sábado, 10 de novembro de 2018

crônica da semana - a perereca sapeca


A perereca sapeca
Mesmo que a gente seja alheia à pesquisa, tenha horror a uma consulta rapidola ou que despreze qualquer informação mais aplicada e objetiva, não tem escapatória. Ao nos depararmos com aquele bichinho de pernas finas e longas, de fácil fixação nas paredes; ao perceber aqueles olhões esbugalhados, e tanta agilidade nos saltos, instintivamente, admitimos se tratar de uma perereca.
O susto abona a definição taxonômica. Toda vez que encontrava uma em casa, não pensava ser sapo ou rã. A espécie que me ocorria enfrentar em longas tentativas de devolução ao seu habitat, era a perereca.
Não tivesse eu uma necessidade qualquer de abrir aquele armarinho que ficava embaixo da pia, não nos toparíamos. Um lugar escuro, úmido, de vez em vez a companhia de um barulhinho familiar de água correndo, era um ambiente agradável para a bichinha. Deixa estar que, foi-não-foi era um susto e um salto.
Morava na Vila dos Cabanos, lugar que tinha uma concepção urbana, à época, ainda tolerante com áreas verdes e uma população animal diversa. Era comum, nossa casa ser visitada por camaleão, cobras, pequenos roedores, e toda a linhagem de anfíbios. Na maioria das vezes as visitas ficavam do lado de fora, pelo quintal, no alpendre. Só a apresentada da perereca é que ousava uma intimidade.
A cada encontro, uma luta para convencer a zoiuda a voltar para a casa dela. Era uma peleja. Usava de vários artifícios. Fazia menções, batia palma. Gritava uhuu! Mas, à menor aproximação, a perereca se desviava com um salto espetacular. Se pregava no fundo de uma prateleira, atrás da porta. Até que desaparecia num estratégico e insondável esconderijo. Eu sempre desistia. Deixava pra lá. Aceitava aquela convivência conflituosa e gosmentinha.
Um dia, sem que a malícia me acometesse. Num indiscutível acaso, flagrei a bichinha saindo de casa. Estava ao pé da porta, aquele corpo esverdeado. Esticou as pernas, vergou o dorso, foi se ajeitando, se arrastando. Se espremendo contra o chão. Passou a metade do corpo. Fiquei só observando aquele contorcionismo. A outra metade, que ainda ficou para dentro de casa, foi se adelgaçando, se esticando, até que foi deslizando pela fresta da porta, para fora em silêncio e sem traumas. Uma frustração me abateu. Tantas vezes, abri toda a casa, dando várias opções para que a perereca se escafedesse. Estimulei, Incentivei com palavras pouco simpáticas. E ela preferiu sair naquela situação desafiadora, de apertos e deselegantes adelgaçamentos abdominais.
Este desfecho aconteceu, penso eu, outras vezes, sem meu testemunho. Foram muitas visitas. Não eram, obviamente, os mesmos indivíduos (morei mais de quinze anos na mesma casa e acho que nem a luta diária contra os predadores, nem as agressões urbanas, garantiam tanta longevidade às pererecas). Estava na natureza delas que, no mesmo repente que apareciam e causavam um rebuliço em casa, espremiam-se sob a porta e desapareciam.
A perereca sapeca é uma unidade contestadora, um ensinamento. Estabelece e fortalece o instinto e me estimula a acreditar que o susto pode ser superado e reinterpretado.



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