sábado, 25 de junho de 2022

crônica da semana - pivide

 Pivide, pivete e a paz na rua

Eu achava que era uma corruptela de pivete. Um trato reduzido, apequenado, de desdém, desprezo. Forma de traçar uma zanga por meio de apelido. Até encontrei palavra similar, mas ao projetar no passado, não rolou a razão de ser. Achei pevide. Inclusive nos dizeres ali das bandas do Extremo Norte. Parecendo mesmo ser um vocativo, um termo de atenção a alguém, que, no entanto, carece de uma releitura, um repasse no contexto do falar marajoara, já que o dicionário aponta pra outros lados.

Há um eco pairando no ar, trazendo de volta as zangas da rua. Para todos os efeitos e as atenções, tome-se o termo pivide com uma alcunha. Uma pequena arenga escondida nos quiquiquis da rua e que depois de um escapole de cá, um nem te falo, dali, uma dissimulada corrente de alcovitagem, chega no ouvido da vizinha agraciada.

E assim se davam as intrigas de tamanhas as velhas senhoras da rua, já mães de muitos, cheias de coisas pra fazer. Com um tempinho, porém, certo para as picuinhas. E a gente no meio. A molecada não maldava entre si. Na patota, todo mundo se falava, mesmo os filhos e agregados das litigantes. A crise era lá em cima (e a gente até atiçava no leva e traz). Cá embaixo era a combina da bola de travinha, uma visita aos quintais minados de camapu, uma partida de bandeirinha pra fechar o dia à luz dos vagalumes já que por causa do blecaute, a luz da rua demorava pacas a voltar.

Debaixo da mangueira, em frente à taberna do Saulo pai de todos (diziam assim dele por causa do caderno que tinha com os ‘em a ver’ de todo mundo da rua), durante o dia aparecia um mendigo com um saco cheio de bregueços inservíveis e muita história pra contar. Também fazia seus fuxicos. Julgava. Apontava ser pecado mortal do seu Saulo da taberna, viver com duas mulheres na mesma casa. Nessa hora, tinha um ar severo, de inquisidor mesmo. Sobre ele derramava-se uma insuspeita serenidade e dava o veredito. Saulo ia arder nas chamas eternas. Quase que instantaneamente, puxava uma folha de abade, tecia um cigarrinho, dava uma talagada na garrafa de cachaça que carregava misturada às traias dentro do saco, arremedava nos enxotar, fazia menção de correr atrás da gente. Não queria mais companhia. Mas a sombra da mangueira era de todos, fazíamos um trato e ficávamos por ali, até o sol esfriar e dar a hora de formar os times para a bola da tarde, no leito da rua. Quando começava o jogo, o homem ia embora, sumia ali pra baixada da Pedreira. Noutro dia estaria ali de novo a ralhar com a gente, contar que era piloto na guerra, maldizer seu Saulo e confessar que havia namorado as pivides da rua noutros tempos, por isso ninguém mexia com ele. Sabia coisas, de arrepiar, daqueles quintais minados de camapu.

Vai ver era isso. Histórias escondidas, soterradas pelo recitado solene: se tiver vergonha na casa, não fala mais comigo. Nem passar pela caçada da outra, se passava. Era previsto sempre um arrodeio, um pelo sinal e nas fases mais tensas, uma cuspidela de nojinho no chão da pivide. Tirando pelo que o homem da mangueira falava, era uma tática eficaz mesmo, ficar de mal. Evitava trazer ao presente as traquinagens de outros tempos.

Certo dia, ficaram de bem. E nós, moleques, nem soubemos. Fui até a vizinha da frente e me enxeri na futricagem: olhe, posso lhe contar o que a pivide que mora lá perto da borracharia falou ontem? Fui repreendido na hora. Chega de apelido, moleque, respeita. Ela tem nome. E umbora parar com a fofoca!

Rolou a paz e o homem da mangueira não apareceu mais.

domingo, 19 de junho de 2022

crônica da semana - sonambulismo

 Sonambulismo

Nos dias, até hoje contados de junho, eu e a maioria das minhas mais antigas amizades atravessamos o horizonte de eventos, marcamos na folhinha 59 anos de existência e miramos lá na frente a fase dos sessentões. São amigos cultivados há muito tempo. Da época, como se dizia antigamente, do científico, que para nós foi a Escola Técnica. Um deles, o recordista, vem bem de antes que desde que tempo. Da Aparecida, data esta amizade, período pueril, dos primeiros caminhos suaves. Nos encontramos por agora, para uma comedida celebração. Fizemos um balanço da jornada, contamos as perdas, auferimos os ganhos e...refletimos sobre a vida.

A mim me vale que, o bom da melhor idade se achegar é nunca mais ter sido domado pelo sonambulismo.

Mas também, é só o que conta das valências. O resto é uma vuca de medicamentos contínuos. Só de pingar são cinco, e uma leve impressão de que estou me guinando à ranzinzagem.

Antes de derrapar para os lados casmurros da alma, repenso, reverente ao tempo: o que fiz para aportar neste estirão. O que me dá a merecendência às leis sexagenárias daqui a mais uns meses? Perscruto sinais do bom pai para um motivo. O que terá de grandioso ou relevante me reservado ofertar à humanidade? Porque olha, estive umas quantas vezes em tempo de expirar e escapei. A mais radicalmente crítica foi aquela ocasião no helicóptero. Não que eu estivesse caído no meio da selva ou entrado em pânico com a ressonância dos esquis no solo. Aconteceu foi que certa vez, ao desembarcar, no lugar de descer e seguir a direção do meu nariz, dei meia volta, a procura de sei lá o quê e passei por baixo da cauda do bicho. Simplesmente, e por uma insuspeita providência, por um triz me livrei de, por um lado ser sugado pela turbina e pelo outro, coisa de metrinho e pouco de salvadora distância, ser triturado por aquela palheta que fica na rabeira da aeronave. Sufoco, molequinho! O piloto me cortou e arou na esculhambação, do lado de lá. Soltando fogo pelas ventas turbinadas, perguntou se eu queria me suicidar ou se eu era só pateta mesmo. Eu, heim. Aceitei a cipoada na humildade. Errei dicunforça. Pra nunca mais.

Teve aquela outra vez que minha irmã me derrubou do colo e minha perna deu certo numa lata de conserva aberta. Foi uma aula de anatomia dos membros inferiores, para uma leva assustada de seringueiros que vieram para me acudir. A perna ficou apartada, balangando. Eu tinha dois anos e agora no rumo dos sessenta, ainda ostento uma teba d’uma cicatriz na articulação do joelho direito. E mais um ponto, sem ponto, para a providência: o golpe fechou sem que nenhuma linha unisse as pontas. Colou beiço com beiço, a ferida, só na base da reza e da borra de café, segundo as histórias veridicamente fantásticas do Acre, contadas pela minha mãe.

Escapei também de um asfixiamento com cuspe. Pois não é que aconteceu! Vínhamos de Barcarena, pela alça, quando alguém distribuiu umas mentas azedinhas. Ao primeiro contato com o bombom, o sumo foi direto ao grugumim. E como é que respira? Quando o motorista percebeu que eu me aperreava, me batia e estava ficando roxo, parou o carro. Eu abri a porta e me joguei no chão. Tô vivinho aqui, salvo pela acrobacia que fiz e que automaticamente abriu minha epiglote.

Tô na contagem do cubo de gelo. Tenho mais tempo imerso no líquido do passado do que à frente. Não inventei um emplasto que cure azia ou melancolia, não fiz uma revolução que tirasse a maldade do mundo. Os ensejos não dão as caras. O que será? Que atos, palavras ou omissões demasiadamente humanas a mim estão reservadas?

 

sábado, 11 de junho de 2022

crônica da semana - sacolão

 Ora direi, ouvi vós, o sacolão

Mina de coisa acontecendo, ligeireza dos feitos e fatos. Ocorre que rodei o botão da TV e acertei num programa que explorava o tema da educação domiciliar. De cá, um professor, habilitado em assuntos ligados à Pedagogia. De lá, a soberbia da mãe.

Nem sou especialista nem nada. Digo até que sobre esta questão de ensinar o filho em casa, calço a percata da humildade. Abro totalmente a guarda. Na escola, há profissionais capacitados, experientes, com vivências múltiplas e que podem nos ajudar de modo apropriado na formação de nossas crianças. Desde o Ivo viu a uva, até a Teoria das Cordas, passando pelos segredos da alma, pelas intermitências comportamentais e morais. O aprendizado para o mundo e para a vida, penso aqui, cavucando motivos nos meus apontamentos, tem um pilar poderoso fincado no ambiente escolar. Este mesminho meu ponto de vista, foi defendido pelo professor no debate que vi na TV. Eu me daria por satisfeito em partilhar a idéia, tornaria ao meu mundo, desligaria a TV ou procuraria um filminho pra chamar o sono, não fosse o martelar tonitruante no meu cocuruto, da mãe em defesa do ensino doméstico. O que me causou sentidos chiliques foi a argumentação da mãe amparada no raso da palavra (e aqui, faço um breve aparte neste relato, para dizer sobre a tenebrosa relação que fiz entre os ditos e defendidos pela mãe, no programa de TV, com um dos temas mais asfixiantes do romance 1984 do escritor inglês George Orwel, que exato por agora, terminei de ler. O romance fala de uma sociedade totalmente dominada e define como uma das ferramentas principais deste domínio, a língua. Há uma severa restrição na articulação e elaboração das palavras. Ocorre também, a redução drástica de termos, orações ou mesmo enunciados cujo o uso faça a menor menção de abalar o sistema. Uma das estratégias para manter a engrenagem opressiva operando é a ressignificação dos termos. E aí entra a mãe, quando elaborava argumento de defesa ao ensino em casa. Percebi que declamava um tipo de mantra. Um código imutável alinhavado em símbolos caríssimos da língua como liberdade, educação, família, direito, paz, amor. A todos esses significantes, dava o mesmo valor, um valor pessoal. Inarredável. Apropriado por uma crença, atado a um indisfarçável fanatismo. Que nem no livro do George Orwel. Credo! Um risco. Um traço social assustador. De dar gastura dentro da gente, éraste!).

A manipulação da comunicação é uma arma poderosa. É capaz de desmoralizar o sacolão dos gregos. Porque usa como munição, as palavras.

O sacolão dos gregos foi uma alegoria que inventei quando palestrava para os estudantes de um cursinho popular em Barcarena. Representava o apurado gramatical tecido nos primórdios da expressão do pensamento ocidental.  Estava tudo lá, dentro do sacolão. Eu vinha de um curso espetacular ministrado pela professora Alessanda Vasconcelos, do Campus de Abaetetuba e de lá, trouxe o sacolão cheio de palavras escolhidas cada uma à sua missão e as retirava a tempo e a hora das demandas apresentadas pelos estudantes. E de lá saíam os adjetivos, os substantivos, os verbos com suas vozes passivas ou ativas, os artigos e numerais tantos e infinitos. Partes de um discurso diverso e verdadeiro, disposto a entrelaçar-se.

A soberbia é uma palavra íntima da tirania. Pode estar presente em um almoço em família de pessoas que defendem a escola domiciliar, chapinhando no raso das palavras. E que, ante o sacolão desmoralizado dos gregos, e sem laço, vai pagar de inocente entre os pratos.

 

domingo, 5 de junho de 2022

crônica da semana - vovozinho pavuleiro

 O vovozinho pavuleiro

Umbora chamar é que é as crianças pro salão, cuidemos a balançar as maracas, a atritar as matracas. Vamos catar cotoquinhos de carvão para desenhar bigode e suíça na meninada. Ao comando do marcador, nos demos as mãos e formemos um só coração a pulsar na grande roda. Alguém logo, tenha a bondade de puxar um retumbão, um xote, o carimbó da minha vovó, um encarreirado de quadrilha, que seja. Eu quero ver, meu bem siriar. Que é Junho.

É festa dos santos. Momento de exaltar costumes antigos e selar compadrios no brasio varonil das fogueiras. Época mais festeira do ano com espaço para doces crenças, inocentes simpatias, todas as histórias, novos e velhos amores brotados dos terreiros embandeirados. Tempo de fazer uma extravagância e comprar uma caixa de estalinhos para cada criança da casa, pra não ter briga; e também um feixe de estrelinhas, aquele fiozinho de papel enrolado de um jeito torcidinho que a gente acende, mal solta umas luzinhas faiscantes e já acaba. Mas que dá um negócio na gente, um encanto! A estrelinha é minha brincadeira preferida dentre as tradições cintilantes da época. Ganha de dez do foguetinho e do chuveirinho.

É tempo de mingau de miibranco e todo o mundo de comida gostosa. De cocadinha... Do Boi Pavulagem do meu coração.

Este mês estarei rente como pão quente no Arrastão e também, celebrando a primeira saída do folguedo às ruas depois do brutal ataque do vírus vil. Protegido pelas três doses, e confiando que a turma que vai às ruas, da mesma forma, se imunizou, vou dar um pulinho na praça. Pero no mucho. Como agora sou vovozinho pavuleiro, tenho que aquietar o facho. Nada de aglomeração e sol quente. Quedar-me-ei ao largo de uma frondosa mangueira, e a uma prudente distância do cortejo. Ansiosamente tratarei o tempo na bicora do show do Arraial do Pavulagem.  Antes, lá pela concentração, vamos apresentar o encantamento da festa à netinha. Bater um retrato com ela no cavalinho, nos barquinhos, com os estandartes, ao pegado do boi. Seguir ao largo os pernas-de-pau. Iniciar a pequenina como pavuleira no batalhão das estrelas.

Este ano é a conta para experimentar esta mudança radical no desenrolar do meu domingo pavulagem: tomar conta da netinha, procurar sombra, menos agitação... porque olha, já fui da fuzarca. Ponta de lança da brincadeira. Era o pri.

Noves fora, os primeiros anos, quando a alegria se estirava pelo quadrado da praça, destaco outros mais apurados. Aqueles alastrados para além do centro. Era quando, terminada a apresentação na praça, a banda rumava para outros shows pelos bairros da cidade. Eu atrás. Às vezes só com uma coxinha e um caldo de cana pra enganar a fome. Me abalava. Só varava em casa já de noitinha e pitiando só a moleque de tanto sol, suor e cerveja.

Hoje entendo que a folia realizada pelo Arraial é prosa demais grande para marcar esta coluna. Não cabe em pauta finita. E nem é a pura concretude deste raso mundo. É sonho profundo e fantasia abissal. É imensidão de sentimentos, impressões, sensações. Tem-se como calorão de Belém adocicado, que a gente nem sente, lá no meio, tentando acompanhar as coreografias. Um aquecimento de alma. Um abrasamento do espírito. Ebulição de um amor perto. Acolhimento. Som. Reencontros. Áureas amizades. Transe desejadíssimo que está de volta, animando Belém. Graças à vacina, ao bom pai e aos abnegados artistas populares. Umbora chamar é que é as crianças, a netinha. É mês de brincar no Pavulagem e festejar os santos joaninos.