sábado, 11 de maio de 2024

crônica da semana - prova dos nove

 Prova dos nove

Não sei o que falaram de mim para o tal de algoritmo, que foi-não-foi ele joga na minha TL uma tirinha do Calvin. E eu, olha, me dou. Presto reparo. O desenho trata de conflitos próprios de um molequinho muito ‘dos seu atentado’. Dentro da família, com os amigos da rua, na escola. A fantasia é um componente que se destaca na tirinha. Calvin tem um tigre de pelúcia que, nos segredos do garoto, se anima, ganha vida e partilha com ele incríveis aventuras e profundas reflexões.

Calhou de me aparecer um quadrinho cheio de sinceridade e graça, tendo a mãe como tema. Os dois se divertem na rua e encontram um passarinho machucado. Especulam sobre o estado do bichinho. Estimam a gravidade do problema. Se há risco do pássaro morrer. Em outro quadrinho Calvin pede para o tigre tomar conta da pequena ave e sai correndo pra chamar a mãe. Ainda ouve, Harold, o tigre, duvidar se mãe, naquela altura do campeonato, pode fazer alguma coisa; e na correria, Calvin lança a resposta genial: “claro que pode. Eles não deixam a pessoa ser mãe se não souber dar jeito em tudo”.

Concordo em gênero, número e no superlativo da verdade mais verdadeira, com o menininho do desenho. Mãe é plena sabedoria, inventividade, doçura e eficácia. É campeã absoluta no jeito de corpo, de alma, no equilíbrio da vida e da lida.

Tiro pela minha. Quer dizer, todo mundo tira pela sua. A melhor mãe do mundo é sempre aquela mãe do sujeito da oração.

Eu, por mim, asseguro que o jeito que minha mãe deu em tudo, me permitiu chegar até aqui. Sou obra das mãos provedoras de Luzia. Lindas mãos.

De mim, é comum sair histórias de mamãe suavizadas, temperadas com humor. Adoçadas com pitadas de leveza e traços graciosos.

Tem, porém, o outro lado. Aquele do compromisso, da responsabilidade, da sisudez na hora e tempo das obrigações. Minha mãe valorizou muito a nossa preparação para encarar as lutas diárias e isso passava necessariamente pelo desenvolvimento intelectual mínimo que nos poupasse sermos ludibriados. Vivíamos do comércio circunstante, da marretagem, da vendinha de porta, e mais tarde nos concentramos na barraquinha de feira. Tínhamos que conhecer os dinheiros e fazer as continhas direitinho. Ordenar cadernos dos créditos ou dos ‘em a ver’. Fazer compras para revendas, definir preços e dimensionar o lucro ao alcance restrito do nosso cumê, beber, vestir e estudar. Mamãe era a regente das sinfonias organizacionais que inventávamos a cada dia, em favor de nossas vidas e dos enfrentamentos e superações de aperreios e encalacres. Exercia esta liderança amparada por propriedades íntegras dentro dela que só se justificavam com tal envergadura por força de uma vontade enorme que tinha em continuar viva, respirando, criando a filharada, e sonhando com um futuro.

As ferramentas pedagógicas que ela utilizava, herdei. Estão benzinho aqui na minha mesa, o caderninho de contas, com números de margem a margem e até além delas; a pequena agenda com nomes dos fregueses mais fiéis e a bolsinha com um atracador invocado, das antigas, onde duas hastes com esferas maciças na ponta, montam-se sobrepostas na posição certa de fechar o compartimento das miudezas e moedinhas que usávamos para troco.

havia dias que o sol raiava e a gente só tinha o numerário da bolsinha de miudezas para prover tudo em quanto. Mas é verdade. Deus só deixa a pessoa ser mãe se ela der jeito em tudo. O custo era mamãe se animar e se elevar em uma imensidão de coragem tal que o encalacre estava superado. Ao final da jornada, uma comprinha no supermercado Sandra estava garantida.

Vou ao caderno dos números e elaboro a continha extremamente comovente de maio. 04 de maio, da minha companheira; mais 12, o segundo domingo; mais 14, meu dia de filhinho; mais 15, o dia do adeus de minha heroína. Somo as parcelas e verifico se está certo (mamãe me ensinou tirar a prova dos nove).

Está.

 

 

 

 

 

 

 

sábado, 4 de maio de 2024

crônica da semana - tucandeira

 Tucandeira

O mês de maio inicia com as comemorações e reflexões pelo Dia do Trabalho. Mesmo com a correnteza do livre pensar entendendo que a comemoração  deva ser pelo  Dia do Trabalhador, não há conflito na base ou no chão da fábrica de referendo sobre  o sentido de uma ou outra opinião. Penso que ambas são válidas. Ainda no meu tempo de militância sindical, reconhecia as duas referências, embora eu seja simpático, até recorrendo a uma visão Evolucionista, à versão que define o primeiro de maio como o Dia do Trabalho: reconheço a capacidade de realizar trabalho como uma propriedade essencialmente humana, evolutiva (que vem desde o aumento de volume do cérebro, passando pela mutação que gerou o polegar opositor, até a elaboração química que nos permitiu abstração e as formulações cartesianas dentro do cocuruto da gente), e que por toda a história tem o poder de modificar as coisas, o mundo, a vida.

Na origem, ora veja, trabalho é palavra ligada à dor.

Vem do latim tripalium e representa um instrumento de tortura. Com o passar dos anos, a palavra foi associada a este dom que temos de modificar as coisas, e mais: formou um conceito de troca de valores. O trabalho é tido também como mercadoria, como peça de uma engrenagem produtiva lubrificada pela alma das gentes.

Se o dia do trabalho ou do trabalhador é motivo de festa ou de dor, vai da gente. Depende das nossas análises pessoais, conjunturais e até à luz do dito humor do mercado. Eu, desde que era sindicalista, encapetado que era, e hoje, apascentado e ainda na lida da fábrica, faço do meu dia a dia, um oportuno laboratório que me dê perceber qual o real sentimento que habita o coração do operário ante o mundo do trabalho.

E sempre recorro ao marco cravado para a celebração da data e que se pauta na luta e na repressão de operários de Chicago, em manifestações pela redução da jornada, que chegava a 16 horas por dia, no final do século 19. Conto essa história, destaco que a reivindicação dos trabalhadores não foi atendida e ainda, que a manifestação resultou, segundo a versão mais conhecida, em enforcamento de sindicalistas. Aí, a reação que mais percebo nos meus companheiros de trabalho é um assustador distanciamento, um alheamento do desfecho, em alguns casos, com teor condenatório e pessimista. “Tá vendo,  lutaram tanto e perderam”, ouço, desnorteado, de parceiros que dividem a lida comigo, todos os dias e que hoje cumprem jornadas de, no máximo, 8 horas, conquistadas a partir da dedicação dos enforcados. Ouço que se referem aos condenados, na terceira pessoa: como ‘eles’. Eles perderam e não ‘nós perdemos’. Não se incluem no processo de lutas históricas.

Penso ser este desnorteamento, a minha dor. Meu tripalium rotineiro... doído.

A rotina do trabalho, porém, me legou outra dor, uma dor física insuportável, causada por uma ferrada de Tucandeira. Foi em Rondônia.

Eram meus primeiros anos vendendo a minha mercadoria-trabalho. Nem reconhecia o certo dos direitos, deveres, instintos ou impressões que permeavam meu mundo de trabalhador. Desenvolvia as atividades dentro das minhas oito horas, com intervalo para o almoço. Tínhamos um restaurante exclusivo para nos atender, coordenado por uma chefe exigente, disciplinadora. Todos, antes de entrar no restaurante deveriam fazer a higiene lá fora, se lavar, tirar a poeira e não entrar de botas no salão. Deu então que me cuidei, me ajeitei, deixei a bota na sapateira, e antes que eu chegasse à porta do prédio uma Tucandeira me pegou no caminho. Vi estrela, Fui na lua e voltei direto para os horrores da tortura que aquele veneno viajando desinibido fazia desde a ponta do dedão do pé até meu mais límpido espírito.

Alguém que ainda estava de bota viu a formigona desatracando de mim, esmigalhou a bicha na bicuda, mas a bronca já era feia. 24 horas e eras de dor imensa me esperavam. Resisti. Resisto ainda às ferroadas.