quarta-feira, 25 de abril de 2012

crônica remix-datilografia


Sobre a metalingüística e coisa e tal
Dia desses escrevi sobre a variação do significado das palavras ao longo do tempo. Esta dissidência semântica, característica da língua viva, é por certo, ‘fora de série’.
A mutação do discurso representa uma evolução, uma atualização das idéias aos tempos modernos. Morou, bicho?
(E por aí a gente tira. Fora os titios quarentões, ninguém mais vai entender a expressão ‘morou, bicho?’ encravada  no parágrafo aí de cima. Então vá lá que seja: traduzindo para os dias de hoje, ela representa o pulverizadíssimo ‘tá ligado?’).
Este é um tema que me agrada. Gosto das traquinagens da língua.
Ainda mais quando o resultado desta reviravolta se mostra aqui na minha frente.
O teclado do computador é uma derivação eletrônica (não necessariamente mais silenciosa, aí vai do digitador) do velho e ritmado teclado da máquina de escrever.
E a máquina de escrever encerrava em si a arte da datilografia. Forjava futuros, delimitava rumos.
A modernidade tragou o significado e o significante do termo ‘datilógrafo’ e levou ao esquecimento uma profissão das mais desafiadoras e que tinha até uma boa fama.
(Quando eu trabalhava em Rondônia, me deparei com vários depoimentos orgulhosos do tipo “eu sou peão. Vivo socado nessas matas pegando bicho-de-pé e uma malária atrás da outra, mas minha irmã não. Minha irmã é tilógrafa formada...”).
O modelo de qualificação era severo. Havia as escolas de datilografia que exigiam a utilização cega e, ao mesmo tempo, resoluta, forte, incisiva de todos os dedos no acionamento das teclas. Até o mindinho era solicitado na hora de ‘bater um texto’ (tadinho de mim com os meus dois voluntariosos linhas de frente catando milho aqui e ali. Não iria jamais tirar o curso na escola da professora Mariazinha).
E tinha a cerimônia de formatura com beca e tudo.
A nova pegada, a produção de textos (e tudo em quanto) no computador soterrou de vez os termos ligados à datilografia. Ocorreu uma verdadeira transubstanciação. A gênese mudou. A datilografia ou dactilografia que era a arte de escrever à máquina deu lugar à ‘digitação’ que é a mesma coisa. Só que numa máquina mais sofisticada que não assimila somente os choques no teclado: o computador quer receber e entender as informações, por isso reclama quando digito alguma coisa errada ou que ele não conhece como, por exemplo, ‘datilografia’. Faculdade fundamental a qual a minha Olivetti Lettera que repousa aposentada ali no canto, jamais se abalou.
Fui apresentado ao computador, há alguns anos, pela jornalista Jennifer Galvão.  Na época, eu tinha parte do material para o meu primeiro livro produzido na minha Olivetti. E a Jennifer, muito gentilmente, me emprestou o computador dela para eu terminar o livro.
Naquele tempo, eu ainda dizia que queria ‘bater um texto’ e não digitar (e era bater mesmo! Pensava que estava na minha Olivetti e sentava a mão. Queria ouvir um tec tec tec igual ao da minha máquina. A pobre da Jennifer, coitada, se desesperava, ficava pê da vida com aquela marmota). Começo difícil. Às vezes dizia que queria datilografar, outras vezes me atrapalhava e teclava duas letras ao mesmo tempo. E cadê o carro? Não tem carro? Como passa pra outra linha? Não troca fita, isso?
Hoje já estou domado, acostumado com a mudança e por isso dou um desconto para o meu computador que, enquanto eu estou ‘digitando’ este texto, vem me grifando todas as ocorrências do verbo datilografar e variações. Tá certo. É um verbo que não existe mais. Sumiu dos discursos, dos arquivos. Foi delido, digo, foi deletado pela modernidade.

Um comentário:

  1. A boca da modernidade quem fala pela gente, pra modernização se materializar. Aí o modernismo é que paga o pato na hora de ser julgado pela representação disso tudo.
    Muito boa!

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