sábado, 26 de janeiro de 2019


Um ano de Caravanas
Tenho pra mim, nas minhas mais garantidas certezas, que o Chico Buarque é um gênio. Tateando aqui e ali nos versos e nas prosas, já há alguns anos, sei das premissas formais, dos arranjos estéticos, das inspirações misteriosas, das inquietações e das emoções demandadas na construção da boa obra, assim sendo, íntimo da lida, e sem pavulagem, me sinto abalizado para atestar o talento impressionante do artista. Carimbo o que digo, afinal, estou falando de um usuário da palavra que consegue articular o substantivo ‘escafandro’, que significa um equipamento de mergulho, num poema de um lirismo extraordinário, sem macular nele o laivo do amor.
Desde que tempo, Chico Buarque é meu ídolo. Temos tratos formalizados. Trago marcas na vida impostas pelas composições do artista. Canções preferidas? “Todo Sentimento”, que lembra o tempo da delicadeza de minha mãe Luzia e “Pequeña serenata diurna”, que embora não seja de autoria do Chico, vai comigo pr’onde houver o amor. Até o fim.
Ver o Chico de perto, jamais passou pela minha cabeça. Participar de uma confraria de fãs, celebrar, cantarolar as canções junto com ele, era para mim, um sonho. Que se realizou no ano passado.
Entretanto...
Parece uma coisa, né. O que é bom até acontece na vida da gente, dizia eu em uma crônica, anos atrás. Acrescentando a desconfortável assertiva: não sem antes um susto devastador.
O sobressalto aconteceu quando fui ver o show Caravanas, do Chico Buarque, no Rio de Janeiro. Ganhei o ingresso. Um presente preciosíssimo de meu compadre. Fiz minha programação com antecedência, cascavilhei promoções de passagens aéreas, hotel, estadia mais em conta. Os procedimentos todos ajeitadinhos, as providências tomadas, eis que na hora de ir para o local do evento, houve um erro de cálculo do motorista de táxi que me levou e... quase que perco o show do meu maior ídolo.
Aconteceu que o motorista pegou um caminho tradicional e não contava com a grande quantidade de veículos se dirigindo para o mesmo local. O detalhe é que, no mesmo ponto, para equilibrarmos a lotação, pegamos táxis diferentes, eu e meu compadre. E ele estava com a ressalva dos ingressos. Quinze minutos depois, meu compadre já estava na porta do teatro com a turma dele, me esperando, enquanto o meu táxi, com a minha galera, estava num engarrafamento sem fim. E assim, na biqueira de começar o espetáculo. Deu-se então o tal sobressalto.
Meu compadre chegou primeiro, porque o motorista do táxi dele foi mais esperto. Imagina se aqui em Belém, a gente sai do Entroncamento, num táxi, para um evento no campo do Paysandu, por exemplo. Podemos desembarcar do outro lado, e atravessar as pistas para chegar ao estádio. Agora, consideremos que o motorista impinimasse em nos deixar na porta do estádio. E ganhasse a Almirante Barroso até fazer o retorno em São Brás. Foi isso o que aconteceu no Rio. Meu compadre desceu, atravessou a rua e chegou rapidola. Eu fiquei travado no trânsito. A sorte é que, de onde estávamos dava até pra ver o teatro. Paguei a conta, chamei a turma e saímos no pique. Chegamos na batida da campa e daí pra frente foi a maravilhosa realização de um sonho. A realização que, feito o escafandrista do poema, dou parte, passado um ano, dos particulares sucedidos.


sábado, 19 de janeiro de 2019

crônica da semana - meio dia


Meio-dia plácido cantor
Desde que tempo tô com este título na cabeça e não encaixo numa crônica. É um caso típico em que o título aparece assim, antes de qualquer idéia, de qualquer enredo, e vem procurando casa, reivindicando guarida. Surgiu durante um soninho que dei no barco, na travessia de Barcarena para Belém. Dediquei-lhe enorme respeito. Porque, olha, coisa que estimo é recado do inconsciente. Dicas daquela antecâmara misteriosa que fica entre os domínios da fantasia e da realidade. É caso de cavucar um isso, um aquilo de inspiração em favor deste título.
Posso recorrer à rotina do meu tio Tadeu para desenrolar o tema. Tinha muito de meio-dia, no meu tio. Era a horinha que chegava para o almoço vindo das bandas do centro, no afogueado do Nova Marambaia-Telégrafo. Nem tirava a camisa, porque não sentava à mesa, nu da cintura pra cima. Dos sapatos sim, livrava-se. Punha um chinelo. Comia, ficava por ali um pedacinho, puxava uma conversa, enquanto se estirava na cama para uma brevíssima sesta. Sem despertador e sem que ninguém o chamasse, acordava certo no horário de voltar. Fazia a higiene, calçava os sapatos e pegava o rumo do centro de novo, no ônibus lotado.
De outra maneira, recorro a uma cisma que o povo mais aquele de erudito tem com as minhas concordâncias. Acontece quando uso (e olha que uso que só. Sou useiro e vezeiro) a locução “em plena meio-dia”. Dou-lhe mina de guiza, pra desviar das espetadas que recebo porque, dizque, não convém usar do adjetivo ‘plena’ na construção porque a palavra justaposta ‘meio-dia’ compreende-se estar no masculino. Mas quando, já, este um! Há uma elipse na idéia. Há muito de escondidinho ante a luz à pino. Há o recato do mistério e a ocultação do óbvio. É uma expressão revolucionária, inquieta. Apresenta-se reduzida para ter mais impacto (e gerar insatisfações?).  Pretende ser a ponta afiada da lança. De contato mínimo e efeito voraz. Fosse eu pegar corda e desenrolar na íntegra o meu descontentamento, seria mais ou menos nesta pegada: “Meu pai eterno da minha alma! Essas coisas desagradáveis e violentas acontecendo logo agora, em plena hora plácida e santa do meio-dia!”. Objetiva e reduzidamente, a discordância é um desabafo.
Ocorre também que, quando a tarde vem chegando, a temperatura muda e o dia fica mais aquecido: é hora do vento virar. Antigamente se guardava um silêncio neste momento em que virava o Geral. É nessa horinha, que o dia canta. Plena hora sagrada do meio-dia, o sol cortando o meridiano, a luz na maior atividade, o vento abre o caminho entre as árvores para uma canção mítica, sem notas ou ritmo definidos. É experiência para se regar, é oportunidade de se refletir sobre as desumanidades emergentes e também sobre a estrada à nossa frente. Nada pode interromper o encanto desta hora plena do meio-dia.
A mesa está posta. Procuro palavras poéticas sem propósito de rima. Dou com uma posta de peixe estalando de douradinha finalizada na baixela. Blasfemo, nu da cintura pra cima, me avio de um prato e me ajeito para comer. Antes ligo o rádio. Uma canção inunda o ambiente de notas temperadas de ilusões. Na sequência, intervalo para o comercial e a hora certa. Em Belém, pontualmente, Meio-dia plácido cantor.

sábado, 12 de janeiro de 2019

crônica da semana- fóssoro




Caixa de fóssoro
Todas as noites, colocava uma vela e uma caixa de fósforo embaixo da rede. Tinha o maior medo de acordar na madrugada e constatar que havia faltado luz. Se a quietava. Se embrulhava dos pés à cabeça. Assim, se defendia das ferradas e do zunzunzum do poder de carapanãs que minava a casa.
Minha mãe era dada a pequenas difrações na língua. Ocorria quando ela se referia aos palitinhos incandescentes. Não sei por quais cargas d’água, declinava da pronúncia real, que ela admitia e sabia. Preferia notá-los, no conjunto, como ‘fóssoro’. Respeitando o dialeto da mamãe, recomponho nossa conversa dizendo que antes de se embrulhar dos pés à cabeça, minha mãe sempre se munia de uma vela e uma caixa de fóssoro, embaixo da rede. Por medo da total escuridão.
Bem a propósito, debaixo das grandes e contínuas chuvas que vêm arriando sobre Belém, e pela sempre possível queda da barreta, no transformador, desconfiado que só, procurei aqui em casa um cotoco de vela para uma precisão mais aquela assim da parte que diz respeito ao pavor da escuridão. Não achei uma pra remédio. Hoje em dia, perdemos a prática dos acautelamentos, da prevenção.
Quando eu era menino e dormia na rede atada ao lado da rede da mamãe, a falta de luz era uma constante em Belém. O breu da noite trazia o silêncio, a nostalgia, uma exagerada apreensão e carapanã às pampas. Qualquer movimento, levantar para ir ao banheiro ou beber um gole d’água na cozinha; verificar se a porta estava bem fechada, se a tramela da janela não tinha girado ou se não tinha ficado nenhuma sandália emborcada... toda ação na noite, exigia um ponto de luz de guia, pra gente não dar de encontro ou derrubar as coisas pelo meio do caminho. Se preciso fosse, era só mamãe levar a mão na direção do assoalho e acionar o provimento de vela e fóssoro para entrarem em ação.
Assim era Belém até um dia desses. Movida a dialetos.
Era a Belém do fogo no fio, do blecaute e das rotinas suburbanas. Da molecada batendo latas no poste quando a luz chegava (chegou a luz! Chegou a luz! Comemorávamos). Uma cidade que mesmo a cotocos de velas, brilhava para mim.
A minha Belém que ficava enxombrada (outra variação usada pela mamãe que, acho eu, vem de ensombrada, ou seja, aquela que foi coberta pela sombra) assim como as roupas no quarador dia após dia, que não enxugavam direito, quando no tempo do inverno. Era a Belém do aconchego, do carinho o dia inteirinho, dos lençóis de rede quentinhos, do caribé pra aquecer o corpo e a mente. A Belém de se socar a meninada numa rede só e ficar se esquentando, ouvindo a chuva fina no telhado de zinco.
E também era a Belém que fazia a gente estoporar (versão de mamãe, também, para o verbo estuporar) de calor, no verão das férias de julho. A cidade que exigia vários banhos por dia e sem cair na besteira de se enxugar logo. A gente vestia a roupa era assim, enxombrado mesmo.
O tempo tirou parte do brilho da minha cidade. É duro reconhecer isso. De certo, o poder de carapanã minando as nossas noites e a casa que não tem um cotoco de vela. De herança, a assimilação lingüística e saudade: aqui em casa ainda usamos dizer ‘caixa de fóssoro’.

sábado, 5 de janeiro de 2019

crônica da semana - portal camapu


O portal e os pés de camapu
Não era todo dia, mas acontecia com certa regularidade durante a semana. Minha avó me pegava pelo braço e ao cair da noite, me levava até a esquina da Lomas, para apreciar o movimento. O farol dos carros, o barulho ritmado dos motores, o impessoal desembarque dos ônibus compunham o cenário de entrada para o grande portal. Para o mundo das idéias. Meu mundo e da minha avó.
Morávamos na Marquês. Não passava carro na rua. Nossa rotina era quase rural. Casas com grandes quintais, minados de cajueiros, mangueiras, ameixeiras; assim de pés de camapu espalhados pelo terreiro. O trecho da Marquês entre Lomas e Mauriti, era de relevo salteado. Em alguns pontos, formava lagoas imensas e só permitia o trânsito de pessoas a pé, ainda que beirando o batente das casas. Em outras partes, desenhava pequenas elevações, e que eram rapidamente transformadas em campos de futebol ou arenas para os jogos de Bandeirinha e Cemitério, pela garotada. O único transporte que se aventurava na área era o caminhão da Garoto, que distribuía o refrigerante nas mercearias das esquinas. Em cada canto tinha uma.
O serão que fazíamos ao cair da noite era a tentativa de minha avó de ampliar os horizontes, expandir a percepção. Esperava reconhecer o porvir no asfalto e no trânsito iluminado da Lomas. Eu percebia o aquecimento, o fulgor rubro se acendendo na face de minha avó quando a gente chegava à esquina. Havia, como em outros cantos do bairro, bem na quina da calçada, uma peça de concreto erguida a mais ou menos um metro de altura. Não sei a serventia daquilo. Era uma coluna rija, imponente. Era o nosso ponto de sustentação. Nossa escora. Encostávamos à coluna, mãos dadas, e nos dávamos a imaginar ante a animação dos faróis.
Quantas carências antigas se encontrando ao longe. Infinitas pelejas. Sofrimentos tênues efêmeros. Dramas perenes ferozes. Víbora vida em recinto fechado. Intenso combate. Venenos dispersos e botes no ar. A meu favor, defesas esganiçadas da alma. Batalha de vida ou morte. Pés delicados despedaçando a cabeça da besta. Eita! Peleja de lida e sorte.
Quantos afazeres do lar, menino na beira da saia. Nariz escorrendo. Febre alta na madrugada. O beabá nas encruzilhadas dos saberes. A terra, o amor proibido chamando, a sedução e os prazeres mundanos. Contra a minha avó, a iminência do desenganche das mãos, o drama insuportável da solidão, o golpe fatal do adeus.
Destarte, ao largo, o credo do bem estar, do bem querer a quem me quer bem. Sem mãos dadas com ninguém. Prosperidade única. Dinheiro em penca. Vestindo amarelo ouro fartura. Eu por mim, vou muito bem. Não sei os outros. Recinto fechado. Ser feliz sozinho. Fortalecimento do mal comum se anunciando perto.
E uma coluna de água e vento crescendo no céu em uma tempestade jamais vista. O portal em fúria, Como se fosse um aviso. Eu avisei!
Voltamos outras vezes, eu e minha avó, encandeados pelos focos tensos dos faróis, às metáforas da Lomas. Amparados por uma coluna monolítica quase do meu tamanho. O coração tão perto e tão longe dos desembarques impessoais. Das ameixeiras, dos pés de camapu.