Um mosquito que engoliu um
boi
Se
a gente mudasse a escala dos seres e das coisas, a ‘sovela’ seria o dinossauro
da comunidade dos insetos.
Do
jeito que a conheci, a conheci como ‘suvela’, porque era a pronúncia articulada
na língua falada pela peãozada que batalhava comigo nas matas do Xingu.
No
original, ‘sovela’ é uma peça perfurante usada por sapateiros.
Tudo
a ver com a correlação. Ali, pra gente, a ‘suvela’ era uma perfuratriz eficiente,
dolorida e indefensável. Ali naquelas margens do Xingu, a ‘suvela’ era uma
carapanã das mais temidas pelo seu ataque certeiro, imponderável, humilhante. E
pelo tamanho. Era mosquito de engolir boi. O dinossauro do micro reino dos
insetos.
No
período que trabalhei no Xingu, o rigor com a segurança era bem ralo. Muita
coisa escapava aos olhares proativos de controle e cuidados com as tarefas e
missões do trabalho.
Lembro,
porém, de duas rotinas que não podiam faltar. A ‘retrete’ confeccionada ao
largo do acampamento e à jusante dos cursos d’água, escavada e estivada para
atender as precisões da equipe, bem postada, de cócoras sobre a estiva. E o
mosquiteiro. Montado o acampamento, todo mundo tinha que armar mosquiteiro. Era
lei.
Ora,
lei...
Era
obedecida quando estávamos na margem direita, que, diga-se de passagem, era o
reino absoluto e farto das carapanãs. Tinha mina delas. Dava quatro da tarde,
tínhamos que nos recolher aos mosquiteiros, caso contrário, havia o risco de
sermos ascendidos, raptados e sugados em sugadas múltiplas no nosso sanguinho, pelas
nuvens superorganizadas de carapanãs.
Já
na margem esquerda, ao largo da Transamazônica, a gente dava uma relaxada. Não
havia aquele exército voraz. Uma aqui, outra ali, de não fazer medo, aí, para
amenizar o calor, dispensávamos o mosquiteiro, mesmo contra a lei. A proteção
viria dos lençóis, na noite alta, quando a temperatura caía e a gente se
embrulhava dos pés à cabeça. Adiantava para o ordinário, para o comum das
espécies. Mas não para a perfuratriz, para o dinossauro das carapanãs.
A ‘suvela’
tem um tamanho anormal. Mesmo o maior indivíduo que a gente perceba aqui pelas
paredes de casa, ainda é um anãozinho, diante da ‘suvela’. Não é preciso dizer
que o bico da bicha é proporcional ao seu corpo. Um bicão. Então, não tinha
lençol, não tinha trama de rede que nos salvasse. Quando embicava, não tinha
bom. De frente, ainda dava pra gente sair no tapa. Agora quando vinha por baixo
da rede, na maior vontade, na maior velocidade, desmontava resistências. Era só
peão pulando, de susto e de dor. A ‘suvela’ varava qualquer barreira.
Se
boi houvesse, boi engoliria.
O
que foi? Um mosquito que engoliu um boi.
Um
mosquitão, uma carapanãzão, a ‘suvela’ revisava nossa força, reativava um
apreço apático pela nossa integridade, nos volvia a novos critérios sobre
segurança e saúde no trabalho.
Vampirizava,
mas não transmitia malária, dengue, zika, nada dessas doenças trágicas. Nos
impunha gigantescas humilhações. O real dos fatos me sugere, porém, que
trocaria um único Aedes desses que me
espreitam, por 20 ‘suvelas’ das mais bicudas, furando minha rede. Na boa.