sábado, 28 de abril de 2012

crônica da semana - feice

O feice, o fechecler e a cizânia
Coisa que mais me destrambelha o entendimento, que mais me ataranta os pensamentos é o funcionamento do fechecler (fecho ecler para uns, fecho-de-correr para outros e zíper para outros tantos). Alguém sabe como funciona aquilo? Um segredo para mim, até hoje indecifrável. Sei que é uma espécie de tirirical que se abre nas horas mais impróprias. Agora, como os dentinhos, depois de fechados se aquietam estanques, isso eu não sei não. Acho, porém, que esta pecinha que não pode, de jeito e maneira faltar nos armarinhos, é umas das grandes invenções da humanidade. Ô belengodengozinho que nos vale de útil e de ágil. Quem nunca abriu com ligeireza e jeito, um? (do outro, no caso). Não sei se minha mulher Edna domina o conceito emaranhado do zíper, Sei que ela sabe consertar. É batada. O bicho bandou, daquele jeito que larga uma das fieiras; ou cegou, de modos que não atraca nem de ida nem de volta, a Edna aparece com um palitinho salvador e dá um jeitinho até que uma ‘cingida’ definitiva resolva a parada.
O fechecler, além de ser este mar de dúvidas na minha vida, além de me expor as preciosas partes algumas vezes e, mesmo assim , me deixar bestinha da silva de simpatia, aqui-acolá, também, já me ensejou a cizânia com a mamãe. Quando ela me dava uma amostra do zíper e me mandava na feira, eu já me tremia todo. Era carão na certa. Sempre me empurravam um que não era aquele recomendado pela mamãe. Agora pare, esse menino, pra acertar! Voltava chorando, mais emburrado do que bode embarcado, quantas vezes fossem necessárias, até achar um que combinasse direitinho com o tergal da encomenda.
Quer ver outra coisa legal: computador. É uma jóia da civilização, um diamante da ciência. Se a gente não convivesse, quase que diariamente com esta máquina, não colocaríamos a mão no fogo por ela. Porque o que ela faz é simplesmente extraordinário, meio que inacreditável. Mas, hoje em dia, não tem escapatória. Vivemos ‘face to face’ com esta máquina inteligente. Até nos nossos pensamentos, o computador está presente (‘no que você está pensando?’). E é claro que não vou enveredar aqui, pelos escaninhos que explicam o funcionamento desta máquina formidável. Zeros e uns fora, fiquemos com o encanto e com a tranquilidade de saber que embora desligado da tomada, é ele, nosso maior confessor. Tá tudo guardadinho lá nos circuitos complicadinhos e nos chips adelgaçados. Tanto o que nos enobrece quanto o que nos avilta.
Telefone celular é outra criação danadinha de boa. Traz a pessoa pra perto, onde quer que ela esteja, facilita as agendas, otimiza tempo. Quando falo para meus meninos que em Rondônia, na época em que trabalhei por lá, nos início dos anos 80, nossa diversão era rodar umas fitas cassetes com gravações que um doido mandava pra gente lá de São Paulo, de programas como O Clube do Bolinha e Barros de Alencar; quando digo que nossa comunicação com a família era feita exclusivamente por carta (o que nos revelou a eficiência dos correios: podíamos estar lá nos cafundós, a correspondência demorava um tempinho pra chegar. Mas chegava); quando afirmo que as ondas curtas do rádio eram a única forma de contato com a capital Porto Velho e que a estrada nos engu’iava, de tanto buraco que tinha...quando falo essas coisas, meus meninos nem ligam. Dizem que já estou tempo demais no ‘feice’ e pedem pra eu sair, que é a vez deles. E enquanto me expulsam, dedilham mensagens no celular, contando em tempo real, novos e atualizados motivos para a cizânia na família. (Nada a ver com as cizânias advindas do fechecler, diga-se).

quarta-feira, 25 de abril de 2012

crônica remix-datilografia


Sobre a metalingüística e coisa e tal
Dia desses escrevi sobre a variação do significado das palavras ao longo do tempo. Esta dissidência semântica, característica da língua viva, é por certo, ‘fora de série’.
A mutação do discurso representa uma evolução, uma atualização das idéias aos tempos modernos. Morou, bicho?
(E por aí a gente tira. Fora os titios quarentões, ninguém mais vai entender a expressão ‘morou, bicho?’ encravada  no parágrafo aí de cima. Então vá lá que seja: traduzindo para os dias de hoje, ela representa o pulverizadíssimo ‘tá ligado?’).
Este é um tema que me agrada. Gosto das traquinagens da língua.
Ainda mais quando o resultado desta reviravolta se mostra aqui na minha frente.
O teclado do computador é uma derivação eletrônica (não necessariamente mais silenciosa, aí vai do digitador) do velho e ritmado teclado da máquina de escrever.
E a máquina de escrever encerrava em si a arte da datilografia. Forjava futuros, delimitava rumos.
A modernidade tragou o significado e o significante do termo ‘datilógrafo’ e levou ao esquecimento uma profissão das mais desafiadoras e que tinha até uma boa fama.
(Quando eu trabalhava em Rondônia, me deparei com vários depoimentos orgulhosos do tipo “eu sou peão. Vivo socado nessas matas pegando bicho-de-pé e uma malária atrás da outra, mas minha irmã não. Minha irmã é tilógrafa formada...”).
O modelo de qualificação era severo. Havia as escolas de datilografia que exigiam a utilização cega e, ao mesmo tempo, resoluta, forte, incisiva de todos os dedos no acionamento das teclas. Até o mindinho era solicitado na hora de ‘bater um texto’ (tadinho de mim com os meus dois voluntariosos linhas de frente catando milho aqui e ali. Não iria jamais tirar o curso na escola da professora Mariazinha).
E tinha a cerimônia de formatura com beca e tudo.
A nova pegada, a produção de textos (e tudo em quanto) no computador soterrou de vez os termos ligados à datilografia. Ocorreu uma verdadeira transubstanciação. A gênese mudou. A datilografia ou dactilografia que era a arte de escrever à máquina deu lugar à ‘digitação’ que é a mesma coisa. Só que numa máquina mais sofisticada que não assimila somente os choques no teclado: o computador quer receber e entender as informações, por isso reclama quando digito alguma coisa errada ou que ele não conhece como, por exemplo, ‘datilografia’. Faculdade fundamental a qual a minha Olivetti Lettera que repousa aposentada ali no canto, jamais se abalou.
Fui apresentado ao computador, há alguns anos, pela jornalista Jennifer Galvão.  Na época, eu tinha parte do material para o meu primeiro livro produzido na minha Olivetti. E a Jennifer, muito gentilmente, me emprestou o computador dela para eu terminar o livro.
Naquele tempo, eu ainda dizia que queria ‘bater um texto’ e não digitar (e era bater mesmo! Pensava que estava na minha Olivetti e sentava a mão. Queria ouvir um tec tec tec igual ao da minha máquina. A pobre da Jennifer, coitada, se desesperava, ficava pê da vida com aquela marmota). Começo difícil. Às vezes dizia que queria datilografar, outras vezes me atrapalhava e teclava duas letras ao mesmo tempo. E cadê o carro? Não tem carro? Como passa pra outra linha? Não troca fita, isso?
Hoje já estou domado, acostumado com a mudança e por isso dou um desconto para o meu computador que, enquanto eu estou ‘digitando’ este texto, vem me grifando todas as ocorrências do verbo datilografar e variações. Tá certo. É um verbo que não existe mais. Sumiu dos discursos, dos arquivos. Foi delido, digo, foi deletado pela modernidade.

sábado, 21 de abril de 2012

crônica da semana - roupão

Roupão folgadão

Se vossa mercê está pensando em fazer uma cirurgia, eis o meu conselho: quando acordar da anestesia, passa logo a mão lá. Não é por nada não, é só pra aliviar a consciência. Pra saber se as partes estão tudo no lugar (e quem viu o filme ‘A pele que habito’, entende a minha neura). 
Se a cirurgia for eletiva. Eleja não fazer. Não force a barra. Uma operação não deve ser coisa que nos encha os olhos. 
Primeiro, porque a gente entra na sala de cirurgia, com um roupão folgadão e dis’costas. A desconfiança é certa nessa hora. A gente não vê o que nos espera. Depois, na mesa, alguém à ré, enfia uma agulha quilométrica na nossa coluna e pergunta se dói. Ora, se dói. A gente grita ai, e apaga. Pronto. Dali em diante, estamos entregues. Nenhuma possibilidade de voltar atrás. (A minha preocupação era aquele roupão folgadão expondo as partes, por isso, quando tornei ao quarto, foi a primeira coisa que prospectei: o meu birimbinho querido. Passei logo a mão. Eu heim, vai que erram...ainda dava tempo de remendar). Nessa hora há de se ter confiança absoluta nos médicos. Estamos nas mãos, nas pinças e nos bisturis deles. 
Abalei-me à pedra por causa do meu joelho direito que foi-não-foi, enchia de água e me nocauteava. 
Foi na época do insuperável Internacional da Mauriti que eu me lesionei. Tava no auge. Havia uns contatos com o pessoal do Tiradentes, umas conversas com a turma do Alegria, para o Futebol de Salão, mas, o que me animava mesmo era a prosa de um vizinho ali da Marquês, que me dava a maior moral e que alardeava aos quatro cantos, que ia me levar para o Paysandu. A gente traçava, toda tarde uma porfia com os moleques das redondezas. Quando o meu futuro empresário passava pela rua, eu dava uma caprichada. Defendia, voava pela lateral, dava uns guizas legais, e até, com metro e meio de altura, cabeceava. Procurava lustrar a minha bola pro homi. E as tardes corriam e eu vivendo da promessa. Até que, numa parada dessas, de prafrentice, de querer me mostrar, entrei todo troncho numa dividida com o Pé-de-galho, e caí sobre o joelho. A minha carreira de jogador de futebol acabou ali. 
Passei alguns anos teimando e me valendo da generosidade do Juca (o doutor José Calandrini) que me acudia nas vezes em que me via de dor, com o joelho por acolá. E como devo ao doutor Calandrini. Porque eu era um moleque atentado. Todo penso, cachinguento, mas era pintar um jogo que eu me amarrava todo e caía dentro (a inesquecível conquista do time de Mineração sobre o turno da noite de Paulo Robson e companhia foi assim, com o meu joelho enfaixado. Gol meu, ressalte-se, na empolgante final das Olimpíadas da Escola Técnica em 1982). 
Penei muito com esse joelho. Fiz algumas dezenas de punções (aquele procedimento que o médico introduz uma agulha deste tamanho na articulação femurotibial pra tirar o sangue batido, credo!). Mesmo depois da Escola, já trabalhando, ainda fazia as minhas traquinagens com a bola, pelas Minerações por onde passei. Sempre desdobrando a peraltice em hospital, em imobilizações, gessos e anestésicos. Até que um dia, resolvi tirar fora minha cartilagenzinha. 
Esta cirurgia, para os jovens, para os atletas que têm a musculatura desenvolvida, é mamão com mel. Faz hoje, amanhã já sai andando. Não era o meu caso. Quando fiz a cirurgia, não corria mais nem de chuva, o esporte que praticava assim, com movimento, era embalo na rede e o maior esforço se dissipava em levantamento de copo. Resultado: Mesmo depois da cirurgia, o joelho ainda dá trabalho. Mas eu não ligo mais, afinal o meu sonho de jogar no Paysandu já era mesmo... 

quarta-feira, 18 de abril de 2012

crônica remix- tá chegando o

Tá chegando o verão
Tenho uma coisa comigo: não posso assistir a filmes que tenham neve, montanhas geladas, gente agasalhada, que fico logo com frio.
É sério! Fico lá, no indo e vindo da minha redinha, envolvido, interagindo, entrando, literalmente, no clima. E de repente já me pego esfregando os pés embaixo do lençol, já me vejo tiritando diante da TV.
Há filmes que chegam ao extremo e pela carga glacial, me impõem a total submissão às fantasias friorentas. Este que passou na Temperatura Máxima (mínima, no caso) com o Stalone é um deles. Não tem como escapar. Do hio ao chio, o filme é só gelo. E o herói ali, se virando pelos escaninhos montanhosos, fugindo dos bandidos malvadões, sempre soltando aquela fumacinha branca pela boca. Lá pelo meio da história, eu reinei em botar uma meia, mas aí, fui oportunamente convencido pela família a declinar deste enregelado mico.
Muito maluco isso. Mas acho legal. Tenho pra mim que é um mecanismo de compensação que, inconscientemente eu desenvolvi. É um inofensivo acerto de contas do corpo com o solão que me domina na vida real. Um desconto, por certo.
E por falar na vida real, tá chegando o verão. Tá dando pra perceber, né? As últimas tardes têm sido de arder. De lascar o couro.
Na verdade, o que ocorre é uma elevação da temperatura média. E como a gente vinha de médias mais baixas, temos a sensação de que os dias estão mais quente que antes. Por enquanto é só uma sensação. Daqui a algum tempo, com o corpo já adaptado à exatidão do sol, a gente vai admitir que os dias estão realmente mais quentes mesmo. Que a pele tá tostando mesmo. E aí o jeito é procurar a abençoada sombra de uma mangueira.
Verdade é também que, por absurdo que seja, aqui nesta parte do globo, estamos agora entrando exatamente no inverno (e não no verão).
Pior que é mesmo. Sabe em março, quando falei da Pororoca, do Equinócio e tal e coisa? Pois é, de lá para cá, o sol viajou para o hemisfério Norte levando o verão pra lá. Já passou por cima da Venezuela do Hugo Chavez . Agora paira sobre a América central atiçando os tornados e furacões no golfo do México.
Para nosotros do hemisfério sul, a estação promete neve em São Joaquim , friagem no Acre e Rondônia e aqui no Pará e outros estados do Norte, pouca chuva. Ou seja, por aqui pelas veredas do baixo Amazonas, o inverno vai ser quente. Um verão, admitamos.
Na Amazônia, achamos estranho entender este abafado como inverno. Mas é porque estamos acostumados a relacionar o inverno com as chuvas abundantes, quando, de vera, as características do inverno são as baixas temperaturas e a pouca incidência de chuva. Por isso que as folhas caem no outono. Como diz o Lula, as árvores cortam a própria carne para garantirem reservas de água para um período de estiagem.
Se por um lado a mudança no clima anuncia um calorão para os próximos meses, por outro ajuda a termos noites mais claras e estreladas. Dá uma força para que a gente se volte um instantinho para o céu. E que céu, heim!
Uma belezura a Estrela Dalva dominando o cenário após o pôr-do-sol. Pode reparar, ali pros lados da baía, logo de noitinha. É o planeta Vênus luzindo no céu, solene, imponente, soberano. E se a gente olhar bem direitinho, vai ver Vênus mergulhando no horizonte protegida pelos irmãos mitológicos Castor e  Pollux, as simétricas estrelas da constelação de Gêmeos.
São muitos os encantos do nosso verão amazônico. E eu vou atrás de todos. E se o tempo esquentar de fazer a gente correr doido, alugo uns filminhos que tenham neve, montanhas geladas, diálogos com fumacinha branca, pra refrescar.

sábado, 14 de abril de 2012

crônica da semana- porres de

Porres de felicidade  

Passar no vestibular é difícil. Mais difícil ainda, é sair da Universidade. Este presságio (bem desanimador, convenhamos), na verdade, um banho de água fria que dá uma amainada no fogo dos calouros, a gente ouve no primeiro dia de aula e luta contra ele com a força que se tem. Essa semana uma gente querida derrubou este prognóstico empalidecido. Meus meninos da Geologia e minha mulher Edna superaram os obstáculos e receberam o tão cobiçado canudo do terceiro grau. 
Destaco a garotada da Geologia porque foi a turma que frequentei pela última vez em que estive por lá, pela Federal. A turma de 2007. Eu vinha me engatando desde 2004 e vivi os estertores de minha carreira universitária com esses meninos. Aprendi com eles. Na verdade, sou fã deles. Empedernidos, espíritos sólidos, abriram meus olhos para uma nova juventude. Uma rapaziada responsável, safa, como se diz (alunos de estirpe rupestre, graduados, primeiríssimos colocados). Revolucionários (quebraram paradigmas no nicho clerical das geociências). Fui um cara agraciado por poder participar da vida desses garotos e ter com eles momentos capitais. 
Viajamos juntos. E este é o grande barato do curso de Geologia. A gente se emboleta, se ajunta. Por causa deste grude inevitável, rola a amizade, uma amizade diferente das outras. Daquele tanto que requer parceria, solidariedade, companheirismo. Imaginem um eu quarentão, subindo e descendo barrancos nas pesquisas de campo. Ai de mim, se não fosse o Válber, o Pedro, o Nathan...Os moleques me poupavam. Se era pra barter o martelo lá em cima, pra medir uma atitude numa nesguinha bem no corte da estrada, se era pra encarar o solão...me poupavam e iam lá, naquela empreitada, numa felicidade íngreme. Ralávamos o dia todo à base de biscoitinhos e chopes de groselha nos vilarejos em que varávamos. À noite, a sisudez dos pequenos me impressionava. Relatório, pesquisa, elaboração de textos, desenhos. Saíamos para um relax, só depois de concluídas todas as nossas obrigações. Depois, ah, depois, era mais que justa uma rodada de cerveja, um violãozinho, um papo sem nexo. E eu no meio. Tenho saudade daqueles dias de dezembro, ali, na biqueira do Natal, abrigado aos incontáveis talentos dos meus queridinhos colegas de aula. 
E eu que não creio, rogo por eles, para que sejam profissionais de sucesso, comprometidos, entusiasmados; que amem a carreira que escolheram. E que brilhem com altivez e rigor, como brilha o Coríndon do anel que agora, geólogos formados, ostentam no anular. 
Aqui acolá, quando tô de prosa, conto para os amigos, a história do fogo. O impacto que a descoberta do fogo teve para a preservação da espécie humana. Antes do uso do fogo, o homem dormia pouco, ou não dormia. Não sonhava. Vigiava porque era presa certa de predadores poderosos. Lobos, felinos. Quando descobriu que com uma chama poderia se defender, o homem pôde metabolizar proteínas, desenvolver a mente. Pôde dormir. Pôde sonhar. 
Acredito que minha companheira Edna Nunes passou por uma experiência desse porte. Valeu-se do fogo. Engendrou químicas, equilibrou reações, enriqueceu-se de combustíveis. Fez-se chama. Traçou caminhos e os iluminou com sonhos. Venceu os perigos do Cálculo I, as sinuosidades da Geometria Euclidiana, o vai-em-cima-vai- embaixo da função Seno, o terror inominável da Análise Real e postou-se linda e orgulhosa para receber o diploma de Licenciatura em Matemática. Edna nunca me confessou, mas sei que o desejo dela era ser professora. 
A semana me deu dias inesquecíveis. De realizações. E eu, ora, eu tomei vários porres de felicidade. 

quinta-feira, 12 de abril de 2012

crônica remix-alô papai

Alô, alô. Alô, papai. Alô, mamãe...   
Eu tô meio azuruote nesta terça-feira de fevereiro quando ainda comemoro a aprovação da minha mulher, Edna, no vestibular; quando comemoro os onze anos do meu filhinho querido do meu coração, Argel de Assis; quando é carnaval, é carnaval, olê olê olá, e, ainda por cima, tô de fooooolga do trabalho...Égua-te! São muitas as emoções.
O vestibular, então, deu de dez...
O que me é pertinente dizer sobre o tema é que é muito, mas muito legal, muito bacana mesmo, passar no vestibular: ouvir o  nome no rádio, estourar ovos na cabeça, entregar-se submisso à nuvem de maisena, de colorau, pagar os micos...Cantar os preciosos versos do momento: “ Alô, alô, alô, papai/alô, mamãe...pode soltar foguete/que eu passei no vestibular...”
É legal amar, de todo o coração, e para sempre, o Pinduca.
Um barato isso de ser tomado pela letargia insondável e ao mesmo tempo, ser balançado pela excitação desregrada, assim, meio abobalhado, no meio da rua, quando da comemoração por ter passado na Federal: as mãos erguidas, o corpo cambaleante, uma euforia desequilibrada, instável. Um quê entre a comoção total e a incontrolável alegria, subsidiado por um estado de memorável – e justificável - porre de felicidade.
Minha mulher, Edna, teve a oportunidade de curtir esse barato.
E no sábado, lá estávamos nós, na Pirajá, comemorando, sob a égide da índole suburbana, sob as guardas do instinto pedreirense, as alvíssaras notícias vindas do listão.
Éramos nós, nos cotizando para o churrasco, para a gegé...
Éramos nós, driblando as barreiras sociais, rompendo as travas dos quarenta anos e confirmando a perseverança dos filhos da periferia.
No sábado, comemoramos, nos escaninhos esquecidos da sociedade, nas esquinas turbulentas dos arrabaldes, uma vitória vinda da nossa infindável resistência, da nossa irrefreável teimosia...
Naquela manhã, eu ainda estava aqui em Barcarena. Liguei o rádio cedo, conectei na internet, procurei o site da UFPA e nada do listão. E deu nove horas, e nove e uns caroços e nada...
Até que...O listão apareceu, de repente, num link da Universidade.
Liguei pra minha mulher, que estava em Belém, e que àquela altura, de tão ansiosa que estava, não queria falar com ninguém. Fui portador da boa notícia: “pode soltar foguete...”
Disse, ao telefone, isso somente, e corri pra pegar a lancha das dez . Na viagem para Belém, entreguei-me a um aprazível descontrole, e chorei um choro silencioso de indescritível felicidade. Atravessei a baía assim, acompanhado de bem-vindas lágrimas nos olhos.

sábado, 7 de abril de 2012

Crônica da semana- amigos presos

Senta que lá vem história

Naquela manhã, dei um ‘dibra’ no porteiro, abri caminho entre o unheiro e o bombonzeiro, me apoiei no meio fio, montei na mobilete que o meu amigo Eduardo tinha arrumado não sei com quem e saímos com mais de mil, da escola, que ficava detrás do Bosque, até a Presidente Vargas, para ver o Figueiredo. 
O ano era 1978. Estava na biqueira, João Batista, de ser o presidente do Brasil e visitava Belém arregimentando simpatizantes para a eleição que se decidiria no Colégio Eleitoral. 
É um relato surpreendente este, mas é verdade. Naquele tempo, a gente admirava os militares. Mamãe levava a gente pra ver a parada de 7 de setembro e os pequenos ficavam ali, rés à corda de isolamento, de palmo em cima com os coturnos. Nos entusiasmávamos com aqueles desfiles engalanados, cheios de garbo e altivez. Laço verde-amarelo no peito, cata-vento cívico, espírito patriótico e muito respeito. E ai da gente, se assim não fosse. 
(No domingo próximo passado, juntamos os meninos lá de casa para uma sessão de ‘senta que lá vem história’. Comecei contando esta primeira parte aí de cima. Até eu entrar na Escola Técnica, era alheio, ou como se dizia na época, eu era um moleque ‘alienado’ das reentrâncias políticas que delimitavam o regime. Na ETFPA foi que a coisa mudou. Tínhamos, lá, um grupo antenado. Todos os dias, na saída, juntávamos nossos dinheirinhos do ônibus, numa coleta, descíamos a Estrela, sentávamos à calçada da sorveteria e ficávamos até lá pelas nove horas da noite chupando picolé e descobrindo coisas. Depois íamos para casa a pé. 
Quando os meus amigos falaram, pela primeira vez, contra os militares, tive um choque - nem de longe comparado àquele dos porões, ressalte-se. Depois fui me envolvendo, conhecendo mais. Atinei para os subterrâneos do poder ali, naquela calçada.  Percebi com alguma nitidez, os gritos que a gente não ouvia pela rua. Entendi insatisfações e tristezas. Sofrimentos, torturas. As feridas abertas na sociedade brasileira começaram a doer em mim também. 
Aí, veio a militância na igreja, nos movimentos pelo direito de morar, nas articulações pela meia-passagem. Vi coisas do arco da velha, nessa fase. Gente sendo caçada, bombas estourando nas bancas de revistas, agentes infiltrados com cara de Raul Seixas, ativistas de esquerda ‘saltando’ para o consulado da Bélgica - que ficava em frente ao portão da ETFPA, aquele do lado da Estrela. Tive ‘amigos presos, amigos sumindo assim’. Ainda bem que não foi pra nunca mais. 
Anos depois, estamos nós, no domingo próximo passado, contando para os sobrinhos, para os filhos, um pouco de uma história que oxalá, jamais se repita. E meu cunhado Elói pôs-se a relatar como, aos quinze anos de idade, militante engajado no MLPA - Movimento pela Libertação dos Presos do Araguaia- viu-se na lista dos desaparecidos do regime. Uma história dramática. Todos nós ouvimos atentos. Eu que já ouvira a história diversas vezes, não contive a indignação. Éramos companheiros, naquela época. Certo dia, numa manifestação, jogaram o companheirinho dentro dum Fusca e sumiram com ele. Foi posto frente a inquiridores raivosos. Sofreu pressão psicológica, humilhação, constrangimento. A família, enganada, desenganada. Os órgãos da segurança pública nada diziam sobre o paradeiro do companheiro-garoto. Uma eternidade se passou e uma mínima coincidência...um bom coração o descobriu desaparecido no escuro do Dops. Para livrá-lo, uma destemida legião de obreiros: João Batista, Paulo Fonteles, Rosa Marga Rothe, Tia Tiba... 
Alguns anos depois, estávamos nós, no domingo próximo passado, contando...) 


terça-feira, 3 de abril de 2012

crônica remix- pai

Pai


Hoje tá parecendo feriado santo, esse menino. Uma paz! Ah, essas músicas que tocam na rádio me dão uma malemolência, esse menino, parece um abandono orquestrado.Vem, vamos se aprontar, vamos se assear, e passar um talquinho.
Vem, esse menino, que o sol lá fora é de um clarão amigo e este vento silencioso que sobe a rua, traz do passado, a saudade.

Vem, deixa eu te lembrar daquele homem que tu nunca viste, e que, num dia como este, me chegava com um frondoso pé de alface e uma sacola cheia de coisas da feira para o almoço da família. E depois, esse menino, aquele homem, depois do almoço, procurava a paz. Atava a rede na sala e, nu da cintura pra cima, se embalava descansado, ouvindo o silêncio das crianças da casa, enquanto eu o admirava ali de longe, querendo, no meu futuro, ser como ele.

O sol é clarinho. Parece uma alma clara, ali brilhando no céu, zunindo orquestrado no dia. O vento vem de longe. Do fim da rua e da memória, tocando áspero na gente, mexendo com nossas saudades. E não se vê viv’alma na rua, esse menino. Tudo é um deserto só.

Vem, esse menino, te ajeita, te ajeita. Vamos pra porta da rua, ver o vento passar. Senta aqui na batente, que eu vou te contar da minha saudade. Saudade de pai, esse menino, saudade de pai.

Em plena meio-dia deste silêncio, eu lembro daquele pai que zelava pelo depósito de milho. Daquele homem obstinado que varava dias nos comboios pelas lonjuras dos seringais. Pai bravo, que ralhava com o Rompe-mato e com o Rompe-ferro, quando eles perdiam uma caça. Daquele amigo que chegava, na cidade, doido de saudade, me ajeitava na garupa do melhor cavalo, e me levava pra tomar sorvete de graviola, na praça Plácido de Castro. Pai negro, com cheiro de floresta, tingido de defumo de balata, banhado por gotejos de látex. Pai árvore, que me chegava dos campos com a bainha da calça empestada de carrapicho, e que depois eu ficava catando um por um. Pai que me carinhava roçando a barba pixaim  risonha, carinhosa, no meu cocuruto, e eu, ah, eu me aninhando naquele colo seguro.
Eita, esse menino, espia, ali no fim da rua, onde o céu encontra com a árvore mais florida. Lá, é a casa do tempo. Do tempo perdido, que não volta mais. Do tempo que ficou velho e pobre e que não me trará mais ninguém: nem meu pai renascido nem aquele menino mimado. E tu, esse menino, sem tempo vivido lá no fim da rua, de onde nasce o vento...
E tu? De quem tens saudades?  Que saudades de pai, tu tens? E éraste, do dia deslumbrante, heim, esse menino, este, clarinho, ventilado, de um zunido orquestrado, que parece feriado santo, em plena meio-dia!