sábado, 25 de janeiro de 2020

crônica da semana - dom pixote


Dom Pixote e a relatividade
É uma mensagem que me acompanha há uma pá de tempo. A TV nem era colorida. Não sei dizer de que matiz era o Dom Pixote. Sei que fazia parte da Turma do Zé Colméia, um elenco de personagens que arremedava animaizinhos graciosos e falantes. Naquele dia, comandava o espetáculo. Em dado momento, o mestre de cerimônia Dom Pixote, trouxe para a cena duas figuras, que, devido às intenções, não eram retratadas como mimosos bichinhos, e sim representavam desengonçadas personagens humanas. Um baixinho e outro gigante. Foram entusiasticamente anunciados pelo Dom, como: O maior baixinho do mundo e o menor gigante do mundo. Eram a maior atração no palco. A surpresa é que quando chamou o maior baixola, para os aplausos da platéia, quem se apresentou foi o gigante. E, depois, quando chamou o menor gigante, quem veio foi o baixinho. Caiu o pano. Era o encerramento daquele episódio. Um quadro pirotécnico encerrou o rosto de Dom Pixote exibindo um sorriso cheio de malícia como se inquirisse ao universo de espectadores sobre o real sentido daquela esquete. Como se perguntasse: entenderam a sacada, heim, heim?
Aquela inversão, aquela contradição me mundiou. Por uns instantes, saí do ar. Fiz perguntas, duvidei, intuí, insinuei. Nada mais para mim, a partir daquela cena seria absoluto. Buscaria, na medida do possível, ver não só com os bugalhos dos olhos, mas com a leveza da alma, ou mesmo guiado pela luz da razão. O inteiro e justo, a mim, seriam sempre passíveis de ponderação, de divisões, subdivisões, repartimentos, e na sequência, reordenados em voluntariosas sínteses.
É uma luta, o exercício da análise e da crítica. Juro que tento. Em alguns casos, travo porfias renhidas comigo mesmo, para superar as ilusões de uniformidade que nos inebriam. A releitura de condutas sociais e de posturas pessoais contabilizam as frações do meu leque de tentativas (e o que é mais demandada hoje da gente é esta análise em favor da harmonia, da aceitação do diferente). Sofro quando não supero.
Tem um outro episódio do Dom Pixote mais levinho, sem estímulos, de um humor mais fácil e menos cortante e que da mesma maneira, marcou a minha já longínqua vida de moleque pedreirense. Outro dia conto aqui. Fiquemos, por ora, com a malícia.
(N’O Livro do Avesso, escrito pela poeta Elisa Lucinda, a personagem fala de Cabo Verde. Diz que é revigorante viver num país onde os atores sociais são majoritariamente negros. Os políticos são negros, os magistrados são negros, os garis, os empresários, os artistas, o reitor da universidade, os honoráveis e os vulgares são negros. É uma percepção que nos ajuda a compreender a relatividade. Principalmente a nós, que vivemos num país miscigenado mas, seletivo, excludente. Com certeza, na volta de Cabo Verde, a personagem será muito mais atenta à distribuição de oportunidades no Brasil.
O que se tira dessa experiência na África é que o nosso entendimento, o nosso olhar sobre o estático e perene, pode mudar. Podemos inverter, dobrar, desdobrar, acelerar, agitar, revolver as nossas certezas. Depende de como olhamos a realidade).
Por enquanto, fiquemos com a malícia do Dom Pixote que arremedava um cãozinho falante, e nem sei de que matiz era porque a televisão lá de casa não era colorida, e que a olhos vistos media as nossas mais nítidas suposições com outra régua, um medidor que não podemos discernir apenas com o bugalho dos olhos.

sábado, 18 de janeiro de 2020

crônica da semana - níver de Belém


Níver de Belém
Tomei foi um espanto quando vi que era Janeiro e não tinha preparado a crônica em homenagem a Belém.
Aqui na coluna foi conta batida a cada início de ano, as primeiras semanas tratarem de mimar a cidade.
Deu-se que, com o passar dos tempos, juntei um pacote emocionado de crônicas sobre Belém, embalei direitinho, partilhei com aliados, me juntei a cúmplices e publiquei ‘Janeiros’, meu livro tão Belém. Tão profunda e visceralmente pedreirense. Tão pleno e íntegro de carinho e amor por esta cidade.
Justifico minha patetice este ano porque parece que a publicação de ‘Janeiros’ provocou em mim uma saciedade mentirosa, uma sensação equivocada de dever cumprido. Um transbordamento, uma saturação nas idéias e sentimentos sobre Belém. Uma acomodação se realizou dentro de mim. Travando, inibindo relances, não admitindo inspirações no repente.
Eu, heim, vôte! Sai pra lá ziqueziras de contentamentos. Me errem panemices de satisfação. Vou é atrás da minha Belém reticente. Vou buscar pedacinhos que faltam, que pendem, largados ao ar, dispersos ao léu, submersos no rio-mar. Quero sim, interagir com Belém, no que seja. Nos modos severos da crítica ou no jeito mais justo de bem querer e admiração. Seja pra dar um puxão de orelha, seja para tascar aquela bitoca gostosa no cangote da península guajarina.
Ah, sim, antes de ficar me martirizando por ter deixado minha cidade pra lá, num momento de vera significativo, fiz uma reflexão sondando lá dentro de mim, as decepções, catando as mazelas que a cidade apresenta todo santo dia e nos afasta de si. Vai ver a culpa é da cidade. A Belém que se desfaz, que se liquefaz em cada breve chuva, inundando as ruas e alagando nossos olhos de choros de tensão, impotência e uma pitadinha de raiva.
Avalio que Belém vive uma fase dramática (que já dura um tempão). É fato. A cidade ‘desunerou’. Não esqueço o dia em que cheguei de uma viagem a trabalho, que me deu conhecer uma cidade nos longes do Brasil, toda limpinha, simpática, com faixas cidadãs ativas, com manifestações nítidas de civilidade dos motoristas e com atenção especialíssima a visitantes. Pois bem. Logo na chegada, em casa, quando desci do táxi, que aliás foi o dobro do preço que eu paguei na cidade onde estava, apesar da distância ao destino ser a metade; dei com minha rua tomada de lixo. Gatos, cachorros rasgando os sacos depositados na frente das casas e espalhando o resíduo pelo asfalto, os carros passando por cima, o sol esquentando, o calor reagindo com a matéria orgânica, o mau cheiro exalando daquela substância gosmenta.
Fiquei impressionado com tanta sujeira, mas cansado da viagem dormi parte do dia. Mais tarde, tive que levar uma encomenda a um amigo. Para atravessar a rua, procurei uma faixa de pedestre e, olha, se não sou rapaz e dou duas piruetas elaboradíssimas, um ônibus tinha feito de mim uma pasta inanimada. Tomei tento. Estava em Belém. Tinha que sobreviver.
É... A ausência de umas linhas dedicadas a Belém, penso agora, pode ter sido por uma satisfação duvidosa ou pela certeza da decepção.
Para tirar ‘as prova’ do motivo que me fez passar batido no níver de Belém, o que fiz? Fui bater no Veropa. Debaixo dum toró daqueles, e com a beira fervilhando num cálido e úmido clima de gente se encontrando.
Naquele momento Saturno cruzou o céu de Belém. E senti o afeto voltar com mais de mil. Era mesmo somente uma saciedade mentirosa.


sábado, 11 de janeiro de 2020

crônica da semana - carreira de bulacha


Carreira de bulacha
Véspera de Natal. Corre daqui, corre d’acolá, ajeita, arruma, arreda. Liga o forno, unta o charão, procura o pano de prato que não sabe por onde largou. Um menino sempre atentando, pendurado na perna da gente, pedindo alguma coisa impossível de atender. A árvore de Natal rebola da mesinha e leva tudo quanto é fiação e luzinhas junto. Peralá, peralá! A ervilha. Faltou a ervilha!
Fui convocado para sair d’pressinha em busca da ervilha. E, aproveitando o ensejo, trazer logo uma cabeça de alho, uma caixinha de palitos, azeitona sem caroço, uma tirinha de bacon e torcer para que tenha pelo menos dois filmes de papel celofane em cores diferentes por aí, porque, segundo a etiqueta natalina, alguns brinquedos que vão ser distribuídos, além de embrulhados em papel de presente, ainda precisam de um papel celofane em volta, se não, não é presente que se preze. Vai dar é confusão.
Não foi preciso andar muito para perceber que no entorno de onde moro tem pencas de pequenos comércios, a antiga taberna, armarinhos acanhados, quitandas, casas com plaquinha no portão. Quando a gente sai assim, aperreado de demandas é que percebe como, de um tempo pra cá, a economia informal ganhou espaço na baixa da Pedreira.
Eu que não sou nem besta nem nada, ensejei logo a compra da minha gelada no puxadinho que já sou freguês. Só que lá não tinha tudo que eu precisava. Deixei na espera e estiquei até um mercadinho na esquina. Naquela hora, a gente não podia entrar. Atendimento só pela grade. Agora imagine eu que comparo preço. Então dei uma pirangada. Fiquei pedindo pela grade uma amostra das cervejas da prateleira e fazendo a conta de quanto saía o mililitro. Não foi uma boa idéia ficar com o celular exposto assim, do lado de fora, para fazer as continhas. O fato do mercadinho estar atendendo pelas brechas do portão alguma coisa significava. Desisti e voltei para o meu freguês de costume, o mililitro lá é até em conta e um centavinho a mais, um a menos, não vai me alfobitar.
No puxadinho, fui atendido com as cervejas, a cabeça de alho, a azeitona e a tira de bacon. Enquanto o rapazinho me aviava as coisas, duas garotas chegaram e ligeirinho foram encarreirando seus pedidos. Um dos itens da lista me cutucou a cuca. Entre os produtos da aviação, pediram uma carreira de ‘bulacha’.
Saí de lá com minhas compras e embiquei para o canal, atrás das coisas que estavam faltando.
No caminho, fui reconhecendo a realidade de um país que trouxe de volta as compras no retalho. Admiti a transformação no entorno, elevando para a categoria de empreendedores, pessoas que, até bem pouco tempo, eram apenas nossas vizinhas. Vivemos um revés histórico de aviamento em taberna expresso no pão e meio e o troco de manteiga, nas duas medidas de óleo, na meia barra de sabão, na boneca de anil, na quarta de feijão e no quartilho de querosene.
Tomei aquela carreira de ‘bulacha’ como a tradução de uma queda brusca no poder aquisitivo da periferia. Isso convertido em cerveja quer dizer que o mililitro sai bem mais caro. É a desvalorização dos minguados dinheirinhos nossos se manifestando de forma avassaladora.
A velha e onerada prática do retalho camufla a crise. Cria empreendedores e consumidores a quartilho.
Nessa de ficar refletindo sobre as derrapagens da economia, patetei e voltei pra casa.
Cheguei sem a ervilha e sem o charme do papel celofane. Deu confusão, pleno Natal.
                   

sábado, 4 de janeiro de 2020

crônica da semana - pedreira importa


A Pedreira importa
Sou Pedreira até a ponta da unha, do dedo mindinho dos pés. Desde que desembarcamos no galpão Mosqueiro-Soure, ou como se usa dizer, desde que me entendo por gente, moro na Pedreira. E isso não é floreado não. Fazendo as contas, arrisco dizer que me arranjei em todas as ruas do bairro.
Peralá, preciso corrigir a informação. Ajeitando a conta, pros lados da banda norte, não morei apenas na Perebebuí. Já pras bandas do sul, não me abanquei nem na Curuzu, nem na Antônio Baena. O resto tudo me viu chegar ou sair com minhas tralhas, trens e teréns.
Sair com bagagem na cabeça, de uma hora pra outra, ir se arranjando, é arte comum aos sem-casa. Umas vezes particionando a família em habitações pequenas, outras, juntando todo mundo, em número que chegou a ser de 11 pessoas, em construções, pela capacidade de pagamento, pequenas, que podiam ser as tradicionais casinhas de três cômodos. Tudo dependia do cenário.
Para meu povo, importava era a morada ser na Pedreira. Na baixa, que fosse, ou no centro. Valia o que tivesse.
Esta configuração geográfica, me faz voltar uns anos e refazer o desenho do bairro, tomando como base o eixo da Pedro Miranda. Até uns anos atrás, podíamos definir dois pontos baixos no traçado da Pedro Miranda. A região que exibia mais impacto era a chamada baixa da Pedreira, na ponta norte. Um trecho longo, que ia da Lomas Valentina até a Alferes Costa. Parte deste trecho passava o ano todo alagado, num lamaçal cortado de pontes e atapetado de capim baixo. Exceto alguns caminhões de serviços e o Jurunas-Conceição, por ali, ninguém se atrevia. Era uma planície larga que recebia água da chuva, do canal da Pirajá e em alguns pontos se ramificava em novos canais, como o canal da Passagem D’Outel. O grande irrigador da área é o decantado igarapé do Zé, que tem nascente de água limpa e clarinha lá nas matas da Aeronáutica. Com a execução da macrodrenagem, o igarapé foi contido em um único canal, que é conhecido hoje como o canal da Pirajá, e não invade mais as margens. A dita baixa da Pedreira, que, em tempos outros eu varava metendo o pé na água até chegar a Escola Salesiana, e com a batata da perna minada de chamichuga, é um dos poucos lugares, daqueles de passado dramático, que não alaga mais em Belém.
Já o canal do Galo, que cruza a Pedro Miranda, ali chegando à praça Eneida de Moraes, quando se enfeza, vai buscar lá longe. Nos últimos anos, tem surpreendido na potência com que tem ultrapassado os limites e posto boa parte da porção sul da Pedro Miranda no fundo.
Desde pequeno ouço dizer que a igreja de Aparecida foi construída no ponto mais alto da Pedreira. E é verdade. É uma elevação de relevo que funciona como divisor das bacias do Galo e do igarapé do Zé. É área nobre. Já morei, dizque, ao derredor, na Barão e na Mauriti, habitat de gente da mais gabaritada categoria.
A geladeira era o ativo doméstico que mais sofria com as mudanças. Do meio pro fim, foi pro tijolo. Aquela peça metálica que encaixa a porta, na parte de baixo, não resistiu e ao passar do tempo, desprendeu-se deixando a porta bamba e sem rumo. O jeito foi passar um bom tempo com um tijolo sustentando a porta. Isso exigia uma atenção, um cuidado, que mesmo nas batidas diárias já consagradas, não eram um valor da família. Todo dia era uma barulheira de porta caindo e levando tudo ao chão. Mas isso era o de menos. A Pedreira importava mais.