sábado, 29 de dezembro de 2018

crônica da semana - pó de arroz


Pó de arroz
Eu queria ver a neve, estar de palmo em cima com ela para constatar se a minha  imaginação é assim, tão digna de credibilidade.
haverá um 2019 que justifique a lista de resoluções que estou montando. São doces decisões. Simplesinhas, acanhadas. Algumas de manutenção do estado atual das coisas, e umas poucas, pura invencionice. Como sem falta, vou vestir um suspensório, passar um pó de arroz na cara e traçar regras rigorosas para sobreviver nos escombros do país.
A possibilidade de me embrenhar no mato e viver uma rotina camponesa, dando comida pra criação, plantando uma tarefa de mandioca aqui, outra acolá, pescando na beira do barranco e apreciando o canto dos pássaros nas alvoradas, não está descartada. São mais de 40 anos na lida operária, está chegando a hora de pendurar o capacete.
Antes, quero ver a neve. Não tem escapatória. Este ano ou é conhecer a neve ou é conhecer a neve. É agora ou neves, Elvis!
Pode ser esta vontade, um capricho besta, uma banalidade burguesa, uma queda ao buraco sem fim das futilidades. Aí vai da gente esta interpretação. Mesmo entre os destroços da democracia, a liberdade do pensar para mim, é sagrada. O que é certo é que a neve me fascina.
E de tal maneira, que tenho impulsos imaginativos. Vivo realidades paralelas arquitetadas, produzidas pelo meu imenso desejo. Acontece, por exemplo, quando vejo filmes no cinema ou na TV, cujos cenários exibem as altas montanhas geladas. Pode estar fazendo o sol que for. A cidade pode estar aquele forno que sabemos, mas me dá um negócio, rola a sugestão, o envolvimento, e logo me vejo sentindo um frio danado, como se estivesse vivendo naquele lugar. É sério. Ponho meia, me embrulho dos pés à cabeça. Tirito. Um universo gelado se acerca de mim com todos os seus sinais. Com todos os seus alvos significados.
Agora deixando de lado as minhas fantasias, imagino que o futuro vai chegar. E que o ano é que está terminando, e não o mundo. A nossa persistência vai garantir a chegada de um outro ano, novo, incerto, cheio de desafios. Há de se estabelecer estratégias, corrigir cursos, admitir recomeços, reatar diálogos. Carece entender que os devaneios e a brancura da neve podem significar tantos e outros objetos, amplos e diversos objetivos, gratas ansiedades, latentes intenções, agrárias conjurações.
As resoluções de ano novo são teimas abraçadas. São juras de pé junto pelas quais lutaremos. O que a gente pretende é porfiar pelo melhor. Resistir. O que a gente decidir mudar, manter, inventar para o ano novo é a vida sendo construída. Tomar decisões. Iniciar caminhos. Confirmar sonhos, tocar os dedos na neve, sentir um frio inimaginável. Ou apenas manter a idéia de uma pequena roça, aceitar o cansaço dos anos nos abatendo... Ativar a dieta parada em algum dia no passado. Investir na convicção de que o conhecimento e a ação juntos provocam mudanças, reanimam cânticos e sorrisos. Quero crer que haverá um futuro, mesmo que ele me sugira vestir suspensório e passar pó de arroz na cara. Não é o fim dos tempos, é apenas a lida sendo cuidadosamente redefinida.





sábado, 22 de dezembro de 2018

cronica da semana - errar é humano





Errare humanum est, ignoscere divinum
Esta é uma crônica de Natal. Terça-feira, nossos corações estarão abrandados, nossas desavenças superadas e eu vou antecipar meu ato penitencial em latim. 
Errar é humano, perdoar é divino. Esta é a mensagem do título.
Eu fico só olhando essas pessoas que têm a capacidade de relevar. Conheço algumas. E nem sei se reconhecem em si este dom. Antes até do talento de deixar pra lá as broncas, penso haver casos em que elas mesmas, um passo antes, não se sintam ofendidas. Não acham motivos para perdões futuros. São personalidades impermeáveis, ponderadas demais. Realizam-se na superfície. São imunes a trancos e barrancos e displicentes nos revides. Consequentemente, utilizam pouco o expediente do perdão. Vivem na cordialidade letárgica. Num servilismo empombalecido.
Não é o meu caso.
Donde vem o baque, eu sinto. Futilidades, pilhérias corriqueiras me ferem de morte. Bandalhas ou encarnações, calúnias fugazes, golpes sutis me corroem o ânimo e a paciência. Avalie, ser for na vera. Pensa tu, o quanto um choque violento me machuca. Ante a uma investida desleal, não tem escapatória. Fazer arminha com as mãos, pra mim é pira-paz. Rapidola que fico de mal a morte. E pra ficar de bem de novo, é um custo. Se perdoar é divino, humildemente reconheço que estou a anos-luz da divindade,
Mas tenho que reconsiderar. Deixar aflorar de mim o espírito do Natal. Estamos em tempo de remissões, de reconciliações. Juro que vou fazer um esforço. O alvo das minhas indulgências será a categoria de pessoas que cometeram atos que a mim pareceram deslizes, pequenos erros onde não estava contido o dolo.
Ausências pautadas no coração serão caprichosamente anistiadas. Delírios românticos, veleidades compensadoras, desterro feliz em nome da aventura e do gozo, para mim, viram traquinagens mínimas dignas do abono da paz. Porque em nós, a chama quando arde no peito, nos cega do entorno e dos entes. E não há premissas ou combinas e nem afetos ou carinhos vãos que superem o chamado denso, vibrante da paixão. É perfeitamente perdoável que uma pessoa que ames tanto, que tenhas como um pedaço de ti, que te nutre e te costrói, que te molda e te desvela, que te satura de serenidade e te percola de segurança, um dia desapegue e procure voar em outros céus, busque o abrigo de outros colos, garimpe pepitas de mais brilho, escave fontes de águas mais doces e claras. Acontece com os filhos da gente.
E nada mais falarei sobre estas pungentes ausências ensejadas nos pulsares acelerados do coração. Que dão aquele aperto no peito da gente, provocam choro, alguma desilusão, mas sei, são movidas sem intenção de machucar.
Um dia, os filhos se mandam mesmo e não dão nem as horas.
Peralá, peralá. Acho que caiu um cisco no meu olho.
Uma lágrima involuntária me faz crer que o título em latim é uma fuga. Uma falácia. De certo, é a dissimulação da saudade. Da doce lembrança. É camuflagem para meus sentimentos mais sinceros. Como defesa, imputo erro, onde há paixão; descrevo deslize onde o que versa é a solidez reconhecível do afeto, que mesmo relutando, a gente de longe reconhece.
O que se tira é que o pai, totalmente entregue, quedado à doces recordações, cria culpas na cria. Inventa moda em latim. Rebusca em língua morta a viva solidão que é tanta, de a gente não se agüentar.
E esse cisco...


sábado, 15 de dezembro de 2018

crônica da semana - o jambeiro e o jucá



O jambeiro, o futuro e o pé de jucá
De maneira alguma, entendo que pôr uma garrafa de água congelada sobre a mesa e dispensar um tempo da vida admirando a revolução da natureza, ali, seja sinônimo de patetice, ou mesmo um ato de vilania contra quem chegaria a seguir e não encontraria uma água friínha para beber porque estraguei a nossa reserva de gelo.
Muito pelo contrário, penso que a partir dessas experimentações, podemos nos adiantar e nos proteger contra os alarmismos inconseqüentes ou as verdades preocupantes.
Seja porque torne, seja porque deixe, uma coisa há de se considerar: o Brasil está relacionado entre os dez países que mais produzem emissão de gases poluentes para a atmosfera, numa lista que tem China e Estados Unidos na liderança.
Aqui em casa, a gente costuma colocar uma garrafa de água no congelador. É para garantir que naquele momento de muito calor e consumo irrefreável, a gente tenha água gelada para beber.
Outro dia, me deu na telha de observar o processo de descongelamento da água. Tirei a garrafa do congelador, e a bicha estava puro gelo, dura como uma tora de pau-ferro. Pus sobre a mesa e fiquei ali na bicora dos acontecimentos.
Depois de um tempo comecei a perceber as modificações. E são aquelas, óbvias, que a gente está encriquilhado de saber. Aparece uma camada de água na parede externa da garrafa e por dentro, o gelo começa a derreter e voltar para o estado líquido.
Usei este exemplo da garrafa de gelo quando fui explicar a chuva, numa cartilha que elaborei para a Secretaria de Meio Ambiente de Barcarena, e que foi usada numa campanha de educação ambiental desenvolvida junto à comunidade. Os fenômenos que ocorrem na escala da garrafa sobre a mesa, são da mesma natureza daqueles que se realizam em escala planetária. E justificam zonas climáticas, alterações sazonais no ambiente, fluxo de calor, correntes de ar e das águas dos oceanos.
Espio e me entrego a sensações e delírios. O tempo é o transe, é o destempero e a desordem. Me reconheço nas minhas dispersões. Acolá, ao pegado do muro, a debilidade do jambeiro e o acanhamento do pé de jucá capturam uma fria reação. O amargo da casca caduca, o discreto vigor do verde airoso das folhas impressionam meus sentidos de apreensão e dúvidas. Sobre a mesa o instante líquido escorre pelas minhas imprecisões. A garrafa de gelo derretendo em cima da mesa é o presente injusto e inglório. Mais à frente, diante da luz, o corredor autônomo, o desfiladeiro de argamassa, o labirinto previsível se encharca do cuspo viscoso dos felinos. Mas é preciso se adiantar, ultrapassar esta barreira comezinha e ganhar a rua porque o Brasil é um gigante desperto que lança uma infinidade de gases poluentes na atmosfera.
O instinto me traz de volta à garrafa e ao pulsar universal sobre a mesa. A Substância mudando de estado físico. A água que surge pelo lado de fora da garrafa e que induz à crença de um milagre. Num repente volto a um jambeiro condenado e a um pé de jucá abandonado. Sinto nos olhos o amargo da casca das árvores. E temo pelo futuro se realizando ali a alguns segundos de mim.


sábado, 8 de dezembro de 2018

crônica da semana - quebrando o gelo


Quebrando o gelo
A lembrança mais marcante, aquela que se instalou profundamente na minha memória climática, é a daquele bonecão inflável do papai Noel que ficava ali no largo de São Brás. Era uma fase da vida, início dos anos 2000, em que eu passava por lá, de ônibus, plena meio dia, vindo da universidade. Azul de fome, a cara de pupunha brilhosa, e em tempo de correr doido de tanto calor, mas ainda arrumava uma beirinha de resistência para me apiedar do bom velhinho torrando debaixo daquele sol de novembro.
O bonecão, erguido por fios resistentes, e atado às estruturas dos prédios comerciais do entorno, compunha um cenário, olhando pelo lado da funcionalidade e da confortabilidade urbana, apavorante. Sabe aquele horário em que a temperatura bate lá em cima e a sensação térmica é de pirar de tal forma que a gente tem aquelas ilusões de ótica e, dentre as pirações, vê a pista se mexendo, tem a impressão de se formar planos espelhados no asfalto, parecendo poças d’água? Pois é. Junte-se a isso um papai Noel suspenso, como se o boneco estivesse até tentando escapar de ser fritado no asfalto. Isso pra mim, sim, é Belém em novembro.
Não essa Belém glacial que estamos vivendo nos últimos dias.
Para quebrar o gelo, devo lembrar que sou um sujeito que perscruta o tempo. E revelo, também, que reconheço o malabarismo elaborado que temos que fazer para falar e escrever as variações do verbo perscrutar. Mas, confesso, coloquei o verbo aqui de propósito, porque acho que somos movidos a desafios (eu mesmo, antes de transcrever no texto, fui até o Google umas duas vezes para me certificar da grafia, porque nunca acho possível acertar de prima, o termo e o jeito desta palavrinha tão desafiadora).
O meu desafio diário conta com os conformismos do tempo. Ano passado, o final de novembro foi de uma secura, de um poeiral, de pressão atmosférica baixa, vento e muita onda na baía do Guajará, nos finais de tarde. Não foi diferente dos outros anos que tenho perscrutado. Para mim, era certo e batido que chuva, ainda que fininha, só viria lá pelos meados de dezembro.
Mas quite. Veio sem nem esperar novembro dar o até. Entremeada entre fina e grossa, e encarreirada, varando os dias e as noites. Bem perscrutadinho, nos dez últimos dias de novembro, posso afirmar que choveu pra dedéu.
Meu amigo Rubem Neto, que também é um perscrutador informal do clima, me enviou esta semana, declaração divulgada pelo Instituto Nacional de Meteorologia, que diz ser mesmo, esse toró, uma surpresa. E que este novembro está registrado como o mais chuvoso dos últimos 30 anos.
Eu falei ali atrás, das altas temperaturas. E estava mesmo um forno até dia desses. A chuva trouxe temperaturas mais brandas. Aí, já viu, esfriou um pouquinho, a gente põe logo o casaquinho. Eu já estou dormindo de meia, e nem tenho vergonha de dizer.
É natural o corpo sentir. Em mim, me dói logo o reumatismo. Nada, nada, foi uma queda de pelo menos 10 graus, de uma hora pra outra. Isso, para o paraense, é um choque térmico. Risco de ter congestão e ficar com a boca torta. Tem que se aviar nos zelos e se agasalhar mesmo.




sábado, 1 de dezembro de 2018

crônica da semana - quinhentos mirréis


Outros quinhentos mirréis
Meu coração tem aquele sereno jeito denunciado no Fado Tropical do Chico Buarque. Fica só na dele. Batendo com intenção. Vibrando com dolo. Mirando, cadenciado, outros corações.
É dado molengão que só ele às artes da paixão. Dor outra não conheceu que não fosse a do amor impossível, aquele negado cruelmente. De mal qualquer sofreu um dia que não houvesse sido ilustrado pelo romantismo mais desbragado, pela mais poética jura de enlevo ou adoração.
Era um cara acostumado às peripécias do coração. Angústias me eram combustível para versos verdadeiros sem rimas, mas aquecidos, sublimados. Um beijo negado era um isso para eu evaporar de mim. Leve nos padeceres, abismal nos meus devaneios, fluido nos meus ardentes desesperos.
O lírico pulsar dentro de mim, atualizava a cada instante a doce certeza de que definharia, na boa, dos males do amor, sem dizer um ai.
Agora de outros males do coração, já é outro papo. Aí são outros quinhentos mirréis.
Pois não é que o bichinho aprontou. Em agosto próximo passado, dando aquele pique na esteira, no exame de rotina, a minha corrida foi subitamente interrompida. O médico me mandou descer, não tirou os conectores e pediu que eu esperasse lá fora. Qualquer coisa, friozinho incomum, tonteira, essas piloras estranhas, que eu batesse na porta imediatamente. “Como assim?”,pensei cá com meus tênis de correr na esteira.
De lá até aqui, foi um correr atrás (sem correr, e sem fazer esforço nenhum) cauteloso, objetivo. Com traço e jeito pra não desesperar. Exames pra cá, consultas pra lá. Diagnósticos, prognósticos, avaliações. O troço teve remoso.
E eu que sou, no duro besta, não! Logo que vi a guinada do vento, tratei de me aviar. Após ter a interpretação do exame ergométrico, me entreguei à sensaboria de novas experimentações culinárias. Sem o sal que para mim era a luz do mundo. Sem a sedução do açúcar, sem a ousadia de um hambúrguer do canal com direito à catchupe e maionese à vontade. E sem, oh, dor... E sem a rodada de gelada no final de semana.
Dei uma aquietada, e só com esta revirada na rotina, perdi quase cinco, dos oito quilos necessários para harmonizar o meu IMC.
Foi uma cartada certeira. Meu tratamento vai exigir mudança de hábitos. E eu já estou no meio do caminho nas conquistas.
Meu coração sempre foi afeito a afetos. Disponível às liberdades e às diversidades. Não lhe apraziam as regras ou estatutos. Arrisco dizer que se deixava levar por tentações bandalhas, pra lá de livres. Era coração bola de balão. A mecânica fisiológica fundamental da minha vida era mundana. Um músculo insubmisso. Um vândalo gerador de impulsos eletromagnéticos e de cargas potentíssimas de carinhos, paixões, afeições, amores, paixões.
Esmigalhado por uma corrente passional arrasadora, dizimado pelas ilusões do amor, aviltado por ‘retoques trágicos’, o meu lírico pulsar lembra a doce certeza de que extinguir-me-ia, na boa, sem um ai.
Por outras paradas, não... Não seria na boa. Aí, se dariam outros quinhentos mirréis.
O jeito é capitular, pedir pira-paz. E me acostumar com a sensaboria das dietas e dos dias.

sábado, 24 de novembro de 2018

crônica das semana - medico da baixada


Os médicos da baixada
O lugar era um abandono só, com imensos lagos formados no meio da rua desde a saída do asfalto, lá em cima, e que se estendiam até o bairro vizinho da Sacramenta, sendo que dali pra frente eram entremeados de pontes estivadas cheias de falhas e inseguras. Não havia calçada e a frente das casas era tomada por férteis capinzais, inclusive ricos daquela espécie que a garotada usava como pequenas flechas, nas brincadeiras de final de tarde. À noite, a sinfonia era a dos sapos. No inverno, as casas eram visitadas por cobras gigantescas e jacarés silenciosos. A vida era uma aventura diária. Nosso lar ia ao fundo, a água e as imundícies invadiam as residências e traziam chamichugas e diarréias à rotina da molecada.
Um dia, à margem de um dos maiores buracos da rua, daqueles que pra passar um carro, o motorista tinha que usar de toda perícia em manobras beirando o batente das casas, um pequeno prédio começou a ser erguido, e antes que a construção se realizasse por completo, com três compartimentos acanhados construídos, uma placa subiu na fachada: Consultório Médico da Baixada. Revezando os doutores e as doutoras, diariamente, o atendimento iniciou logo e daqui pra’li se formou uma legião de pacientes em busca das melhoras.
(Antes disso, já havia no bairro, o dentista de 10 Reais. Ocupava um prédio no asfalto, na parte nobre do bairro. Era um dentista negro. O primeiro e único que conheci em toda a minha vida. A molecada da minha rua era a pri na fila de atendimento. Quando descobriu o consultório popular, tratou de fechar as panelas que só cresciam, naquela região frágil dos molares e dos pré-molares. Era comum, também, naquela época, os dentes da frente, escurecerem na fronteira entre um e outro e sofrerem corrosão ambos. Era o famoso ‘dente furado’, um mal muito comum entre os adolescentes, e responsável por aquela geração de banguelas  estilo traves sem goleiro da minha rua. O sorriso que o doutor de 10 Reais conseguia salvar, salvava. Aquele que não, ia direto para a implantação de uma chapa, pra dar uma forra pros pequenos. Ele mesmo encaminhava prum protético baratinho. Durou pouco, o dentista de dez reais. Uma coisinha assim a mais que a primeira dentição. Deixou o bairro, mas recuperou a auto-estima de um feixe assim, ó, de jovens que, antes dele, sorriam envergonhados com os beiços apertados).
Os médicos da baixada estão lá. Ampliaram o prédio, instalaram laboratórios para exames de rotina, um pequeno ambulatório, renovaram o quadro. Os mais experientes trazem na bagagem o apoio a famílias inteiras. Na minha família, do mais pequenininho até a minha avó octogenária, todos se valeram dos cuidados daquelas pessoas.
O asfalto maquiou a baixada, e os postes de luz iluminaram os escondidos. O tempo atenuou alguns sacrifícios, mas não eliminou as doenças da pobreza, não acabou com os males da fome e da parca educação. Não aplacou o oportunismo das chamichugas. Os médicos, ainda estão na baixada . Na luta diária.
As cobras e jacarés, quando chove, ainda aparecem. Mais aquelas de grandes. Mais assim, assim, de silenciosos.
                                                                              

sábado, 17 de novembro de 2018

crônica da semana - camisa de onze varas


Camisa de onze varas
Lembro benzinho da minha avó ralhando com um pequeno da rua, que malandrava debaixo do pé de acácia e, enxerido que só ele, soltava gracinhas e saliências para as alunas do Donatila: “olha, rapaz, tu ainda vais te meter numa camisa de onze varas”, vovó dizia.
Virava e revirava os ticos e tecos do cocuruto imaginando como seria uma camisa de onze varas. (Tempos depois, andando por essas matas, conheci algumas artes. Tapiris, mutás, pinguelas, jiraus. Mas não eram camisas e também, bem contadinhas, via-se que eram obras tecidas com bem mais que onze varas).
Daí que tirando dum lado e pondo noutro, cascavilhando aqui, e assuntando ali, deduzi que não se tratava de peça do vestuário, o alerta de minha avó. O recado era uma previsão de apertos futuros, de enrascadas, encalacres e perigos certos.
Anos além dos presságios de vovó, estamos caminhando para nos metermos nesta camisa. E se nada for feito, vamos ficar tesos sem nos mexer, sem rir, sem falar. A clara intenção de transformar a educação em experiências realizadas no ermo, na solidão, pode gerar uma linhagem fria, apatetada, empombalecida; uma legião de estudantes insossos.
O que dizer de uma geração que não vai saber, nem entender o quanto de superação tem o ato de, no silêncio de uma compenetrada aula de cópia, levantar e, animado por uma força inexplicável, quebrar a concentração de todos e pedir à professora para ir ao banheiro.
A segurança para atitudes ousadas assim, a vitória sobre o ensimesmamento e a timidez vêm das parcerias. Cresce com a convivência. A energia para formar dentro da gente controles e poderes, vem do meio da nossa galerinha. Sempre tem um ou dois que estão ali, dando aquela força.
O que dizer de uma geração que não vai saber, nem entender o quanto espetacularmente delicioso é, na hora que todos olham para o quadro tentando decorar o roteiro das contas de arme e efetue, desviar o olhar e mirar apaixonadamente a coleguinha ou o coleguinha do lado.
O amor nasce desse emaranhamento de personalidades. As amizades se criam no ninho de estilos, de calibres, de humores diferentes.
O que dizer de uma geração que não vai saber, não vai entender o que significa dividir um sanduíche de 'mortandela', partilhar um lanchinho que mal dá pra um; misturar vários tipos de sucos, refrigerantes, num só copo e beber de gute-gute. O que dizer de uma geração que não vai dar aquela fugidinha até o portão para comprar uma intera de chope e unha ou pastel de vento; como pensar no futuro de uma criança que não vai experimentar um sanduíche de banana ou achar normal a pergunta “o que é isso?”, e a seguir o rogo “me dá um pedaço”. O que dizer de uma geração que não vai se alegrar com a campa anunciando a hora do recreio.
Educação à distância não ativa a solidariedade, nega o florescer da generosidade, sufoca o companheirismo. Suprime experimentações gastronômicas. Propõe uma geração de robozinhos egoístas, arrasta nossos filhos para dentro de um eu solitário e derrotado. Como advertiu minha avó, admitir este tipo de futuro é socar-se dentro de uma camisa de onze varas.



sábado, 10 de novembro de 2018

crônica da semana - a perereca sapeca


A perereca sapeca
Mesmo que a gente seja alheia à pesquisa, tenha horror a uma consulta rapidola ou que despreze qualquer informação mais aplicada e objetiva, não tem escapatória. Ao nos depararmos com aquele bichinho de pernas finas e longas, de fácil fixação nas paredes; ao perceber aqueles olhões esbugalhados, e tanta agilidade nos saltos, instintivamente, admitimos se tratar de uma perereca.
O susto abona a definição taxonômica. Toda vez que encontrava uma em casa, não pensava ser sapo ou rã. A espécie que me ocorria enfrentar em longas tentativas de devolução ao seu habitat, era a perereca.
Não tivesse eu uma necessidade qualquer de abrir aquele armarinho que ficava embaixo da pia, não nos toparíamos. Um lugar escuro, úmido, de vez em vez a companhia de um barulhinho familiar de água correndo, era um ambiente agradável para a bichinha. Deixa estar que, foi-não-foi era um susto e um salto.
Morava na Vila dos Cabanos, lugar que tinha uma concepção urbana, à época, ainda tolerante com áreas verdes e uma população animal diversa. Era comum, nossa casa ser visitada por camaleão, cobras, pequenos roedores, e toda a linhagem de anfíbios. Na maioria das vezes as visitas ficavam do lado de fora, pelo quintal, no alpendre. Só a apresentada da perereca é que ousava uma intimidade.
A cada encontro, uma luta para convencer a zoiuda a voltar para a casa dela. Era uma peleja. Usava de vários artifícios. Fazia menções, batia palma. Gritava uhuu! Mas, à menor aproximação, a perereca se desviava com um salto espetacular. Se pregava no fundo de uma prateleira, atrás da porta. Até que desaparecia num estratégico e insondável esconderijo. Eu sempre desistia. Deixava pra lá. Aceitava aquela convivência conflituosa e gosmentinha.
Um dia, sem que a malícia me acometesse. Num indiscutível acaso, flagrei a bichinha saindo de casa. Estava ao pé da porta, aquele corpo esverdeado. Esticou as pernas, vergou o dorso, foi se ajeitando, se arrastando. Se espremendo contra o chão. Passou a metade do corpo. Fiquei só observando aquele contorcionismo. A outra metade, que ainda ficou para dentro de casa, foi se adelgaçando, se esticando, até que foi deslizando pela fresta da porta, para fora em silêncio e sem traumas. Uma frustração me abateu. Tantas vezes, abri toda a casa, dando várias opções para que a perereca se escafedesse. Estimulei, Incentivei com palavras pouco simpáticas. E ela preferiu sair naquela situação desafiadora, de apertos e deselegantes adelgaçamentos abdominais.
Este desfecho aconteceu, penso eu, outras vezes, sem meu testemunho. Foram muitas visitas. Não eram, obviamente, os mesmos indivíduos (morei mais de quinze anos na mesma casa e acho que nem a luta diária contra os predadores, nem as agressões urbanas, garantiam tanta longevidade às pererecas). Estava na natureza delas que, no mesmo repente que apareciam e causavam um rebuliço em casa, espremiam-se sob a porta e desapareciam.
A perereca sapeca é uma unidade contestadora, um ensinamento. Estabelece e fortalece o instinto e me estimula a acreditar que o susto pode ser superado e reinterpretado.



sábado, 3 de novembro de 2018

crônica da semana- arroz integral


Arroz integral com chicória
Um filme vai rodando na minha cabeça enquanto vigio aquela porção de arroz que está no molho de ontem pra hoje. A ansiedade é controlada, a expectativa é medida, naquele rito paciente de hidratação. E o filme em quadros velozes de milesegundos pra menos, desliza na tela submissa da minha memória.
(As passagens alegres de amigos diversos, os beijos escondidos de quintais, a verruga sangrando que nunca sarava. O estrepe no pé, o golpe beiçudo, o tempo cinza com cara de que vai chover já já).
O arroz integral tem aquela cor sujinha, como se fosse catado e esfregado no terreiro. Repousa sob um tanto de água desde ontem e o tec tec da memória passa e repassa lembranças. Acho que é bom estender os braços sobre a mesa, descansar a cabeça mesmo sem conforto, apoiada na cava do ombro e, sem perder o silêncio da terrina do arroz de vista, sonhar de olho aberto.
(Bicicleta desembestada no prumo do igarapé do Zé. Te ajeita, menino, passa um talquinho e vem pro alpendre apreciar o movimento da tarde. Come e te conforma. Dorme, dorme, te aquieta que a fome passa. O turvo dos dias ameaçam o presente. Retrohistória sem luz. Blecautes de razão. Homem ao mar de horrores. O moleque malino saindo lá detrás pra chutar a canela do coleguinha cá na frente. Humilhação e pobreza. Coroa de espinhos no dedo mindinho. Alicate aparando as unhas. Intolerância com o outro. Inveja. Torpeza).
“O arroz integral diminui os problemas intestinais. Melhora o metabolismo da glicose nos diabéticos. Protege o sistema nervoso devido à vitamina B1, aumenta a saciedade.”
Quando sai da terrina e vai ao fogo, o arroz integral cresce em conceito e propriedades. Depois de pronto, uma colher das de sopa, basta para garantir um cumê de sustância. Parece que a gente comeu um alqueire todinho naquela colherada.
Mas ainda não é tempo. A hidratação ajuda no cozimento, catalisa o ponto al dente. Enquanto não se embebeda de funções e qualidades úmidas, a porção dentro da terrina é por mim velada com carinho e atenção.
(Recortes controversos de saudade. Amigos mortos. Amigos desaparecidos. Gente estúpida do faz de conta. Gente que brilha e se alia. Cenas desconcertantes se desdobram. Em amor. Mamãe. Cidadã que criou 4 filhos que se estranham, que se arranham. Não são vossos filhos. São filhos e filhas da ânsia louca, do delírio santo, do estresse vivo. Do desvelo e das tristes descobertas de sarjeta e de bancos de praça abandonados à sorte da noite. Amigos sumidos. Irmãos sozinhos).
Houve de por agora, eu abandonar o arroz limpinho, brilhosinho, o arroz branco polido e me bandear para o arroz integral sujinho. É hora de experimentações subordinadas aos vereditos da natureza. O tempo é de cautela. É a vez de desopilar o humor, de enfrentar insanidades com a razão e um maço de chicória.
Enquanto não recuperamos o tino; até que tornemos do mitológico reino de Hades, até que desçam os letreiros, acendam-se as luzes e até que acabe o filme que passa na minha cabeça, a porção de arroz integral dentro da terrina é por mim velada com espanto e apreensão.


sábado, 27 de outubro de 2018

crônica da semana - frango com quiabo


Frango com quiabo
Fico pensando o que dona Adélia diria sobre esta situação.
Era nossa cozinheira, na primeira fase, dos anos que trabalhei em Rondônia. Nunca comi tão bem.
(Haverá um tempo em que o sal não servirá para salgar. Tratar-se-ão os fatos, as rimas e os versos à revelia das especiarias. A pimenta perderá o reinado e ao cravo da índia, um único palmo de terra sequer será dado para que cresça e se multiplique. Os temperos e os gostos da vida estão dando tiau, cara de pau).
Os dias de dona Adélia eram com um livro de receitas culinárias debaixo do braço. Não antes de um mês, repetia pratos. A cada refeição, uma surpresa. Cada uma, mais deliciosa que a outra. Na rotina, cozinhando ali para o baixo clero da empresa, dona Adélia se superava. Quando recebíamos visitantes, então, o manjar era precioso. Divino.
Fazia uma deferência a um grupo de diretores mineiros. Quando sabia que viriam nos visitar, já anunciava um frango com quiabo daqui, ó.
Trouxe esta combinação de frango com quiabo comigo. Adaptei o estilo mineiro. Faço com alma de paraense. Ao final, o prato se distancia no sabor, na textura e no tempo, daquela receita consagrada por dona Adélia. Mas para mim, já vale. Quando cozinho a minha especialidade aqui em casa, a galera come chega fica triste.
Os componentes básicos somam uma porção de frango com ossinho, sal, pimenta-do-reino, salsa, cebola picada, maxixe em cubos e, obviamente, quiabo. De três a cinco maços. O modo de preparo é o tradicional, com refogado, e cozimento controlado com água e fogo baixo. O resultado é uma lembrança forte, no sabor, do verde do quiabo criptografada num molho uns dez pontos abaixo do ponto do caruru. A presença do maxixe é um reforço a este sentimento vegetal, verdoengo, que mesmo contradizendo a lógica dá ao molho uma personalidade delicadamente áspera.
O prato da dona Adélia era diferente. Dispensava a umidade, o molho. Preservava fielmente o quiabo em pequenas rodelas e era servido para contato simples. Parte quiabo, parte frango. Ou seja, quem não era mineiro, e não tinha o costume, até dispensava a parte do quiabo e se refestelava apenas com o frango. Era um prato que se destacava por ser óbvio. Iconográfico. Ao contrário da minha versão que é simbólica, baseada em índices gustativos.
A minha receita é doméstica e modesta. Os apreciadores se resumem à família. Participo do repasto ativamente, porque, de vera, gosto da combinação, mas confesso, com certo acanhamento. Sempre surgem comentários. Elogios, observações. No final das contas, não sobra nada. E isso é firme!
Embora satisfaça a hora, admito, sou aprendiz ante o talento extraordinário de dona Adélia, ou diante da versátil cozinha mineira.
(Haverá um tempo em que o sal não servirá para salgar. Tratar-se-ão os fatos, as rimas e os versos à revelia das especiarias. A pimenta vagará sem reino, ao cravo da índia, sequer um obséquio será concedido. O encanto do quiabo se quedará à baba ingrata e viscosa do esquecimento. A culinária do frango será penosamente óbvia).
Dona Adélia não viveria um dia sem os temperos e os gostos da vida. Eu vou viver.



sexta-feira, 12 de outubro de 2018

crônica da semana - a revolução acreana


A revolução acreana
Quando cheguei ao seringal, meu tio estava pegado, consertando um Jeep. Demorou um pouco até sair debaixo do carro. Todo breado de terra, graxa, óleo, suor, apanhou um molambo, esfregou as mãos naquele trapo tisnado, depois tirou o último pouquinho de resíduo no short e veio ao meu encontro dar a bença. Uma distância de trinta anos se estreitava ali.
A única lembrança que tinha dele contava com a participação de um carro também. Uma Rural. Havia estancado bem no meio de uma lagoa, nos arredores do igarapé do Ina. Ao descer para uma inspeção, tio Rui topou com um jacarezinho brabo. Dominou o bicho, no meio daquele alagado, o imobilizou e depois veio fazer medo pra gente, exibindo a ferinha pela janela da Rural. Esta é uma lembrança da infância, bem lá do passado, quando eu ainda era um acreaninho de seringal.
Trinta anos depois, residente e domiciliado em Belém, por causa de uma viagem a trabalho, fui bater os costados no Acre de novo. Não perdi oportunidade de conhecer o seringal onde nasci. Sem meu pai, o seringal estava sob o comando do tio Rui, que para mim, era o homem que resolvia problemas de carro e não tinha medo de jacaré. Este reencontro confirmou a minha tese, pelo menos na parte que trata de mexer em motores de carro. Não indaguei sobre os jacarés, mas os cinco dias que passei no seringal me apresentaram um tio fascinante.
Tinha um comportamento decidido, um perfil obreiro. Acordava às cinco, pilava arroz, tirava mourão, buscava água... aqui, ali, mexia no Jeep. Eu junto. Ao anoitecer, se aquietava e aí me surpreendia com a perspicácia, com a destreza. Com a racionalidade ao lidar com as coisas do mundo. Era inteligente pacas.  Portador de fala fácil, vocabulário vasto. Um historiador.  Sabia a saga da família desde os primeiros que chegaram do Nordeste. Aventureiro. Largou-se pelos baixios da Amazônia em busca de ouro. Orgulhoso. Poderia ter sido um bacaninha na turma da coletoria, me confidenciou, mas não tinha vocação para barnabé. Bom prosador, dava definição de tudo, desde o preço da borracha no mercado internacional até os motivos da praga de cupins que consumia as paredes do barracão. Fosse hoje, manteria umas cinco planilhas de Excel para guiá-lo na rotina.
Além de sermos baixolinhas e barrigudinhos, percebi traços de meu tio na minha batidinha diária. Em muitas coisas, puxei pra ele (tenho as minhas planilhas de Excel dando definição dos meus dias).
Antes de vir embora, tivemos um longo papo ao cair da noite. Meu tio desceu ao igarapé para o banho. Eu fiquei sentado à margem. Pegou bucha, sabão e ensaboou o corpo. Enquanto se ensaboava me falava da vida, dos costumes e regras do homem, da arte de ter várias mulheres, de arrumar uma penca de filhos, de multiplicar o medo e a idéia do poder sobre os outros, à bala, se necessário fosse. Mostrou, naquele último dia de visita, a estreita distância entre o fascínio fácil e a onerosa repulsa.  
Hoje acho que o único fato solidamente indelével dessa história é o jacarezinho enfezado me fazendo medo pela janela da Rural.



sábado, 6 de outubro de 2018

crônica da semana- Umbigo do brasil


O umbigo do Brasil
Dom Bosco sonhou com a terra prometida que verteria leite e mel. Estava localizada no centro geográfico do Brasil. Um ponto harmonizado proporcionalmente no corpo de nosso adorado país, como se fosse o  umbigo do Homem Virtruviano de Leonardo Da Vinci.
Brasília seduz.  Tanto pelo misticismo arraigado ao  paralelo 15 Sul, quanto pelos pilares mundanos do poder central e seus mistérios.
Antes mesmo de saber do sonho de Dom Bosco, conheci a sordidez velada, a vilania escondida, a maldade grata que atingiu minha vizinha enfermeira-chefe. Todos diziam que era o orgulho da rua. Entre tantas e boas moças de família, foi a única a conquistar o diploma de um curso superior. À sombra confidenciavam (e eu ouvi de gente próxima, com estes ouvidos que a terra há de comer) que não ia pra frente de serviço, não acompanhava os partos na maternidade, não por ser enfermeira formada, mas “por não ficar bem, né, já pensaste”. Era o preconceito racial se mostrando com toda a monstruosidade na minha infância, para nunca mais sair da memória. Preconceito e despeito. Afinal foi a única da rua a se formar numa universidade.
Morava numa casa que tinha um quintal grande com uma mangueira exuberante bem no meio. Era a nossa companheira na brincadeira de bola que combinávamos no final da tarde. Nos dava sombra, vento fresquinho, um farfalhar festivo dos galhos. Eram muitos na família. Eu me dava com os meninos, e com as meninas. Éramos parceiros nas pelejas de futebol e nos ensaios da quadrilha que a gente tinha na rua. Cheguei a trocar olhares saidinhos com a mais nova que era do meu top. Um pirralhinho, eu, e só queria ser, me amostrando faceiro pra ela na hora do balancê. O pai morreu e a paquera nem começou. Todos nós sentimos muito. Tantos filhos ainda a criar. Ficou a mãe e a enfermeira-chefe cuidando da família.
Certo dia, durante uma chuva forte com vento e muito trovão, um raio partiu a mangueira em várias e flamejantes partes. Nossa alegria foi calcinada. O tronco ainda resistiu em pé por um tempo. Muito frágil, desidratado, foi se desprendendo em lascas comoventes, até morrer de vez largado ao chão do nosso campinho.
Quando fui ser amigo de Dom Bosco, na Escola Salesiana, tive contato com sua história. Tomei conhecimento do sonho que teve com a terra prometida, localizada no paralelo 15 Sul. Aceitei a versão oficial, e a reconheci como se fosse uma profecia anunciando Brasília, a terra de onde se irradia o poder, o planalto dominador de consciências, o núcleo denso de nuvens carregadas que nos enviam raios e trovões. Brasília sedutora.
Na rua, sussurros por sobre os muros, maledicências na hora de varrer a calçada e até entre nós, moleques, quando nos abalávamos a outras jornadas que não ao campinho da enfermeira-chefe, maldávamos aos cochichos que ela era chefe, porque não podia ir para a linha de frente, acompanhar um parto, “já pensou, uma mulher de cor, apanhar uma criança”. Preconceito. Despeito. O pai morreu, a nossa alegria foi calcinada e não foi no centro geográfico do Brasil. Foi no quintal da enfermeira-chefe, de onde vertia leite e mel.

sábado, 29 de setembro de 2018

crônica da semana - Flores


Pra não dizer que não falei de flores
Procurei flores/No teu olhar/Flores/Mas tua íris/Virou adaga afiada/De golpes certeiros/A me separar órgãos/Almas/Lábios/A me apartar sonhos/Flores, procurei/Mas teu olhar/De fogo/Sem piedade/Dizimou minha paixão/Chama fulminante/Sem poesia/Fez cinzas/Do meu coração.
Há muitos anos, queria ser poeta. Um poeta às escuras. A ser tateado. Vivia em conflito. Achava minha poesia de uma brotação sofrida. Sério! Cheia de nãopalavras, de nãoencontros, de sinsnãos. Aí veio o tempo do desencanto e me quedei à prosa. Nunca mais tentei uma quadrinha e nem dei trela paras as criações de antes. Até que, olha só, chegamos nessa doideira que é 2018.
Uma oportunidade de reatar com minha poesia, ainda sem a pretensão de criar cantos novos, porque hoje me sinto oco de líricas, rimas, ou sintaxes do coração (o mundo é cru e cotidiano demais para as livres abstrações dos meus versos). Uma chance, porém, de reanimar impressões antigas. Revelar o real valor das flores.
Quando fiz esse poema lá de cima, logo de prima, foi tido e havido como romântico, tecido sob o emaranhado indomável do amor negado. A quem mostrava, logo me voltava com o olhar marejado, insinuando o peito tangido pelo fogo imenso da paixão não correspondida. Quem lia, estabelecia a empatia, formulava conivências, solidariedade, referências íntimas de sofrimentos e perdas.
Na época deste poema, era dirigente sindical, lutava por uma causa pra lá de difícil de ser conquistada. Formava numa rodada de negociação e, me empenhava em ostentar flores ante o time que se alinhavam do outro lado da mesa (nem sempre fui a tão decantada brutalidade diante dos meus contendores. Fui useiro e vezeiro do meu charme, do meu conhecimento, e das minhas habilidades, de forma a negociar sempre bons resultados para a minha categoria. Quando emperrava é que a barca virava. Era só triscar que eu acendia. Virava um zezeu por uma causa justa, por necessidade e fé na missão). Na ocasião, eu estava que era um amor. E tão confiante, e tão seguro que, pelo andar da carruagem, já dava o atendimento à nossa reivindicação como garantido. Até que negações certeiras vindas de várias direções me separaram órgãos, almas, lábios. Como diz a galera, hoje em dia: fiquei arrasado. As flores não venceram. E escrevi o poema que fazia menção de ser romântico.
A única pessoa a quem revelei o verdadeiro sentido dos versos livres, foi o Doutor Geraldo, nosso advogado e companheiro dedicadíssimo de bancada.
Ao me perceber desmilinguido, naquele poema, me ralhou e mandou que eu tomasse jeito, criasse termo e tornasse à luta.
No fim, tudo deu certo. Doutor Geraldo, animado com as flores da vitória, pediu que eu reproduzisse o poema em uma moldura. Levaria a lembrança para lugar de destaque no seu escritório. Não deu tempo. Nos deixou e levou com ele meu carinho, minha admiração. Minha gratidão.
Precisava falar de flores. Hoje o Brasil necessita afinar o coração. Sinto Doutor João José Geraldo no calor desta hora, me triscando a tornar à luta pelo bem. Vou acender de novo. Depois, emolduro um poema.

sábado, 22 de setembro de 2018

crônica da semana - pira sisconde


Pira s’sconde no céu
A crônica é quase uma fotografia. Só não é de fato o registro do real, porque se dá no campo mágico da literatura. Aí, se permite um floreado, uma peripécia de estilo, ou como dizem os teóricos, se deixa levar pela dita transcendência.
Contando por este lado do retrato, esta semana eu me vi doidinho de marré. Tenho um blog. Semanalmente posto crônicas antigas, correspondentes ao período do ano que estamos vivendo. O repeteco tem essa intenção mesmo de comparar fatos, cenários, pensamentos oportunos.
Na semana passada, publiquei um texto em que descrevo a trajetória da sombra do poste, desde o início do ano até o mês de setembro de 2014. Quem pega ônibus no mesmo ponto todo dia sabe o quanto é importante a gente saber o lugar certinho para se esconder do sol. Mais com pouco, emboloado nesse cenário astral, menciono no texto, o encanto da alta madrugada com os planetas Vênus e Júpiter reinando ali pras matas do agronômico, minutos antes do sol nascer. Epa! Per’unstante. Aí é que o caldo entorna e achinela emborca!
Não é que agora, este ano, eu que sou dado a essas paradas, tô de olho no céu e, surpreso, presencio este mesmo encontro, só que no início da noite! Até 9 horas da noite ainda dá pra ver os dois planetas brilhando que só eles, descambando sobre a Ilha das Onças.
Isso mexeu comigo. É que algumas certezas no universo são irretocáveis. Imutáveis. O céu que os antigos viam há cinco mil anos era o mesmo de hoje. O movimento dos astros, aquela mesma caminhada: nasce num canto, morre no outro. A Coincidência de o mesmo astro, no mesmo período despontar no horizonte naquela mesma horinha, gerou nosso calendário moderno, ajudou a criar e sistematizar a agricultura, a prever chuvas ou tempo seco.
Uns anos atrás, li um livro sobre Vênus. Somente sobre ele. Cercava a história do planeta pelo lado da astronomia, do misticismo, da astrologia, da mitologia. Um livro vasto, bom pacas. E que me ensinou que, ao contrário de todos os astros, Vênus jamais pode ser visto por nós, no meio do céu. Pode reparar. Considerando a folhinha do ano, e claro, a alternância dia e noite (porque o sol conta, e ele é o maior exemplo quando plena-meio-dia arde bem em cima do nosso cocuruto), todos os corpos celestes, uma horinha ou outra, cruzam o meio do céu. Vênus não. Aprendi como consegue essa mágica, mas não vou contar pra vocês não. Posso me enrolar. É difícil pacas a explicação. O que acontece então é que só podemos ver aquele que aparenta ser o maior e mais brilhante ponto do céu, ao amanhecer ou ao anoitecer.
O motivo d’eu ter ficado bestinha da silva é que nessa história de universo imutável, pensava que em setembro, encontraria Vênus naquele mesmo horário de 2014. De madrugada. Ledo engano. Este ano, ao cair da noite, volto meu olhar para a estrela Dalva. Com o passar das horas ela vai desaparecendo, cada dia mais baixa no horizonte, até sair da noite de vez para tornar de manhãzinha e lá pros lados do agronômico. Mas aí não vai ser mais setembro. Acho que entendi e me aprazo em participar dessa brincadeira de pira s’sconde no céu.


sábado, 15 de setembro de 2018

crônica da semana - pingo do i


Pingo do i
Mamãe é que falava assim quando eu me mostrava traquina, atentado que só, mas um pingo de gente. Menor. Bem menor que as outras crianças que dividiam uma caixa de sabão comigo, fazendo de conta que aquela armação em madeira era o jipe do tio Rui ganhando os estirões que cortavam os seringais do Acre.
Não falava por mal, mamãe. Ao contrário. Havia carinho, afeto, quando deixava escapar. Tinha, codificados naquelas palavras, minha mãe, um compromisso, um zelo. Reconhecia o zinho que eu era, percebia meu futuro e firmava proteção, elaborava orientações e defesas.
Mais tarde, quando fui estudar na Aparecida, já nesta Belém que nos acolheu, ante a cisma da molecada ao me perguntarem por que eu era tão pequenininho, dava a resposta ensaiada, por anos, com a mamãe: “porque Deus quis”. E fim de papo.
Antes que se multiplicassem esses espelhos grandes nas colunas dos shoppings e dos magazines; ou antes que as fachadas espelhadas, dessas que a gente se vê e se compara com outras pessoas em atitudes espairecidas virassem arte da arquitetura urbana, eu nem percebia que era tão baixola, tão pingo do i. Agora, já na batida da campa é que de repente, comparo as escalas. Estes traçados modernos me dão noção de estatura que eu nem maldava. Porque a gente, os nossos olhos são para o mundo, e não para a gente mesmo. Não me percebia e isso nem me interessava. Cuidei sempre para me expressar em ser pra fora. Para o mundo. Um ser útil, sem moldura de madeira, feito a menção de jipe do tio Rui, tamanho ela que fosse.
Encaro os espelhos da cidade na boa e agora, ora veja, vou me comparando. Como proteção, sou obrigado a olhar pra dentro de mim, o que raramente faço, e em outras épocas nem atinava, pois via nisso sinal de presunção.
Para fora de mim, pelo comum, é que as visões me atraem. Descubro gentes. Traços únicos nas pessoas. Formulo impressões. Guardo e gravo desvios, cacoetes, simulações. Cinismos. Reconheço, como reconhecia em mamãe, carinho e afetos. Para o bem ou para o mal, meus olhos preferem medir o mundo sem pingos nos is como referência. Prefiro as notas absolutas de personalidade e caráter assim, mirando de palmo em cima.
Mas quando me vejo estimulado a olhar pra dentro de mim, não titubeio em reconhecer a minha grandeza. Vôo nas altas altitudes.
Dia desses, fui abordado por uma pessoa com quem divido meus dias no trabalho. Não costumo confundir as coisas. Na fábrica sou peão. Na lagoa, de cócoras com os sapos. Aí, por um motivo qualquer, foi mencionada a minha condição de escritor. Sem disfarçar, meu interlocutor vilipendiou, fez pouco caso, caçoou do fato d’eu, um peão de fábrica, escrever no jornal, crônicas que, segundo ele, ninguém que conheça lê. Ameaçou fazer a bacanagem de comprar o jornal no sábado desde que eu dedicasse umas linhas a ele. Como meus olhos miram o externo, o lado de fora, havia uma possibilidade. Mas no meio do caminho, resolvi falar do baixolinha aqui. Optei voltar meus olhos para a minha história, para o interior da minha alma e medir-lhes a envergadura. Não vou falar dele não. Decidi ser presunçoso.

sábado, 8 de setembro de 2018

crônica da semana- Museu Nacional


Passeio completo
O Rio de Janeiro continua lindo. Quem viaja pra lá, já vai todo na combina de conhecer os encantos da cidade maravilhosa. O visitante fica tão encegueirado pelas fartas paisagens e fantasias que não percebe detalhes ao rés do chão. Passa batido na rica história das almas e do solo onde pisa. Uma temporada no Rio é, pelo comum, montada sobre um oba-oba clássico e plenamente justificado.
Aconteceu comigo da primeira vez que fui pra lá.
Até o momento em que fui estimulado a variar. Um casal muito simpático se aproximou do nosso grupo, na Cinelândia, atraído pela camisa do Paysandu que eu estava usando. Gentis, puxaram conversa e falaram de uma temporada que passaram em Belém. Depois das trocas de gentilezas e empatias (o Paysandu), nos convidaram para dois passeios fora do script. Um era para o Centro de Tradições Nordestinas; o outro foi para conhecer o Museu Nacional. Marcamos para a noite o forró em São Cristóvão e o Museu para o dia seguinte. Ninguém escapa impune a uma buchada de bode. Daí que afrontados, no outro dia, ficamos devendo o Museu.
Aí, passou, passou, e numa outra oportunidade, fuçamos promoções de passagens, o tempo era bom pra pobre viajar, podíamos levar mala grande. Fomos bater no Rio de novo. Demos a forra. Fizemos tudo diferente. A única agenda que permaneceu a mesma foi a da Lapa. O resto foi tudo novidade. Conhecemos a outra face do Rio de Janeiro. Um dia muito especial se deu na visita aos vários museus da cidade. Foi quando conhecemos o Museu Nacional.
Já éramos apresentados assim, de longe, eu e o Museu. Durante o 45º Congresso Brasileiro de Geologia realizado em Belém, no ano de 2010, era presença constante no estande da instituição. Na oportunidade, ganhei um souvenir representando o maior meteorito encontrado no Brasil, o Bendegó, que foi resgatado por D. Pedro II e fazia parte do acervo de Ciências Naturais.
Minha linha de interesse se deu por aí. Dessa vez, quando fui ao Rio, não furei o script, procurei o Museu por causa do meteorito.
Mas o Museu era muito mais. Um ambiente fascinante, de incontáveis saberes. Durante a minha permanência lá, percebi que o Museu recebia muitos estudantes das escolas públicas para visitas monitoradas.
Encontrei com uma turma na sala dos dinossauros. Era indisfarçável o encanto da meninada ao se deparar com os fósseis gigantes. O instrutor, numa sacada genial, reservou uma surpresa. Após apresentar as espécies montadas à nossa frente, pediu que fechássemos os olhos e erguêssemos a cabeça. Quando mandou abrir, nos vimos sendo observados por um enorme Pterodáctilo (o esqueleto do réptil voador estava montado no teto). Um dos garotos exclamou: “puxa vida! Por que não vi isso antiins” (e tento, na escrita, reproduzir a fonética nervosa e ao mesmo tempo deslumbrada do garoto. Porque é assim que o prazer do conhecimento se realiza na gente. Chacoalhando a alma, subvertendo os sons ordinários, transcendendo a monotonia vil do obscurantismo. E faço uso dela, desta fonética nervosa, também, para expressar tristeza e indignação: por que não cuidamos do Museu Nacional antiins!


sexta-feira, 31 de agosto de 2018

crônica da semana - refugiados


Refugiados
Raimundinho veio do Xapuri, desceu no Ver-o-Peso e foi morar na Pedreira, com a família.
O casal Charlote e Thomas desembarcou ainda no oceano. A mais de duzentos quilômetros da costa. Achavam que estariam mais perto do oriente, para recordar a terra natal. Viveriam a vida toda de saudades.
Ernest, Astrid, Edwiges, Andrews e a turma do baralho, nas noites eternas da viagem, apostaram na península. Acordaram as crianças, vestiram-nas com linhos finos e desceram para aquela ponta de terra com os olhos vidrados de sono e com a boca seca. Logo nos primeiros passos, além do banco de areia, achariam água doce para aliviar-lhes a sede.
Os rapazes Thog e Mendelson, juntaram-se a multidão que ficou no estuário. Equilibravam-se no trapiche, na hora do desembarque, revezando os cuidados com a bagagem e a pequenina Diva, uma cachorrinha doce de barbicha acutilada e branca. Quando pisaram em terra, deram-se as mãos, beijaram-se e deixaram a Pincher explorar os entornos do futuro.
Raimundinho sentiu o vento, consultou o coração e foi morar na Pedreira com a família.
Muitos seguiram em frente. Subiram o rio em busca de ouro, prata, balata, terra boa e roxa; uma temperatura mais branda, látex, ervas e baunilha. O verde da floresta, o infinito das águas e céus. Cruzaram tratados e subverteram ordens.
Hannah, Heidi, Herman, Oliver e Dylan ainda dançam no convés. Dia e noite sem parar. Trazem a alegria impregnada nos corpos vermelhos de tanto sol e nas mentes crivadas de generosidade. Formam uma irmandade, uma rede de recepção, de acolhimento. Sobem e descem o rio em todos os sonhos, em todas as vontades, em todos os transes. Embalam de cantos e danças a aventura de viver. De meando em meandro. De meandro em meandro.
Benedito, Chaves, Juan, Aloch, joiel, Brandt e ainda Ketô formam o grupo místico que se lançou às montanhas. Lá onde nenhum navio, nenhum barco ou canoa simples consegue chegar. É um lugar alto e frio, que transforma o grande rio num filete de água cristalina. Lá de cima miram vales, serpenteio de canais, aves baixas, verdes densos. Divisam limites e barreiras impostas pelos costumes humanos. Percebem sons secos, vapores ancestrais, pontes de recomeços. Há chance. Uma remota chance, logo abaixo do céu.
Lá de cima o que se vê é que o espaço não é marcado, não tem divisórias, nem trancas à chave, nem arames pontiagudos, nem políticas excludentes.
O que se avista lá embaixo mesmo são conceitos impostos pelos assustadores costumes humanos.
Alguns preferiram as ilhas vulcânicas por causa da sensação de proximidade com a pátria amada. Outros deram com a península e reinventaram a história. Uma multidão aventurou-se pelas margens, em busca de riquezas. Um grupo, além de qualquer compreensão, dança, por séculos, animando sonhos. Das montanhas, a transcendência e a miragem nos alertam dos falsos caminhos e das fraquezas humanas. E admitem milagres (uma remota chance).
De meandro em meandro, uma ponte de recomeços, um quê de generosidade.
Raimundinho veio do Acre, desceu no Ver-o-Peso e foi morar na Pedreira, com a família.
Éramos todos refugiados.


sábado, 25 de agosto de 2018

crônica da semana - teima


Teima
O Luís Fernando Veríssimo é um cronista aquilatado. Tem um texto valioso. Leio Veríssimo desde que era bebê, em Rondônia. Desde a explosão que foi “O Analista de Bagé” ou o vendaval que se tornou a publicação de “Ed Morte”. Sou fã do cara desde aqueles tempos em que a gente conseguia as publicações dele somente pelo Círculo do Livro. Edições capa dura, bem produzidas e que demoravam quase dois meses pra chegar, via correio. Por essas e por outras acho que temos certas intimidades. Certas empatias. Disse isso pra ele, em uma das edições da Feira do Livro, ainda no Centur.
O que se torna e o que se deixa é que acabei de ler mais uma coletânea do Veríssimo e me vi de novo, alinhado com os mesmos sentimentos, as mesmas manias e as mesmas teimas em uma crônica em que o criador da “velhinha de Taubaté” impinima com a passagem do milênio. Teimo do mesmo jeito.
Em 1999, me emboletava em ferozes e intermináveis discussões sobre a virada do milênio. Lembrando: Houve uma manipulação que nos enfiou goela abaixo que o século 21 começaria no dia primeiro de janeiro de 2000. A minha tese e a do meu cronista preferido considera que o terceiro milênio começou de vera, no dia primeiro de janeiro de 2001. E haja teima. A grande mídia, a Onu, a astrologia e até o mundo binário da computação embarcaram na onda. Inventaram o tal do “bug do milênio” que viria ser a besta apocalíptica da troca de algarismos na virada do século. Não sei o argumento do Veríssimo para validar a tese, mas a minha vem lá da quinta série. Minha professora de História, no primeiro ano do ginásio, demarcou a contagem do tempo considerando o ano 1 da era cristã. Então o primeiro milênio foi do ano 1 ao ano 1000, aqueles anos marcados pelas trevas medievais. O segundo milênio, obviamente percorreria do ano 1001 ao ano 2000, ora bolas. Em 2001, sim, é que começaria o terceiro milênio. Estava lá no meu livro TDH (Trabalho Dirigido de História, que a gente recebia do governo). Sei que tantas foram as lambanças e as firulas que mesmo o mundo virtual provou ser sem sentido os medos. Nenhum computador pirou. Uns ajustes na data e hora no canto da tela do computador, dessas que faço todo dia porque meu PC tá meio cansado, redimiu toda a humanidade das fakes apreensões.
Outra teima que me faz encrencar com o cristão que for é aquela do “que dia é hoje?”. Alguém sempre vem todo metidão dizendo que “hoje são 25 de agosto”. Para mim, esta resposta é um atentado sonoro. Um acinte ruidoso. Uma descompressão fonética violentíssima, capaz de fazer saltar do coco da gente os tímpanos e a paciência. Dizem os entendidos que esta forma é certa. Morro sob tortura afirmando que o verbo é no singular: “hoje é 25 de agosto”. Ávido, recorro aos compêndios gramaticais ortodoxos. Oportunamente, me agarro à elipse, figura de linguagem que me socorre.
Nos encontramos nas teimas eu e Veríssimo. Às vezes, preciosismos literários. Na vida real, as questões são mais substanciosas. Idéias e ações podem apagar o mundo. O risco de nos quedarmos à escuridão nos inspira à teima renhida. Sem medo de ser feliz.

domingo, 19 de agosto de 2018

crônica remix- o rio do meu lugar


O rio do meu lugar
Belém é uma cidade entregue às águas. Castelo Branco quando varou aqui pensou num lugar estratégico para a ocupação da região (aliás, o que os portugueses sabiam fazer bem era ocupar pontos estratégicos. Muito depois de Castelo - e por um bom tempo- as nossas esquinas seriam testemunhas desta virtude. O cheirinho do pão quente, Três’orinha da tarde, denunciou sempre a presença prazerosa, bem a calhar, de um lusitano).
Mas não fez só isso. O fundador da Feliz Lusitânia nos legou uma paisagem líquida, volumosa, dinâmica: a orla de Belém. Esta aqui que obedece a linha que vai do Ver-o-Peso até, mais ou menos, Icoaraci, Mosqueiro. Tem uma direção Norte-Sul (depois, ela dá uma cambada para Leste e aí já toma ares de costa atlântica) e é responsável pelo nosso orgulho, pela nossa soberba.
A frente de Belém é composta pela somatória das águas do rio Guamá e rio Acará. O rio Guamá vem-que-vem, desde Ourém onde a água é mais clarinha e veloz (tem até cachoeira!). É um rio subversivo: corre de Leste para Oeste. Vem ao contrário, da beirada, para o centro.
Já o Acará, é um rio mais doméstico, mais nosso, mais íntimo. Vem do centro, para a beira. Traz o dialeto ribeirinho em si. Vem carreando notícias dos matapis. Vem prevenindo para o banho no balneário (trouxeste short?). Mas como, então? É o rio que traz as memórias de minha querida tia Irá.
Na frente de Belém, os dois rios se juntam e formam o que, popularmente, chamamos de baía do Guajará. Na verdade, um deslumbrante estuário. Ocorrem, aqui, de confronte, as grandes ondas, a alegria da enchente e a monotonia da vazante, a ventania verpertina, o pôr-do-sol dos amantes, as domingueiras festivas nos pontais.
Mais adiante, à altura de Icoaraci, e já de par com o aconchego da ilha de Cotijuba, o estuário se agiganta com o acréscimo das águas do rio Pará.
Este rio extraordinariamente grande desliza soberano pela planície. Prestativo, generoso, obsequioso. Leva e traz sonhos, ilusões, frustrações (além da conveniente aviação e miudezas em geral). Aquece e abranda saudades, no ir e vir dos “Fé em Deus”.  É o rio da integração guajarina-marajoara. Por ele, se chega a Macapá sem precisar voltear a costa. Por ele, se cruza de um mundo (de água) a outro, pelo emaranhado controverso, inexplicável de furos do baixio amazônico. Por ele, ah, por ele, se chega à praia do Pesqueiro e à Ponta de Pedras. Por ele a alma se enaltece nos segredos e mistérios da travessia.
O rio Pará tem rumo certo: o mar.
Corre de Oeste para Leste. Nasce não sei donde (aliás, nem parece que nasce. O rio Pará, simplesmente é.), mas é abnegado, decidido. Diz logo para que veio.
Quando se ajeita, lado-a-lado, com o Tocantins, o rio Pará se eleva à baía. Baía do Marajó (aquela de banzeiros e sacolejos de dar entojos e  arrupios).
E vai derramando suas águas sobre os tributários mais modestos, mais melindrosos, mais finos. Quando o rio Pará quebra para Leste e ganha o status de baía, não tem pra ninguém. Nem para o Guamá, nem para o Acará. Só dá ele.
Daí, Belém, Outeiro, Mosqueiro, também recebem a águas arrogantes, rigorosas do rio Pará. O rio, aqui na quebrada, no respeitoso estuário, vira um componente absolutista, inquestionável. E exige respeito (quem se atreve a atravessar a baía do Marajó sem pedir permissão?).
Um rio soberano, inquestionável, infelizmente, somente para as leis da natureza. Para a lei dos homens, um rio frágil.
No último final de semana, quis dar um mergulho na praia da vila do Conde, que é banhada pelo rio Pará. Mas não deu. Tive medo de sair de lá cheio de pira.

sábado, 18 de agosto de 2018

Crônica da semana - bolsa


Com bolsa e sem bolsa
Vontade que todo mundo tinha, era ter uma bolsa, na minha época de Escola Técnica. Penei que só para ganhar uma. Eu que era precisado pacas, dei graças ao bom pai quando recebi o benefício no último semestre do curso.
Sempre trabalhei por conta e tentava não depender desses vínculos formais. Em todo período da Escola Técnica, segurei as pontas aviando as finas confecções em fio-de-escócia, na barraca que a mamãe tinha na feira da Pedreira (em frente ao Bazar Brasil, como anunciava o reclame da rádio cipó). Era um ganho pouco e incerto, o da feira. Um dia tinha, outro não. Aqui, não vendia nada, mais adiante bamburrava. Uma grana curta, mas certa, vinha a calhar.
O numerário da bolsa, porém, se mostrou picado. Parte vinha do MEC e outra parte resultava de recursos próprios da Escola (não sei donde vinha não, mas esse era o mais certo. O dindim do MEC atrasava que só).
Continuei na feira. Ia abrir e fechar a barraca todos os dias e minhas irmãs aguentavam  o expediente que durasse minha bolsa. Chegava à Escola pelas oito da manhã. Fazia as tarefas, elaborava trabalhos, participava das aulas de Educação Física, com o Serginho, e me mandava pra Pedreira. Fechava a barraca, voltava para as aulas da tarde, na Escola e comia por lá (nessa época tinha sido criada a ‘merenda’ na Escola Técnica, e era a minha valência. Como bolsista, podia fazer as três refeições oferecidas no dia). Voltava pra casa só de noitinha.
Com o meu primeiro pagamento, tirei uma estante no crediário de uma loja tradicional aqui da cidade que, olha só, até hoje ainda resiste às pressões das grandes redes do ramo. Produzia trabalhos na escola. Mapas, artigos. Lia mina de ‘apostilhas’ (sim, até dia desses eu falava ‘apostilha’). Começava a minha coleção de rochas e minerais. Não tinha lugar pra guardar meus tereréns. A estante veio para satisfazer esta necessidade.
A grana da bolsa era uma grana disputada. Outros interessados reivindicavam este recurso federal. Então era uma ação de governo, como hoje, minada, atacada para não resistir. Listada para acabar. E como salientei, a estratégia era fragilizar esta ferramenta de ajuda ao estudante. A falha no pagamento que vinha do MEC quebrava nosso orçamento e tirava a credibilidade do benefício.
Os atrasos foram tantos, que quando viajei para o meu primeiro emprego depois de formado, devia umas quantas prestações da estante. Só deu pra pagar a entrada. As outras parcelas ficaram penduradas nos pregos do caminho, junto com os cheques do MEC que nunca chegavam.
Sem esperança de receber, a loja mandou buscar a estante de volta. Mamãe ficou num desespero só. A estante era meu maior bem e uma peça que lembrava o filho, agora morando longe, nos sertões da Amazônia. Quando os carregadores colocaram a estante no caminhão, para devolução, mamãe subiu junto e foi bater na loja com o gerente. Na chegada, nem descarregaram o móvel. Mamãe chorou, virou, mexeu, convenceu e voltou pra casa com a estante. O meu primeiro salário como Técnico em Mineração, enviado de Rondônia, pelo banco, como ordem de pagamento, quitou a dívida.