanso anual dos trabalhadores de forma autônoma. Esta
prática dava indício de que um entendimento havia sobre a necessidade de
compensar a sobrecarga a que os trabalhadores eram submetidos e o impacto disso
na produtividade. Esta situação hoje, com as tensões competitivas é muito clara
e reconhecível. Mesmo que haja uma corrente contra, as férias são vistas como
componentes favoráveis ao bom desempenho profissional. Tem uma hora que o
próprio chefe reconhece que aquele funcionário (e até ele mesmo) está
precisando de umas férias.
Começou
com um tempo corrido de 15 dias. Nos anos 50 foi ampliado o tempo para 20 e,
olha só esta que eu não sabia, os trinta dias de gozo atuais só foram
instituídos nos plúmbeos anos 70.
Interessante
notar que a palavra férias tem origem no calendário romano. Significava o dia em
que, por orientação religiosa, não se trabalhava. Pautou também um sentido de
comemoração religiosa para o correr dos dias e derivou as denominações que
usamos hoje: segunda-feira (feria), terça-feira (feria)...
De
uns tempos pra cá, desatarrachei da Vila dos Cabanos. Atei minha mula em outras
paragens e as férias vieram juntas.
O direito
segue. A gente, no trabalho, vai dando sinais que está precisando dar um tempo.
Assina os papéis e põe as pernas pro ar.
Sem
celular, sem televisão, sem internet; rádio, só na chegada da noite, com a
antena virada no rumo da estrela mais brilhante do céu.
Desplugando.
Até a volta.
sábado, 1 de junho de 2019
crônica da semana - seu pinto
Ao
pegado da substação de luz
Rolava
pela rua um papo reto afirmando que seu Pinto andava nu dentro de casa. Na boa.
Vivia peladão.
Executava
os serviços domésticos, detinha-se em prendas mais elaboradas como os reparos
na rede elétrica, molhava as mudas, cuidava das roupas no quarador, fazia de um
tudo, nuzão da silva, seu Pinto.
Não
sei de onde surgiu essa conversa. Dizque foi uma entregação do carteiro, que
certa vez foi atendido pelo morador daquela casa ao lado da substação da Angustura,
em trajes de Adão. E na mesma pisada foi bater na taberna do canto, já
divulgando o ocorrido. Ninguém escalou os altos muros da casa, pra confirmar a
versão do carteiro.
Eu
o conhecia de vista perto. Era freguês do bar em que eu ganhava um troco. Pelo
comum do senso, o tinha como o famoso seu Pinto nu. Mas na prática do
dia-a-dia, na atenção da rotina, via sempre bem vestido, na boa e alinhada
pinta, seu Pinto.
Batia
ponto no balcão todo final de tarde. Se os hábitos intramuros do seu Pinto eram
a grande inquietação da rua, e não se confirmavam como verdade, o costume de
umas talagadas ao cair da tarde era fato líquido e certo.
Bebia
em duas versões. A básica constava de um copo cheio (aquele modelo americano, o
famoso copo de bar com linhas verticais marcando as faces cilíndricas e terminando
num traçado circular, antes da borda). Da cachaça melhorzinha que tínhamos.
Quando eu ia servir, pedia que, quase no limite do copo, eu derramasse bem
devagarinho, a bebida, para que coubesse o máximo possível. Usasse o que
pudesse do volume extra produzido pela tensão superficial. Ou seja, uma
superdose.
Bebia
de duas vezes. No primeiro gole, estalava a língua, expressava uma euforia, uma
satisfação decrescente até uma breve letargia. Espiava ao longe e dava a impressão
de refletir sobre a vida. Passava um pedacinho, tomava o outro gole. Estalava a
língua de novo, mas não refletia mais. Fazia um até educado e seguia para
abrigo dos seus muros.
A
outra versão era aquela que ele chamava de traçado. Nesta dose, levava a pinga
até a linha que marca o nível horizontal, logo abaixo da boca do copo. A partir
dali, pedia pra completar com vinho, que podia ser qualquer um tinto que
tivéssemos na prateleira.
Quando
ele tomava o traçado, gostava de puxar conversa. Demorava-se mais.
Nos
dias de traçado, dava vontade de perguntar pra ele se era verdade que vivia
pelado dentro de casa. Nunca perguntei porque, fora a interação com o conversio
da rua, outro interesse eu mesmo não tinha sobre aquele assunto. Tanto fazia
para mim, o que acontecia intramuros ali, naquela casa ao pegado da substação
de luz.
Melhor
não perguntar sobre estas sugeridas estranhezas. Se provocado e sentindo-se à
vontade, seu Pinto era um papo agradabilíssimo. Era escritor. Conhecia de
coisas que jamais eu imaginaria existir. Era viajado. Tinha uma cultura vasta.
Conversava comigo sobre passagens da história que desmontavam preconceitos,
boatos, quiquiquis discriminatórios, conversios e pré-julgamentos. Às vezes
reinava volver ao teor da fofocagem da rua. Mas a conversa seguia tão farta e
fértil, irrigada pelo traçado vermelho, que tornava a especulação do seu Pinto
andar nu pela casa de muros altos ao pegado da substação de luz, pauta de
vulgaríssimo valor. Vulgaríssmo valor.
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