sábado, 28 de janeiro de 2017

crônica da semana - suvela

Um mosquito que engoliu um boi
Se a gente mudasse a escala dos seres e das coisas, a ‘sovela’ seria o dinossauro da comunidade dos insetos.
Do jeito que a conheci, a conheci como ‘suvela’, porque era a pronúncia articulada na língua falada pela peãozada que batalhava comigo nas matas do Xingu.
No original, ‘sovela’ é uma peça perfurante usada por sapateiros.
Tudo a ver com a correlação. Ali, pra gente, a ‘suvela’ era uma perfuratriz eficiente, dolorida e indefensável. Ali naquelas margens do Xingu, a ‘suvela’ era uma carapanã das mais temidas pelo seu ataque certeiro, imponderável, humilhante. E pelo tamanho. Era mosquito de engolir boi. O dinossauro do micro reino dos insetos.
No período que trabalhei no Xingu, o rigor com a segurança era bem ralo. Muita coisa escapava aos olhares proativos de controle e cuidados com as tarefas e missões do trabalho.
Lembro, porém, de duas rotinas que não podiam faltar. A ‘retrete’ confeccionada ao largo do acampamento e à jusante dos cursos d’água, escavada e estivada para atender as precisões da equipe, bem postada, de cócoras sobre a estiva. E o mosquiteiro. Montado o acampamento, todo mundo tinha que armar mosquiteiro. Era lei.
Ora, lei...
Era obedecida quando estávamos na margem direita, que, diga-se de passagem, era o reino absoluto e farto das carapanãs. Tinha mina delas. Dava quatro da tarde, tínhamos que nos recolher aos mosquiteiros, caso contrário, havia o risco de sermos ascendidos, raptados e sugados em sugadas múltiplas no nosso sanguinho, pelas nuvens superorganizadas de carapanãs.
Já na margem esquerda, ao largo da Transamazônica, a gente dava uma relaxada. Não havia aquele exército voraz. Uma aqui, outra ali, de não fazer medo, aí, para amenizar o calor, dispensávamos o mosquiteiro, mesmo contra a lei. A proteção viria dos lençóis, na noite alta, quando a temperatura caía e a gente se embrulhava dos pés à cabeça. Adiantava para o ordinário, para o comum das espécies. Mas não para a perfuratriz, para o dinossauro das carapanãs.
A ‘suvela’ tem um tamanho anormal. Mesmo o maior indivíduo que a gente perceba aqui pelas paredes de casa, ainda é um anãozinho, diante da ‘suvela’. Não é preciso dizer que o bico da bicha é proporcional ao seu corpo. Um bicão. Então, não tinha lençol, não tinha trama de rede que nos salvasse. Quando embicava, não tinha bom. De frente, ainda dava pra gente sair no tapa. Agora quando vinha por baixo da rede, na maior vontade, na maior velocidade, desmontava resistências. Era só peão pulando, de susto e de dor. A ‘suvela’ varava qualquer barreira.
Se boi houvesse, boi engoliria.
O que foi? Um mosquito que engoliu um boi.
Um mosquitão, uma carapanãzão, a ‘suvela’ revisava nossa força, reativava um apreço apático pela nossa integridade, nos volvia a novos critérios sobre segurança e saúde no trabalho.
Vampirizava, mas não transmitia malária, dengue, zika, nada dessas doenças trágicas. Nos impunha gigantescas humilhações. O real dos fatos me sugere, porém, que trocaria um único Aedes desses que me espreitam, por 20 ‘suvelas’ das mais bicudas, furando minha rede. Na boa.


sábado, 21 de janeiro de 2017

crônica da semana - doce acre

Doce acre
Algo sacoleja dentro de mim fazendo cobranças e repreendas, quando tacho o mundo do trabalho como um mundo de dissabores. Justo. Talvez seja um mundo doce acre. Esta a regência nominal mais indicada.
Logo depois do desacerto no escritório da Santo Antônio, houve de mamãe ter aquele carinho de mamãezinha querida do meu coração, comigo. Baqueei. Pela amiga, que era secretária do escritório, o advogado, imagino eu, com a consciência pesadíssima, mandou um envelope pra mim. Era a minha quita. Uma indenização por aquela manhã incompleta, que não deu nem um traço, no meu tempo de contribuição previdenciária.
Fizemos coisas, com aquela graninha. Uma delas foi o investimento na minha nova lida. Uma geladeira para a venda de picolés.
Virando mundo por aí, percebi as diferenças que fazemos nas notações e identificação das coisas. Taperebá, por exemplo, é uma confusão. Um estica e puxa. Lá no Xapuri, a gente conhecia por nome de cajá. Viemos para Belém, tivemos que nos acostumar a chamá-lo de taperebá. Aí, fui morar um tempo em Rondônia. Lá voltei pro cajá. O nosso chope, aquele, antigo chope de groselha e uvita, por aí, é conhecido como sacolé, geladinho, dindim. Em outros cantos, a geladeira que mamãe comprou por aqueles dias, era conhecida como isopor, simplesmente. Agora, nos tempos de hoje, aqui em Belém, tenho reparado, tratam-na por isopor mesmo.
Pois bem: era uma geladeira. Ativo essencial para a realização do meu segundo trabalho. Vendedor de picolé. Tinha ainda, nove anos.
Contudo, era bem pequena, daquelas sem alça, que eu, mesmo pequenino, abarcava com uma volta de braço.
Saía cedo, passava na sorveteria que havia na Duque, apinhava a geladeira e me danava a bater perna. Vendia na rua. Acanhado e sem jeito, que era, acabei arrumando companhia. Alguns moleques da rua, por solidariedade ou porque não tinham nada pra fazer mesmo, passaram a me acompanhar. Eles é que faziam a propaganda. Pregoavam: “Picoleeeeee´, e tem do extra e do cremoso...”
Não era muito. Não resolvia os encalacres das contas, mas dava um trocado. Houve até um lucro que reinvestimos na compra de uma geladeira maior, com alça. Nessa ocasião, já tínhamos lugar (conquistado com muito papo, pelos meus parceirinhos) garantido na calçada do colégio Alzira Pernambuco. Aí, bamburramos. Todo dia voltávamos com a geladeira vaziínha da silva. E olha, com um monte de dinheiro de papel, no cós do short. Nada de moeda, Só no papel. Éramos ricos. Ricos!
Certo dia, naquela minha batidinha cedo, enchi a geladeira, na sorveteria, com meias partes do extra, do cremoso e lancei a alça sobre o ombro. Mas foi só a conta de eu dobrar a rua, a alça quebrou. Muitos picolés foram para a calçada. Seria um prejuízo enorme. Ainda pensei limpar um ou outro cisco, no short. Mas não. Juntei o perdido, voltei, negociei com o sorveteiro um crédito, e troquei o ciscado pelo limpinho. Terminada a negociação, alcei a geladeira à cabeça e rumei para o Alzira. Surpreso comigo mesmo. Quando estava tudo perdido, aos 9 anos, garanti, com uma negociação de gente grande, mais uma vez, a renda do dia.


sábado, 14 de janeiro de 2017

crônica da semana - caixinha de surpresa

Caixinha de surpresa
Estava eu bem fuçando meus teretetês literários semanais, no firme propósito de coletar um feixe de crônicas para o próximo livro, quando dei com uma candidatíssima a entrar no bolo da nova edição. O ícone do word anunciava um texto  abonado pela simpatia do título: “caixinha de surpresa”. Dei um rolé pelos outros ícones, certifiquei prosas conhecidas, igualmente selecionáveis, volvi à ‘caixinha’. Surpresa monstra foi a minha quando dei que só existia o título. Nada mais escrito havia na vastidão do word. A mais pura página em branco me recebia.
Fururuquei o cocuruto catando o dia em que ensaiei, fiz menção, dei título e não desenrolei a parada da caixinha de surpresa. Onde é que eu estava com a cabeça, meu pai, que não atravessei aquele Rubicão? Que apagão me deu, que não escrevi nadica de nada?
Mas umbora elucubrar. Hummm! O que poderia inspirar uma crônica com tão sugestivo texto. A vida, é uma caixinha de surpresa, diria o narrador da dramática história de Joseph Climber.
Por mim, pelo que me torna e pelo que me deixa, não carrego na bagagem fato ou passagem que eu possa definir como produto inusitado de uma caixinha. Do passado não vem uma lembrancinha sequer. Ah, vem sim...
Quando estava terminando a Escola Técnica, bem no finzinho do semestre e do curso, inesperadamente, para uma época em que as interações entre empresa e escola não eram tão fartas, fui selecionado para uma visita de cinco dias à Mineração Rio do Norte, no trombetas, (surpresa monstra e absoluta, porque, olha, não era top 10 da turma não). Bacana. Primeira viagem de avião. Pela TABA. Com direito a suco de maracujá com aquele cuizinho preto residindo no fundo do copo; e podia tomar quanto quisesse, bastava levantar-se e chegar à garrafa térmica localizada no final do corredor da aeronave.
A visita foi um sucesso. Conhecemos técnicas e processo. Também, claro, exercitamos nossa índole de estudante varando a última noite num bar chamado ‘Bauxitão’, abarcando baldes e baldes de gelada.
Mas a vida, a vida é uma caixinha de surpresa. Sexta-feira, na hora de voltarmos para Belém, a bronca. Não tinha avião. A TABA, inacreditavelmente, falhou no atendimento. No dia seguinte, sábado, seria a nossa cerimônia de formatura (18 de dezembro de 1982). Aí foi um fuzuê. Choramos, tiramos a calça e pisamos em cima, fizemos beicinhos e pirraças. Fretaram um avião, mas só para o dia seguinte. Pra encurtar a história, chegamos em Belém às duas da tarde e a colação começaria às seis. Correria com roupa, convites, formalidades, alguém para dar o nó na gravata, o padrinho...
Meu tio nos deu apoio com o fusquinha da família. Ocorre que, na mesma pisada que apanhou um panelão de maniçoba destinado à nossa comemoração doméstica, emendou e nos apanhou eu, mamãe e meu padrinho para a cerimônia. Não percebemos que a maniçoba tinha entornado um tanto, na beirada do banco traseiro. Mamãe toda arrumada, no seu longo acetinado, sentou em cima.
A vida é uma caixinha.... Ao desembarcar no ginásio, descobri naquele dia, para que serve o lenço que vem na lapela do paletó.


domingo, 8 de janeiro de 2017

crônica da semana- belém 23 graus

Belém 23 graus
Mas foi só as primeiras chuvas de dezembro arriarem na cidade, que as mídias se enxameram de testemunhos dramáticos sobre o frio intenso que invadiu, sem tomar conhecimento, as mais fininhas das fretas dos mais protegidos puxadinhos de Belém.
Penso que há uma lógica nisso tudo. Uma brecha sensitiva por onde o frio passa verossímil que é uma maravilha.
Vamos e venhamos que saímos de um novembro esturricante, com temperaturas beirando os 33 graus e sensação térmica de sei lá...400 graus, por aí. Então o barato deste caro destrambelho climático é exatamente a sensação. É aquele um tanto a mais catalisado pelo nosso caótico desenho urbano. Dependendo do calibre da pessoa, em novembro, o calor foi de calcinar mesmo, de quebrar a molécula de água da mais arquitetada combinação química orgânica que a gente possa ter dentro da gente. Tem gente que desfalece. Delira, baba, dá piripaques e grosopes assustadores.
Ocorre que no outro extremo, uma temperatura mínima de 23 graus, esta que nos visita desde o início de dezembro, é potencializada e ‘sentida’ como se fosse siberianos 22 graus, por exemplo. Dá-se naturalmente um choque térmico coletivo. Quem está acostumado ao banho de mar sabe o que significa esta sensação. Está debaixo daquele sol, pegando aquele bronze, fixando aquele brondor na mecha do cabelo, mas quando cisma de dar um mergulho, aquele resistente contado do dedo mindinho do pé com a pequena onda que se acaba na areia, ao corajoso banhista, lhe parece que o mundo o acutila a alma. No primeiro mergulho, então, é o céu que desaba sobre o empedernido veranista. A água é fria que dói.
Daí, da mesma forma que o corpo tem que se acostumar com a frieza da água da praia, numa tarde de sol de julho; o inverno amazônico reivindica, ao organismo, a mesma adaptação. As fartas reclamações que assistimos nas mídias, nos fazem crer que até o corpo tornar para as confortabilidades térmicas, exigidas a partir de dezembro, vai demorar um pouquinho.
O que vai nos valer é aproximar a dita sensação térmica, que transforma dóceis 23 graus em terríveis percepções de frio intenso, possíveis de serem medidas somente na escala Fahreneit; o que vai nos acudir é trazer a sensação para perto das temperaturas realistas, amigas e eficazes, que não fazem mal a ninguém.
Temperaturas inofensivas, realistas, mas que nos permitem sim, usar aquela camisa manga comprida, conservada à naftalina durante todo o ano, no fundo da gaveta. Nos abonam no uso daquele moletom com capuz e tudo. E nos permitem usar o ventilador à noite, apontando para cima, girando sem buscar a gente, na missão única de espantar os carapanãs.

Temos que desmistificar o frio total que nos assombra, mas, ao mesmo tempo, é coerente aceitar que 23 graus, para nós belemenses que vivemos na “cidade maravilha/purgatório da beleza e do caos” é sim, friozinho muito dos seus aquele, pai d’eguinha que só ele, gostosinho no prumo, no jeito para pôr uma meia, esticar o sono, puxar o pano de imaginar, nos cobrir dos pés a cabeça e...sonhar.