terça-feira, 31 de março de 2020

pequenos pecados


III

Já que falei nos lanceiros, vou emendar com o caso. Antes, digo que a estadia na capital do Chile foi ótima. Temperatura sempre abaixo dos 5 graus, sol e bastante agitação na cidade. Sempre, porém, os alertas nos acompanhando. Certa vez, fizemos a visita a um povoado vizinho, com uma produção de artesanato bem destacada e com um perfil de produção, digamos assim, elitizado. Muita gente bacana freqüentando o local. Gringo pacas. Não era pra nós. Nos informamos e conseguimos a indicação de uma feira popular. O mercadão municipal. Tomamos o metrô e partimos pra lá. Com as mesmas e severas recomendações. Cuidado com a bolsa! Pensa num lugar com mina de gente e churrasqueiras espalhadas pelas ruas preparando assados de frango. Uma loucura! Impressionado que estava, tirei todo dinheiro que tinha dos bolsos da calça e guardei no bolso do casaco, lugar bem visível, sensível, e que eu tinha um controle melhor. Foi tudo na maior paz, no mercado. Lembrancinhas baratas, e povo na rua.
Eis que aconteceu. Chuva em Santiago é coisa rara. Baixo índice de precipitação tem a capital do Chile. Cai uma água aqui, outra acolá. Nesse dia, arriou um pampeiro. Passou o dia inteiro chovendo. Depois de uma excursão à fronteira com a Argentina, chegamos no hostel na broca. Nos aviamos para sair e comer algo. Debaixo de um chuvisco chato, partimos para o metrô. Era a primeira vez que pegávamos o metrô no horário de pico. Pensei que pela chuva, não haveria tanto movimento. Pensei errado. Outro pecado. Relaxei. Aproveitamos o início da noite para conhecer o edifício mais alto das Américas. Jantamos na praça de alimentação que tem no térreo do prédio. Estava com uma calça esportiva de bolsos laterais fechados com zíper. O normal era, em locais movimentados, eu guardar o dinheiro e documentos no bolso do casaco, como falei antes. Mas nesse dia, patetei. Na volta, pegamos uma vuca para entrar no metrô. Embarcamos aos empurrões. Logo nos primeiros momentos, percebi algo estranho. Uns caras, se movimentando, chamando a atenção para o mapa com as estações. Distraindo a gente. Um deles foi se ajeitando do meu lado. Segurou no corrimão, se ajeitou. Não via onde havia socado a outra mão. Estava era cascavilhando o meu bolso, o danado. Abriu o fechecler, enfiou os dedos em pinça. Senti aquele fervilhado dentro do bolso. Fiz um movimento brusco, ele disfarçou. Não sabia que ele já havia aberto meu bolso. O parceiro dele continuava distraindo a gente. Perguntando onde era a parada tal, se estava próxima, essas coisas. O camarada voltou à carga. Nessa hora, senti, levei a mão ao bolso e encontrei a dele. Dei o alarme. Ele se adiantou. Ainda puxei a mão dele pra ver se não carregava nada meu. O metrô parou, abriu a porta e ele correu para a saída. Imediatamente fiz a auto-verificação. Ele havia aberto os dois bolsos, feito a sondagem e se preparava para tirar tudo de dentro. Se não sou moleque doido da Pedreira, teria dançado bacana. Na estação seguinte, o outro desceu. Era tudo uma combina. Depois de tudo, bateu o banzo, o pânico. Lugar que não é o nosso, gente de língua diferente. Imaginei aquele povo todo no metrô, de Santiago, do Chile, da América espanhola toda conspirando contra nós. Descemos na estação integradora, ganhamos as escadas e corredores procurando a nossa linha, apavorados, era como se os lanceiros nos mantivessem na mira. Quando chegamos ao nosso quarto, refletimos sobre a mancada do dia, abrimos a janela, procurando a cordilheira, mas estava escuro e chovendo.

IV

A chuva durou o dia todo e teve uma participação especial no contexto de pequenos pecados, arrependimentos, mancadas e sentimentos posteriores de não se arrepender por ter tomado uma difícil decisão.
Ocorre que a chuva aconteceu exatamente no dia do nosso mais caro e mais esperado passeio. Iríamos ao pé do Aconcágua, na fronteira com a Argentina. Observo que a visita que fizemos ao Chile foi pouco tempo depois de um acidente em um dos pontos turísticos do país e que levou ao fechamento da área, ao endurecimento nas normas de segurança e criação de novos procedimentos. Uma das regras é que, se o tempo não estiver bom, as excursões para as montanhas são canceladas.
A saída estava marcada para as 5 da manhã. E o toró tava que tava. Em contato com a coordenadora do passeio, nada alterado. Eu, com essa coisa de me impressionar, já estava dando pra trás, revelei para minha companheira Edna, que estava com medo e que contava com a possibilidade de cancelarmos a viagem. Ela ponderou dizendo que a agência tinha as orientações e se fosse necessário o cancelamento, ela nos avisaria.
Sinais que justificavam a minha intenção de desistência se apresentavam bem antes das cinco da manhã. Acordei meio azuruote por causa de um barulhinho estranho dentro do quarto. Eram goteiras. Mina de goteiras. O quarto estava alagando. Molhava em cima da pequena cômoda, do cabideiro, uma linha firme de água avançava para a nossa cama, a ponta dos cobertores já estava encharcada.
Fui atrás do gerente do hostel. Ele dormia em um anexo e eu teria que atravessar uma área descoberta, embaixo de chuva e com temperatura beirando os dois graus. Missão! Pequei os cobertores mais grossos, joguei na cabeça e me abalei. Quase derrubo a porta do quarto dele. Não entendeu muito bem tudo aquilo, aquela visita inesperada, a chuva, a minha reclamação. Quando chegou ao quarto, caiu a ficha. Providenciou imediatamente outra acomodação e nos ajudou na mudança. Já instalados em novo quarto e secos, é que me bateu desistir do passeio, já estava dando cinco horas.
Os operadores de turismo estão atentos à dinâmica do tempo na região. Sabiam que a chuva ocorria na parte mais baixa do relevo e lá em cima, nas montanhas, o tempo estava bom. Diante desta informação, desisti de desistir. Cinco horinhas e poucas, a van encostou para nos pegar. Embarcamos ainda com chuva.
Em tudo por tudo, foi um passeio maravilhoso, cheio de sensações jamais antes experimentadas por nós. Desde o trajeto, com mais de duas horas de encantamento pelas paisagens extraordinárias, até a visão da portentosa cadeia de montanhas no limite com a Argentina, onde se localiza o monte Aconcágua exibindo seus 6.962m de altitude. Concentramos nossa visita em uma estação de esqui chamada Portilho. Lá em cima a temperatura marcava menos 14 graus. Taí,  foi um dia que não me arrependi por manter uma programação, em que pese os contratempos e a chuva que me deixou impressionado. Depois desse dia maravilhoso foi que um lanceiro, branco, todo empoadinho, abriu meu bolso e tentou me roubar no metrô. O saldo do dia foi tão bom, que nem forcei uma explicação sobre a mina de goteiras no quarto, mas o gerente, que ainda de madrugada, tomou a ação necessária, se desculpou e analisou o problema como o resultado de uma chuva atípica. Não chove desse jeito em Santiago. Aceitei a explicação. No frigir dos ovos, tudo acabou na tão almejada santa paz.


segunda-feira, 30 de março de 2020

Inventário da solidão - pequenos pecados


Pequenos pecados

I

Ainda bem que antes dessa crise toda e a pouca perspectiva de melhora em curto prazo, eu fiz uma das aventuras mais fascinantes da minha vida. Conheci os Andes chilenos.
Não foi fácil. Exigiu algumas noites de plantão na internet à espera de uma boa promoção para as passagens aéreas. Outra procura para hostel com diárias em conta; um aperto de cinto nos meses que antecederam a viagem, e muita pesquisa junto aos mochileiros sobre costumes, mobilidade e serviços para que a gente pudesse aproveitar as atrações do lugar sem passar por aperreios e gastando o mínimo.
Foi tudo muito bem, tudo muito bom. Tirando os pequenos pecados...
A primeira coisa da qual me arrependo foi a escolha de horários dos vôos. A gente tem que colocar na cabeça que, se achar uma passagem de valor baixo, já ganhou a parada. Nada de querer sempre mais. Ingenuamente, foi o que fizemos. A partir do preço, o próximo critério que usamos para a definição da viagem foi o tempo de permanência nas conexões. Optamos pelo menor tempo. Nunca mais faço isso. Por mim, pode durar três, quatro, cinco horas. O que não pode é acontecer como se deu com a gente. Quando voltamos do Chile, tivemos só uma hora até entrar no outro vôo para Belém, e um monte de coisa pra cuidar nesse intervalo raquítico: retirar bagagem, passar na imigração, sair da área interna do aeroporto, fazer check in, despachar bagagem de novo, passar novamente pelo rito do detector de metais, sair feito doidos, no maior pique atrás do portão de embarque. Isso sem orientação de ninguém. Na volta do Chile, por pouco não tive uma síncope de tanta tensão e correria. Minha pressão foi lá pra cima. Pra nunca mais! Se tiver que fazer conexão e puder escolher, vou escolher um tempo em que eu possa fazer tudo na mais santa paz. Um detalhe que nos enganou foi que na ida para o Chile, foi a mesma uma horinha. Não houve tanto estresse porque despachamos as malas direto para Santiago. Mas na volta, a lei exige que se faça a retirada da bagagem e o procedimento alfandegário, quando entra no Brasil. Aí, na conexão em São Paulo, é sufoco.

II

Outro arrependimento foi a nossa falta de cuidado com a segurança quando desembarcamos no aeroporto de Santiago.
Havia um acerto com a direção do hostel, que um carro iria nos apanhar no aeroporto. Foi uma boa ideia, pois enlaçaria o serviço de transporte e hospedagem em um único pacote de custos e responsabilidades.
Ocorre que houve um desencontro nas informações de horário. Quando chegamos no aeroporto, e nos dirigimos ao local combinado, nada. Ninguém nos esperava. Diante de um problema que só fomos nos dar conta ali, na hora, que era a dificuldade na comunicação, pois há uma distância enorme entre a língua que eles falam e o nosso portunhol, cometemos o pecado.
O encontro era na frente de uma casa de câmbio. Havia sim, uma pessoa lá. Mas não era o mesmo do acertado com o hostel. Perguntamos algo, ele disse que o motorista havia estado ali, mas com a demora do vôo, abandonou a missão. Fiz outra bobagem. Mencionei o nome do hostel e da pessoa com quem eu me comunicava. O homem pegou o celular e fez (simulou, porque  chegando ao hostel, não confirmei este contato) uma conversa com alguém, como se autenticando a minha história. A seguir, agiu como se orientado pelo hostel, para nos atender. Nos informou que estava acionando outro carro. Tudo muito rápido, muito confuso, dificuldade na comunicação e... uma desconfiança. Aliviei um pouco, quando observei que o cidadão estava atendendo também outro viajante, apareceu um carro, o viajante foi acompanhado pelo homem e embarcado. Esperamos ainda um pouco, até que o nosso carro chegou. Guardamos as malas e embarcamos. E, absurdos dos absurdos. O homem que estava no aeroporto, entrou no carro também.
Se conto essa maluquice hoje, é porque correu tudo bem. Mas não recomendo. Agi contra minha crença. Sempre advogo que, em lugar que a gente não conhece, o mais seguro é usar o serviço do aeroporto. Fiz tudo ao contrário. Houvesse má intenção ali, éramos presas indefesas. Seria muito fácil nos subtrair um rim, tirar nossas córneas, o baço. Levar-nos para um lugar ermo, tomar tudo da gente. O detalhe é que estava com toda a grana para passar a temporada, em espécie. Os agentes que consultamos nos aconselharam a não usar cartão de crédito e também a não fazer câmbio no Brasil. Ou seja, poderíamos ficar com uma mão na frente, outra atrás. Deixo claro que o Chile é um país com baixo índice de violência. Crime organizado, de alto potencial não é comum por lá. Em Santiago, vale a atenção com os descuidistas, destes sim, fomos alertados. E tenho até uma história pra contar deles. Mas essa coisa de morte, assalto, seqüestro... não tivemos notícia. Em Santiago ninguém te aponta uma arma exigindo o celular.
Chegamos ao destino, inteiros e aliviados (acreditem, o homem do aeroporto foi no carro até o fim do trajeto e depois ainda seguiu com o motorista). Apenas uma saia justa com a ‘propina’, porque lá é coisa comum pedir gorjeta por tudo em quanto, e também pela majoração da corrida. Custou 5.000 Pesos a mais do que o previamente acertado com o hostel. Quando nos hospedamos, ajeitamos as nossas coisas, abri a janela, mirei o horizonte. Lá adiante, estava a cordilheira. As montanhas de brilho e cores exuberantes. Refleti sobre aquelas horas de indecisão e de temores reprimidos. Meus olhos se encheram de lágrimas. Chorei um choro envergonhado, porque a gente faz cada besteira, mas chorei aliviado de uma culpa enorme.

segunda-feira, 23 de março de 2020

inventário da solidão

Inventário da solidão
Ficar em casa, quieto, para mim não é novidade. São incontáveis, nos últimos anos, as vezes que, terminada a minha jornada da semana, acontecer d’eu entrar em casa na sexta e só pôr a cara na rua na segunda de madrugada, para ir trabalhar de novo. O fato de morar numa vilinha, até ajuda a compor um estado de reclusão. Tem final de semana que não dou definição de absolutamente nada do que acontece na rua, nem pra comprar o açaí eu me abalo.
Foi uma opção minha. Nem para o nosso encontro de domingo, na banca dos escritores paraenses, no calçadão da Praça da República, eu estava indo mais. A explicação deve-se em parte pela simpatia que tenho pela solidão e também pela apatia que se abateu sobre mim, desde a última eleição e ao risco sempre presente de encontrar com gente intolerante, com quem até já fiz questão de travar embates selvagens, mas que agora me entojam. Além disso, muitos dos divertimentos populares que eu apreciava, findaram-se na cidade, perseguidos pelos últimos prefeitos. A cultura popular, aquela que me atrai, foi quase que totalmente dizimada em Belém.
Quedar-se em casa, quieto, para mim, não me abala. O valor que esse recolhimento toma agora, sim, é que baqueia. Uma coisa é fazer o recolhimento por vontade própria. Outra é pela necessidade do isolamento social. Não escondo que sofri um abalo nas bases, neste meu primeiro final de semana de quarentena.
Na sexta-feira fui comunicado pela empresa em que trabalho, que, a hipertensão e um problema coronário diagnosticado no ano passado, me colocam no grupo de risco da Covid-19. A orientação é que eu fique em casa e sem um tempo certo para voltar. Trabalhei até sexta, e, pra falar a verdade, já estava preocupado com a minha exposição. Diariamente, no caminho da casa pro trabalho e do trabalho pra casa, estimo uma interação com pelo menos 100 pessoas, isso fora as relações dentro do ambiente de trabalho. Para mim, já estava, realmente ficando no limite.
Revelo, que embora precisasse desse afastamento, quando ele se efetivou, tomei um choque. Caí na real.
Entendi melhor, agora, o risco porque enquanto na rotina do trabalho, passava a maior parte do tempo em Barcarena e, em certa medida, à parte das atualizações do problema no Brasil. Quando chegava em casa, sabia de alguma coisa, mas o cansaço me impedia de me impressionar.
Neste primeiro sábado da quarentena, fiquei assustado. Muita informação. Muita desinformação. Muito medo de um lado e, inacreditavelmente, pouco medo de outro. Chacoalhando a realidade dos fatos e peneirando o que pode ser pertinente, atinei para um cenário delicadíssimo.
Estar no grupo de risco, e a esta dramática perspectiva, ainda associar o produto disso, a alteração (desnecessariamente brusca) na rotina, me fez, nos primeiros instantes pirar o cabeção.
Pensei no meu trabalho. No abandono às pressas dos meus afazeres, nas tarefas que deixei por lá em andamento, nas minhas obrigações, na minha coleção de pedras raras que estavam guardadas em local improvisado por causa de uma reforma no prédio; dei, ainda, que esqueci de passar a chave na gaveta da minha mesa, e também que uma cartela do meu medicamento contínuo do coração ficou lá. Me bateu, de repente, que não tenho previsão de voltar e organizar as minhas coisinhas... Bateu o banzo, juro.
Por outro lado, este apartamento compulsório, de boa parte do meu mundinho, está servindo para sanear o meu espírito. Está claro para mim, que as coisas pelas quais me bato, me estresso e saio do sério, podem ser nada de uma hora pra outra. Eu que nos últimos tempos tenho me preocupado com o futuro estritamente pecuniário, como um pé de meia para garantir meus dias de aposentadoria e a vida que segue e que devo prover, das pessoas próximas de mim; hoje me quedo a admitir que nem futuro, nem pés, nem meias podem existir se perdermos a batalha contra o vírus. Então, nesse aspecto, estou mais tranquilo, desapegado. Estou vivendo um pesadelo de uma viagem de avião cujo piloto sumiu. Assombram as intenções malignas do governo Federal que ainda vão fazer eu me bater para garantir meu salário no fim do mês. Não sei se o banco vai resolver aquela pendência comigo. Se a minha planilha Excel que opera com dados constantes para o orçamento doméstico vai acusar o golpe. De certa forma, me sinto impotente para essas demandas. Minha prioridade é a batalha diária para respirar. Hoje a minha microeconomia, a pecúnia que vislumbro se reduz ao básico do mês. O suficiente para manter meus pulmões operando a contento.
Como dizia antes, na porta da fábrica, dando uma conotação mais dramática aos nossos embates sindicais: “posso até morrer na luta, mas antes de morrer, eu vou viver. Eu vou viver!”
A princípio, senti a estatística, o isolamento, o grupo de risco, fazendo em mim, o efeito de uma sentença de morte. A impressão que tive é que fora largado em casa, com a boca escancarada cheia de dentes, esperando o vírus chegar, papar minhas enzimas ECA-2, ficar fortinho, se multiplicar, conceder-me o pedido derradeiro, e a seguir, me dar a última forma.
Agora penso diferente. É um conjunto de conceitos, técnicas e ações em favor da vida.
Entendo que estou numa berlinda emurada de recomendações e cuidados (porque se eu pegar o vírus ele vai bamburrar com as enzimas produzidas pela reação do organismo aos remédios que uso para hipertensão). Isso me reduz a possibilidade de agir coletivamente. É desconfortável esta situação de objeto e não de sujeito na luta contra a pandemia. De qualquer forma, quero resistir, para mais na frente retribuir, de um jeito ou d’outro, a mobilização da sociedade e das pessoas mais próximas de mim (minha família, meus amigos, companheiros de trabalho).
Iniciaria este texto, com o título ‘testamento’. Mas as horas passaram, os sinais foram se revelando. Uma esperança foi nascendo dentro de mim (apesar das fortes evidências em contrário, expressas numa perversa curva exponencial).
Pus outro título. Uma, porque acho que, se nós, governo e sociedade agirmos com sensatez e responsabilidade, vamos varar. Outra, porque além das minhas linhas escritas, pouca coisa, de tamanho valor, tenho para deixar de herança.

sábado, 21 de março de 2020

crônica da semana - o fêmur cicatrizado


O fêmur cicatrizado
Li esta semana, que ao ser indagada por jornalistas, sobre qual sinal da sublimação humana, considerava o mais significativo, no ponto de vista antropológico, uma professora especialista no tema, ao contrário do que se esperava, no lugar de citar as evidências tecnológicas, os vestígios de sedentarismo, a agricultura, a domesticação de animais, ou os traços de religiosidade, surpreendeu a todos, dizendo que admitia um fêmur cicatrizado de um indivíduo que viveu há alguns milhares de anos, como o início inequívoco do processo civilizatório.
Percebendo o espanto dos repórteres, a pesquisadora justificou sua opinião dizendo que, num período em que a luta pela sobrevivência era acirrada, no estágio da evolução humana em que a força e a agilidade eram extremamente necessárias para se conseguir alimento e também para escapar de predadores, um indivíduo sobreviver após uma fratura que o impedia de executar movimentos essenciais (e providenciais, como correr em fuga de um animal que o perseguia) só poderia ser possível graças à ajuda de um outro indivíduo ou de um grupo de indivíduos.
Com estes argumentos, a professora estabeleceu a solidariedade como o marco decisivo, o inciso irrevogável na definição de um instante da evolução dos seres humanos, que se pode chamar de embrião da civilização. Conceber uma peça arqueológica que testemunha a cura e assegura a manutenção da vida de um ancestral da espécie, como sendo um indicador do engrandecimento dos valores, é considerar o nosso caminho sendo permeado por motivações existenciais que vão bem mais além do instinto. É, por certo, a releitura da História a partir de um outro ABC, de um código, diríamos hoje, mais humanizado. E o caminho vai longe. É rico de empatia. Ultrapassava os limites do indivíduo coletor-caçador e inaugura a figura presente, prestativa do companheiro. Aquele que te acode, que divide contigo o alimento, te defende das feras. Te dá calor e afeto.
É uma interpretação que nos permite medir também, nobrezas. Costumamos visitar a História para conhecer a trajetória de personagens que se destacaram pela coragem, pela sabedoria, pelas conquistas e riquezas em ouro e prata. Não é comum a busca por heróis que promoveram ações altruísticas, ou mensagens de paz ou curaram fêmures e almas.
Se a gente, no lugar de cavucar a sanha sanguinária do Império Romano, fosse atrás de um certo Uruc, teria uma aventura com um final feliz (e que preservaria a relíquia arqueológica inspiradora da professora em outras ideias sobre o ser e o estar do mundo).
Coletor-caçador, Uruc ao explorar uma árvore de galhos grossos e lisos, atrás de frutas para aplacar a fome, despencou lá de cima e na queda, partiu o fêmur. Urrou que urrou por um bom tempo, porque as palavras para essas situações, há milhares de anos nem se produziam ainda.
Depois de muita dor, foi socorrido por M’ru, membro da tribo que tinha fama de bom coletor e que por aquelas paragens, também coletava. Com Uruc nas costas, M’ru enfretou os obstáculos da mata rasteira das savanas e as adversidades das planícies lamacentas até entregar o acidentado aos cuidados do curandeiro da tribo. À base de imobilização com gravetos verdes e óleos lenitivos, a coxa foi cicatrizada e Uruc pôde voltar a coletar e caçar.
Enquanto convalescia, imobilizado, Uruc sobreviveu porque o companheiro M’ru cuidava dele. E sublimava a História.


sábado, 14 de março de 2020

crônica da semana - maré maré


Maré maré
Parte da minha adolescência, morei numa vila. O proprietário, de quando em vez recrutava a molecada para limpar a vala. Era quando os moradores começavam a reclamar da água empoçando no pequeno quadradinho do quintal. Era um transtorno em série.
A gente arrumava uma enxada e mandava ver. Identificávamos os pontos em que a água era barrada. Um acúmulo de areia aqui (assoreamento), lixo doméstico ali (entulhamento), capim e um matinho baixo no rego da valeta (barramento vegetal). Tudo isso a gente ia retirando e a água ia sendo liberada.
Tenho que contar essa prosa obreira, para demonstrar que a coincidência de maré alta com chuva forte pode até exercer uma influência no festival de alagamentos que está acontecendo em Belém, mas não pode levar a culpa sozinha.
Tirando uma pela outra, uma das alternativas para amenizar os efeitos das grandes águas de março, é fazer como o senhorio da vila em que eu morava fazia. Tem que desentupir os canais.
Não estou dizendo que é só isso, mas quando eu vejo a Pedro Miranda sendo engolida pela enchente e logo abaixo o canal do Galo ostentando árvores robustas no seu leito, sinto que facinho, estamos há uma carrada de trabalhos atrás. A tese diz que quanto mais liso, mais sem obstáculos o canal, mais facilmente a água corre.
Outras variáveis devem ser consideradas para entender os alagamentos em Belém. São decisivas, mas podem ser controladas. A maré alta tão aludida, é uma injustiçada.
A maré é um fenômeno astronômico que acontece por influência da Lua e, em menor intensidade, do Sol. Significa a variação diária na altura das águas do mar. Aqui, no nosso caso, pra dizer, o mar é a nossa baía o Guajará, que é quase um pedacinho do mar. Uma hora a baía tá cheia, outra, ela está seca.
A maré alta, por si, já é capaz de inundar parte da cidade. Esta semana mesmo o Ver-O-Peso, a região em torno da Doca, várias ruas do Reduto foram cobertas pela água que extravasou da baía. E sem chuva!
A somatória deste extravasamento da baía com 12 horas de chuva, então, provoca uma calamidade.
Tenho pra mim, que todo esse sufoco é provocado pela redução do espaço de acomodação da água. Seja da chuva, seja da maré alta. A tese diz da necessidade de termos canais com o leito e as beiradas lisos, para facilitar a correria da água. Acrescento que a falta de canais naturais também favorece os alagamentos de áreas marginais. Ali na doca do Ver-O-Peso, no lugar aonde os barcos de pesca atracam, era antigamente, a desembocadura de um igarapé que fazia seu caminho desde as imediações da Tamandaré. Ali, havia um canal que poderia abrigar a água vinda da maré cheia. Aterramos o Piry, alagamos o Veropa.
A paisagem de Belém mudou muito e não conseguimos, hoje, identificar as bacias hidrográficas da cidade. Podemos entender, porém, as bacias como sendo regiões coletoras de água e se não as localizamos ao natural, podemos reconhecê-las no traçado de canais que a cidade apresenta. Assim rapidola lembro do canal do Galo, da Doca, da Tamandaré, da 14, do São Joaquim... e por aí vai. São receptores que se alisados, para facilitar o escoamento da água da chuva e se dragados, para aumentar a capacidade de acomodação, poderiam contribuir para a redução dos reveses que passamos no inverno amazônico.
Eu sou só um cronista, mas se precisar, posso chamar minha patota, pegar uma enxada, escolher uma bacia dessas, e sair por aí, desentupindo canais.




sábado, 7 de março de 2020

crônica da semana - linda juventude


Linda juventude
É fato virado e mexido, que dou o maior valor no simbolismo das datas. Rastros deixados pelo tempo me atraem. E este março, olha que está têi-têi de dias emblemáticos. Agorinha, no início do mês, me tremi de pavulagem nas bases, quando dei ter alcançado a cifra de 36 anos com minha carteira assinada na profissão da qual me valho até hoje.  O subscrito foi em Rondônia, quando eu ainda era um bebê de 19 anos. Por aqueles dias, a minha linda juventude se desdobraria em mil partes que resultariam em indesejáveis sofrimentos, é certo, mas por outro lado, se emboletariam em prazerosas experiências.
Uma carreira profissional modesta, sem muito fulgor social. Maldita, às vezes. E que vem Integrada a uma vivência pessoal, íntima, cheia de preciosidades, cuidadosamente guardadas na memória (tem ‘amores gris’, lutas inglórias, desvãos, alardes, silêncios, sabores, traços e riscados tortuosos. Indeléveis saberes, dúvidas incontáveis. Certezas poucas, entretanto, imprescindíveis).
A profissão me exigiu viajar sempre. E é exatamente de cada canto que passei que destaco a paixão incorrigível. Foram os cenários, as paisagens, os calores e afagos das cidades, dos rios, dos intrincados sertões que me deram além do necessário à sobrevivência, a graça da contemplação e a satisfação impagável dos sentidos.
Dentre as maravilhas que pude usufruir me vem à mente, um anoitecer na beira do Amazonas. A lua imensa, vermelha, vez ou outra exibindo um movimento líquido, como se vibrasse em filetes coloridos. Um efeito impressionante, possível porque o berço de onde nascia a lua era o leito encantado do rio. Estava em Macapá. Trabalhava com ouro. Nada, porém, a mim, da passagem que tive pelo Amapá, me pareceu mais rico do que a imagem extraordinária daquela lua-sereia saltando de dentro do banzeiro.
O clarão que vem do céu me mundiou também no Xingu. Era época de pouca chuva. Noite sem nuvem. As estrelas minavam espremidas umas nas outras. Partilhavam brilho. Faiscavam tonalidades e intensidade diferentes das cores. O céu do Xingu, por aqueles dias era tão adensado que as mais tradicionais constelações, aquelas que a gente conhece e localiza a partir dos atlas celestes, mimetizavam-se. E uma faixa brilhante dominava o céu. A Via Láctea dos Antigos. A noite do Xingu me levava ao alvorecer da humanidade.
Essa mistura de passado e presente se mostrou da mesmíssima forma, quando ganhei o rumo do norte pela BR 174, saindo de Manaus. Cada corte de estrada era um mergulho numa profundidade atávica de 100 milhões de anos. A exposição da bacia sedimentar amazônica ao longo da rodovia transforma aquele espaço numa artimanha do tempo geológico.
Em Porto Velho, trilhei o caminho em que cada dormente representa uma vida. Embarcado na locomotiva Mad Maria, desbravei o inferno verde. Em Altamira subi as cachoeiras e me embrenhei naquele amontoado de rochas que exibiam desenhos, mensagens dos primeiros homens amazônicos. O sagrado enredo ancestral gravado na rigidez do migmatito.
Tendo começado bebê, antes dos trinta já tinha vivido pacas. Um envelhecimento saudável se antecipou em mim traduzido em luas cheias, céus cintilantes, trilhas e trilhos. Revirando as páginas de um livro bom, passando e repassando calendas emblemáticas, cascavilhando a folhinha dos anos, às vezes beiro à síncope, vou às raias da letargia, acho que vou ter um passamento, mas que nada, o que me vem é só uma tosse doce.