sábado, 12 de janeiro de 2019

crônica da semana- fóssoro




Caixa de fóssoro
Todas as noites, colocava uma vela e uma caixa de fósforo embaixo da rede. Tinha o maior medo de acordar na madrugada e constatar que havia faltado luz. Se a quietava. Se embrulhava dos pés à cabeça. Assim, se defendia das ferradas e do zunzunzum do poder de carapanãs que minava a casa.
Minha mãe era dada a pequenas difrações na língua. Ocorria quando ela se referia aos palitinhos incandescentes. Não sei por quais cargas d’água, declinava da pronúncia real, que ela admitia e sabia. Preferia notá-los, no conjunto, como ‘fóssoro’. Respeitando o dialeto da mamãe, recomponho nossa conversa dizendo que antes de se embrulhar dos pés à cabeça, minha mãe sempre se munia de uma vela e uma caixa de fóssoro, embaixo da rede. Por medo da total escuridão.
Bem a propósito, debaixo das grandes e contínuas chuvas que vêm arriando sobre Belém, e pela sempre possível queda da barreta, no transformador, desconfiado que só, procurei aqui em casa um cotoco de vela para uma precisão mais aquela assim da parte que diz respeito ao pavor da escuridão. Não achei uma pra remédio. Hoje em dia, perdemos a prática dos acautelamentos, da prevenção.
Quando eu era menino e dormia na rede atada ao lado da rede da mamãe, a falta de luz era uma constante em Belém. O breu da noite trazia o silêncio, a nostalgia, uma exagerada apreensão e carapanã às pampas. Qualquer movimento, levantar para ir ao banheiro ou beber um gole d’água na cozinha; verificar se a porta estava bem fechada, se a tramela da janela não tinha girado ou se não tinha ficado nenhuma sandália emborcada... toda ação na noite, exigia um ponto de luz de guia, pra gente não dar de encontro ou derrubar as coisas pelo meio do caminho. Se preciso fosse, era só mamãe levar a mão na direção do assoalho e acionar o provimento de vela e fóssoro para entrarem em ação.
Assim era Belém até um dia desses. Movida a dialetos.
Era a Belém do fogo no fio, do blecaute e das rotinas suburbanas. Da molecada batendo latas no poste quando a luz chegava (chegou a luz! Chegou a luz! Comemorávamos). Uma cidade que mesmo a cotocos de velas, brilhava para mim.
A minha Belém que ficava enxombrada (outra variação usada pela mamãe que, acho eu, vem de ensombrada, ou seja, aquela que foi coberta pela sombra) assim como as roupas no quarador dia após dia, que não enxugavam direito, quando no tempo do inverno. Era a Belém do aconchego, do carinho o dia inteirinho, dos lençóis de rede quentinhos, do caribé pra aquecer o corpo e a mente. A Belém de se socar a meninada numa rede só e ficar se esquentando, ouvindo a chuva fina no telhado de zinco.
E também era a Belém que fazia a gente estoporar (versão de mamãe, também, para o verbo estuporar) de calor, no verão das férias de julho. A cidade que exigia vários banhos por dia e sem cair na besteira de se enxugar logo. A gente vestia a roupa era assim, enxombrado mesmo.
O tempo tirou parte do brilho da minha cidade. É duro reconhecer isso. De certo, o poder de carapanã minando as nossas noites e a casa que não tem um cotoco de vela. De herança, a assimilação lingüística e saudade: aqui em casa ainda usamos dizer ‘caixa de fóssoro’.

Nenhum comentário:

Postar um comentário