sábado, 31 de dezembro de 2016

crônica da semana -reveion

Reveion no Santa Cruz
Olha, pode tá aí bombando o foguetório, a Sidra da boa, a orquestra no tom, o pulinho nas ondinhas, a roupa alva, alva, que para mim, não tem nem comparação, Reveion muito dos seus paid’égua era o do Santa Cruz.
O Santa Cruz era um clube que existia aqui na Pedreira. Tinha o time de celotex, os meninos do caratê, um afamado escrete de futsal e a sede. Essa é que era maior atração do Santa: A sede dançante. Nós, os moleques da Mauriti, éramos muito chegados do alto comando do Santa Cruz. Nos dias de festa, a gente se montava nuns panos, passava um extrato contorrê, um maço de Hilton no bolso pra dar o charme e ficávamos só na bicora na porta da sede. Dava uma chance, e o Bendelaque colocava todo mundo pra dentro. Assim foi no reveion. O melhor, sem comparação.
Uma conversa puxa a outra e a outra vira a banca. Aí, me vem o texto de uma reportagem que li, por esses dias. O texto fala de uma pesquisa que afirma que uma pessoa, em média, mente 3 vezes a cada 10 minutos. Será, meu pai? Tomei foi um susto com esta revelação científica. Desde o dia que lia a matéria, fico me policiando. Aproveito que ganhei um relógio de ponteiro do poeta Francisco Mendes, e de vez em quando dou uma checada na hora. Faço as contas, revisito as conversas que tive no período (inclusive comigo mesmo), somo, divido, tiro a prova dos noves, a prova real, extraio a raiz quadrada. Contabilizo as minhas mentiras. E olha, a coisa vai que é uma maravilha no rumo das invencionices. Pode prestar reparo. As mentiras variam de tom e gravidade. Desde a quantidade de açúcar no café (que eu sempre digo que coloquei só pouquinho, mas coloquei foi muitão), até uma explicação insossa cobrada e reivindicada sobre aquela fatura do cartão. Tudo a gente inventa. Pode ver. Dá uma olhada aí em cima no texto que não dá nem dez minutos de leitura. Nada do que escrevi aí é verdade. A ciência não falha.
Outra prosa que me tirou um tempo contado em relógio de ponteiro foi uma cena que vi num filme nacional que rodou na TV dia desses. Duas garotas jogando tênis de mesa. Uma delas faz a pergunta fatal: “o que você nunca contou pra ninguém?” Nem vi mais o resto do filme. Aquela pergunta ficou martelando na minha cabeça e lá fui eu escacaviar o mais profundo do meu ser, os meus mais recônditos suplícios, os meus mais abissais prazeres, minhas soterradas dúvidas, meus medos intactos, minhas maldades retidas. Qual o segredo, ou o fato, ou o dado e  passado importante, ou irrelevante que seja, que eu nunca contei para o mais confiável dos amigos, nem para a mãe, nem para o padre em confissão jurada e confirmada? Vou virar o ano cascavilhando.
São inquietações que aparecem assim, de repente, na batida da campa do ano. Podem ser delírios, fantasias. Mas um desassossego assim, em tempo de resoluções e expectativas para o ano novo até que vem bem. Funciona como uma dica para que a gente, cientificamente, mapeie nossas mentiras ou intimamente descubra um segredo não revelado e sua insignificância. Ou sua severidade.
Nos vemos no reveion do Santa. Feliz Ano Novo.


sábado, 24 de dezembro de 2016

crônica da semana= sandoval

Amigo invisível
Vou dar um tempo na prosa (porque encasquetei de escrever um traçado encarreirado das minhas impressões sobre a vida de trabalhador, sobre o doce acre mundo do trabalho) e vou abrir um parêntese para falar do Natal. E olha só, na biqueira, porque hoje já é véspera.
Então é Natal.
E nem vou me enviesar tanto do rumo tomado, traçado decidido e encasquetado, visto que a prosa que me ocorre vem de um ano aí, quando trabalhava de empacotador de supermercado e fizemos lá entre nós, do baixo clero, uma brincadeira de amigo invisível.
Foi numa fase em que se estava desarticulando o trabalho dos garotos. Estávamos com os dias contados. Seríamos substituídos pelos ‘de maior’. Um deles operava já há um tempo. Estava adaptado. Era bem mais velho que nós, os boys, e bem mais velho também que os outros colegas mais velhos. Seu Sandoval.
O Natal era uma época boa. Ganhávamos muita gorjeta. A gente que conhecia os fregueses de olhos fechados, dava um banho no Sandoca. Ele dava uma patetada e pegávamos o freguês dele. Pra faturar um bom apurado no dia, seu Sandoval tinha que se aliar. Trabalhávamos em dupla, empacotando. Um selecionava o cliente, ia buscar o carrinho lá no corredor; o outro providenciava os paneiros, jornal pra forrar, flanela pra limpar o balcão do caixa quando um congelado descongela e pinga. Dias antes do Natal, tiramos os nomes no amigo invisível. Sandoca não era dessas coisas. Nem sabia como funcionava a brincadeira direito. Mas foi convencido. Meteu a mão no saco e tirou um nome. Dias antes do Natal, Seu Sandoval veio pro meu caixa. Aí, fomos nos conhecendo melhor, eu e meu concorrente.
Numa dessas, na hora da merenda, naquele sufoco de movimento, nos aviamos de umas fatias de presunto afiambrado, um pão com manteiga de duas passadas, duas Grapetes geladinhas, e fomos matar a broca na calçada do estacionamento.
Tinha cinco filhos. Morava numa estrada do Coqueiro ainda na piçarra e no matagal. Estudo muito pouco. Com o dinheiro da gorjeta, comprava arroz, feijão, açúcar, leite Girolei, sabão Regência. Todo dia levava uma coisinha. Reparei direitinho nele. Era bem velhinho. Tinha perto de 60, acho. Não ia aguentar muito tempo naquele trabalho braçal de carregar paneiros pelas ruas do Marco.
No dia 24, todo mundo bamburrado. Dinheiro só do graúdo de gorjeta. Minha dupla com seu Sandoval foi um sucesso. A loja fechando, os últimos fregueses saindo, portas baixando. Antes do último caixa encerrar, fomos à seção de brinquedos, eu e meu parceiro. Desacostumado com a brincadeira de amigo invisível, confessou haver tirado meu nome. Apanhou da prateleira cinco brinquedinhos baratos para os filhos, e um mais ajeitadinho para mim. Separou dinheiro pra pagar.
Tomei os brinquedos da mão dele e fui direto ao caixa. Paguei do meu apurado, os presentes dos meninos dele, e o meu.
No início de janeiro, nós, os garotos, fomos demitidos. Os grandes tomaram nosso lugar. Seu Sandoval ficou. Não ficou por muito tempo... O presente que ele me deu (um trenzinho de plástico), não foi substituído, durou um tempão, até ficar bem velhinho.


domingo, 18 de dezembro de 2016

Parede vermelha
Quando o vermelho não basta
Quando o traço
É destroçado
O moço morre ou hiberna
Silencia nos dissabores
Escreve
Faz fogo da neve
Cria facho da escuridão
Engendra jeitos
Vermelho traço
Sangue de fundo
Abre um sorriso ocre
Crê que tudo passa
E ri de novo
Mas ri um riso vazio
Que é riso torto
Zonzo
Um riso de
Quando o vermelho não basta
Quando o traço
É destroçado

Escreve 

sábado, 17 de dezembro de 2016

crônica da semana- geladeira de picolé

Acre doce
Dessa época é aquela história que contei anos atrás e que virou título do meu segundo livro, “O dia mais feliz da Minha Vida”.
Dá conta da fase que a mamãe resolveu morar sozinha. Alugou uma casa de três cômodos na vila Três irmãos, na Visconde. Uma ousadia sem tamanho.
Ocorre que desde quando chegamos do Acre, moramos, toda a tropa dos Sodreres, com a vovó, mãe da mamãe. Éramos mais cinco bocas, mais cinco redes pra atar, mais cinco na fila do banheiro e por aí... Apesar da generosidade da vovó, era uma situação delicada. Orçamento apertado, receita fixa, despesa aumentada radicalmente. Mamãe segurou um tempo, mas depois, doeu na consciência. Juntou as tralhas poucas, os meninos, confiou no salário que recebia como operadora de Caixa na padaria Aveirense, perto do Museu, e lançou-se na vida sozinha.
Foi a nossa primeira experiência em Belém, independentes, assumindo a carreira solo. Para mim, que era danadinho, representou a conquista de um mundo fora dos domínios das quatro paredes de uma casa. Ficávamos os quatro, boa parte do dia, além dos olhos da mamãe. A rua era uma tentação. Logo arrumei uma parceirada, descobri a campo do Areal e o igarapé da Visconde. Daí a lembrança marcante que resultou no meu livro “ O Dia Mais Feliz...”.
Deixa estar que a parada não era fácil. Quando que a mamãe iria dar conta de todas as contas só com o ordenado da panificadora! Vivíamos no aperreio. Tivemos uma conversa séria, amarramos compromissos. A solução era todo mundo cair no batalho. Minhas irmãs saíram para as prendas nas casas de família e a mim, me coube a tentativa de arrumar um trabalhinho, também. Tinha 9 anos.
Belém para mim, ainda era encanto e segredos. A cada dia ia me reconhecendo na cidade. Estudava com uma bolsa oferecida pelo Estado, na escola da igreja Aparecida. No dia-a-dia, cortava boa parte do bairro. Frequentava a feira da Pedreira, me consultava no Centro três, assistia a uma vesperal do Paraíso. Ia explorando... Entendi os itinerários dos ônibus e quando dei fé, já ia sozinho para o Ver-o-Peso, dava voltas de ônibus. Assim, fui me espertando, me distanciando do menino de pés recatados, lá das terras acreanas do Xapuri, e ao fim, já era um pequenozinho que me virava em Belém.
Apostando nessa minha desenvoltura, mamãe arriscou me mandar para um trabalho lá na Sato Antônio, no centro, a dois passos da Carrapatoso. Até aonde a minha memória alcança, foi o meu primeiro, nomeado e denominado, emprego. Nem lavar as orelhas sabia lavar direito; contas de mais ou de menos da matemática, não precisava uma; e achava que podia ser o homenzinho da casa.
Queria ajudar a mamãe e como já fururicava pela cidade, fui trabalhar como Office boy em um escritório de advocacia, na dita Santo Antonio.

Não durei um dia. De certo, era um bebê. Os conhecimentos que eu tinha da cidade, me valeram apenas para voltar pra casa a pé, e em prantos, desde lá do centro, porque não resisti a uma amostra mínima, ínfima deste ambiente necessário (que depois defini como mais acre que doce) que conhecemos como o mundo do trabalho.

sábado, 10 de dezembro de 2016

crônica da semana - cena de cinema

Cenas de cinema
Cena 1: O cavalo seria sacrificado. Sofria desde o dia da queda. A pata dianteira quebrada era um suplício para o animal. O fazendeiro armou a espingarda. Consolado por familiares, amigos, dirigiu-se para a missão. O coração dilacerado. Um sofrimento atroz. Lágrimas inundavam-lhe os olhos. Mãos trêmulas, dor da perda. O desapego indelicado, a certeza da separação, um amor apartado. Somou-se em sentimentos nobres. Postou-se diante do animal. Com dramática contrafeição apertou o gatilho. À frente dele, denso e gelatinoso, o cavalo tomba morto.
Cena 2: O mesmíssimo típico cidadão americano arma novamente a espingarda. Concentra-se frio e decidido. Mais adiante, uma casa é saqueada, incendiada por um grupo de, igualmente cidadãos americanos, encapuzados. A família que estava sendo atacada não resiste ao sítio e, em desespero lança-se à rua em busca de salvação. Um homem negro consegue furar o cerco dos encapuzados e dispara pela rua margeada de pequenas árvores. O mesmíssimo cidadão que tem pena de sacrificar cavalos faz a mira. Dispara o tiro certeiro. À frente dele, leve e humilhado, o homem negro tomba morto.
As cenas são de um filme que assisti há alguns anos. Guardei na memória esta sequência, também porque ela expressa o sofrimento de um fazendeiro ao ter que sacrificar um cavalo de sua propriedade. Mas o motivo real de ter sempre em mente esta passagem do filme é que o dito fazendeiro, interpretado com muita competência pelo ator Tom Berenger, não expressa nenhum pudor, não revela nadica de nada de piedade ou dó, ao matar um homem negro. Para matar um cavalo, era um sofrimento só. Mas para matar um preto, era daqui pra’li.
Uma sincera narrativa da natureza humana, este filme. Dentro de nós, habitam seres diversos. Médicos, monstros. Anjos, demônios. Singelos passarinhos, víboras terríveis. Mundos entrelaçam-se nos meandros da alma e deságuam em atos, omissões. Revelam resistências, permissões. Tudo conforme e conveniente aos termos, à hora. Tudo de acordo com crenças e certezas. Vilões e mocinhos protagonizam nossa história, de acordo com os interesses, com as oportunidades. O bem, o mal relativizam-se nas nossas ações a partir das possibilidades de sucesso ou comodidades.
Me pelo de medo disso.
Nos últimos tempos, atento aos repentes sociais que grassam no Brasil, tenho olhado para dentro de mim tentando conciliar meus eus. Procuro apaziguar os embates. Tomar posição ou intentar uma obra pode daqui pra’li, ser registro de um ato intolerante, preconceituoso. Tenho o maior cuidado para não ser confundido com o fazendeiro que tem pena de sacrificar um cavalo, mas não hesita em derrubar um homem negro. Entre tantos caminhos, desvio do comportamento que prega ser contra o aborto, mas apoia a pena de morte. Nego veementemente a ideia de ser contra a violência, e por outro lado, defender o uso de armas pela população. Tento domar meus eus.
Cena 1: Então é Natal. Luzes piscando. Um clamor é solto ao vento. Paz. Amor. Felicidade.
Cena 2: O fazendeiro arma a espingarda. Posta-se diante do espelho...


sábado, 3 de dezembro de 2016

crônica da semana-exotérico

Exotérico
Olha só quem eu me atrevi corrigir, dia desses, o Eric Hobsbawm. Metidão eu, né. Ainda bem que logo fui obrigado a retroceder (como diriam os bons locutores esportivos de dantes).
Eric Hobsbawm é um dos maiores intelectuais do nosso tempo. Historiador, pensador. Nutria uma curiosidade sobre o Jazz (e até uma intimidade: compus com o jornalista Edir Gaya, a música “Pedreira ‘Jazz’ Pedra Noventa”). Daí, andei que só prestação em fim de mês, por esta cidade; me bati pelas poucas livrarias de Belém, atrás de um livro dele sobre o tema. Já estava desistindo, até que, pela luz divina, achei.
A linguagem do autor é aquela, entre o acadêmico e o informativo. Um traçado natural para escritores do top dele. O Raimundinho aqui, é claro, ralou, leu duas, três vezes, a mesma passagem para entender melhor. Desconfiou da tradução em encarreiramentos do tipo "Observadores eruditos ortodoxos muito esnobes", mas foi em frente, interessado que estava no som que ascendeu do delta do Mississipi. Por acolá, a bronca: no trecho em que se refere a “discos de nomes exotéricos”. Na hora liguei meu desconfiômetro. Estranhei a forma de ‘exotérico’ com ‘xis’. Cavuquei o cocuruto e achei uma música do Gilberto Gil com este título, mas não menos intrigante, na parte da escrita. Tem um som de ‘zê’, na pronúncia. A primeira reação foi pesquisar a letra da música (aí sim, armaria aquele fuá, aquela cena toda de correção e tal. Tudo bem, levaria a conta para a tradução, mas o Eric Hobsbawm entraria, na certa, como litisconsorte).
Comentei em casa. “Oh!”, nos horrorizamos todos. Achamos a música do Gil que grafa bem grafadinho em um dos versos da letra e no título, ‘esotérico’, desse jeitinho mesmo, com ‘ésse’. Taí, nem o senso comum pautado na fonética, nem o intelectualismo do historiador. Reinou a minha empáfia.
A primeira impressão, a primeira informação, conclusões imediatas, presunções ocasionais, um pouquinho de sadismo, bestice e pavulagem, essas coisas é que acabam com a gente, destroem posturas. Percepções imponderáveis estimulam o preconceito, regam a intolerância, modelam diferenças. Retrocedo e admito que a humildade deve sempre estar em pauta. A racionalidade há de ser a regra. Observar as versões, considerar as composições. Os lados vários de um tema ou objeto. Estes são os comandos para barrar as injustiças, os ódios gratuitos, os julgamentos vis. E também para dar conta das minhas besteiras e barrá-las a tempo. É claro que um livro como “A História Social do Jazz”, produzido há mais de trinta anos, com várias edições e em várias línguas, escrito por um pensador brilhante não iria abrigar em tão elegante tessitura, erros primários. Desconfiômetro de novo e, eis que me aprofundei na pesquisa.

No dicionário, achei duas formas: “esotérico”, como na música do Gil, e “exotérico”, como na escrita do historiador britânico. As duas, com significados até opostos coincidem na dedução: quebrei a cara ao querer ser metidão exatamente diante de palavras exóticas onde o ‘ésse’ e o ‘xis’ têm som de ‘zê’. Ao cabo e ao fim, boiei de tudo, como uma pessoa melhor.