sábado, 28 de dezembro de 2019

crônica da semana - bota cor de gelo


Bota cor de gelo
Na minha cabeça, o leito acidentado da Marquês, os barrancos discretos que ladeavam a rua, o capinzal que num ponto ou noutro nos desviava para pequenas trilhas, as poças de água formadas por causa do peso dos caminhões de gás e de refrigerante que se arriscavam a atravessar o trecho, representavam o cenário para as fantasias. Eu calçava a minha bota cor de gelo e, fazendo a menção der ser o tenente Rip Masters, revivia as aventuras mais eletrizantes do seriado Rin tin tin, que passava na sessão vesperal.
Minha avó ficava piriricas da vida porque eu usava minha bota para essas brincadeiras de rua. Era a parte que me cabia, no final do ano, e de jeito e maneira tinha a finalidade de alimentar meus sonhos. Deveria servir unicamente como sapato de sair para as partes. Ir para a escola, para o arraial, um ou outro festejo de aniversário...
Vovó, que ficava com a gente enquanto mamãe trabalhava na panificadora Aveirense, já havia demonstrado descontentamento com a minha bota cor de gelo. Até com razão. Nossa rua não tinha asfalto e um calçado clarinho logo logo estaria impregnado do encardido da piçarra. Agora cabeça de menino lá pensa nisso! O vendedor mostrou alguns modelos, me agradei mesmo foi daquela bota com uma pequena fivela no dorso, que fazia um barulhinho metálico discreto quando eu andava. O encantamento maior, porém, veio pelo discernimento do vendedor que aliado a uma locução bem postada, transformava uma bota desenxavida de branca, em estilosa bota cor de gelo. Pirei naquela cor. Diferente de marrom ou vermelha, ou preta ou bege. Minha bota era de uma cor invulgar. Isso, por si, era fascinante. Um sonho. Minha avó, logo na primeira chance, espetaria: “ora, sonho; ora, cor de gelo”.
Os tempos eram difíceis. O numerário a mais de dezembro servia para prover o ano, do mais urgente para cada um. Uma roupa nova, sapatos, dinheiro para uma obturação no molar... tudo contadinho às precisões.
Era natural o conflito entre as minhas presepadas nas tardes mormacentas de Belém e as convicções da minha avó. Um embate entre a realidade e a fantasia. Vivia no mundo da lua, eu. Mas minha avó era centrada no carnê da sociedade e no contracheque de pensionista, a cada mês mais raquítico de poderes e possibilidades.
Hoje percebo que meu herói, o tenente Rip Masters representava um exército que explorava o trabalho infantil (o garoto Rusty), exterminava ou expulsava a população indígena do oeste americano. Inocente, achava aquilo bacana que só (os índios eram os malvados vilões).
Sei que minha avó não exigia de mim uma leitura crítica das informações que recebia na sessão da tarde. Tampouco questionava minha postura autoritária quando subia num monte de barro de construção, imaginando ser uma escarpa do Grand Canyon, e gritava com nossa cachorra Lolita, querendo porque querendo dela a destreza do Rin tin tin, e ela, nem seu Souza pra mim. Importava-se vovó, apenas com a certeza de eu ter o que calçar durante o ano que se iniciava. Daí, os ralhos por gastar minha bota cor de gelo em brincadeiras de caubói, nas tardes calorentas de Belém.
Dessas aventuras, desses conflitos, dessas contradições entre sonhos e fantasias, tirei o aprendizado de ter sempre algo para calçar a cada início de ano. Para ir às partes, ao arraial, a uma comemoração de aniversário. E reconsidero minhas antigas fascinações. Cor de gelo é uma cor que não existe.


sábado, 21 de dezembro de 2019

crônica da semana- o natal do seu sandoval


O Natal do Seu Sandoval
Vamos abrandar os espíritos no Natal. Ater-nos ao altruísmo, Quedar-nos às colaborações, largar-nos às ações comunitárias. Mas pelo amor do Jesus Cristinho que nasce e que já na manjedoura, atento a nós está. Nada de sair por aí jogando presentes dentro do rio para fazer as crianças, em mergulhos desesperados, alcançá-los antes que a correnteza os leve, para o finis terrae. Isso já é maldade.
Sugiro: se quiser fazer uma presença com a criançada ribeirinha, articule um contato com a comunidade, com a igreja do local, a escola, a sede social, enfim, procure uma forma de atingir as crianças coletivamente, com respeito e segurança. Procure realizar um evento, mesmo que rápido e discreto, e entregue o seu presente em mãos. Ponha-se téti a téti com as crianças. Dessa forma, além da oferta material, surgirá a oportunidade de oferecer afeto.
Já vi cenas de bondade tão distantes e higienizadas que se aproximaram da mais insidiosa maldade, e que resultaram na conquista dos presentes se dando a base de muitas e infantis braçadas contra a corrente.
É Natal, e, apesar do risco de sentimentos maquiados, não estamos nadando na fartura. Tenho que admitir o valor, por menor que seja, de um gesto concreto. Afinal, tudo está uma carestia só, o cumê diário está pela hora da morte. O que for feito para ajudar de vera, o outro, vá lá que seja, mesmo que realizado só por esses tempos movidos pelo espírito natalino, será de boa acolhida.
Mas criança, sabemos, quer mesmo é brinquedo.
Seu Sandoval entendia desse jeitinho mesmo. Tinha precisões enormes. Pai de quatro. Ganho pouco como empacotador de supermercado. Um pensamento na cabeça, naquela véspera de Natal.
Fazia parte de uma turma de novatos. Atuava na frente dos caixas dividindo o espaço com os boys (como se usava chamar os empacotadores dantes). Não tinha nem dois meses no emprego quando chegou o Natal.
Sabia que Seu Sandoval e outros que estavam chegando, faziam parte de um processo de substituição. Até aqueles dias, os empacotadores eram todos menores. Eu tinha meus doze, treze anos, por aí. Tínhamos carteira assinada, plaquinha de identificação no peito, batíamos cartão e usávamos a bata (vira e veste) azul da empresa. Com as pressões contra o trabalho infantil, aquele era nosso último Natal embalando as compras dos barões, faturando uma gorjeta, merendando pão com fiambre no estacionamento.
Seu Sandoval já contava uma certa idade. Percebia que fazia o mesmo esforço sobre humano que eu para acomodar os paneiros de compras nos carrinhos de entrega. Não corria da missão. Tufava a veia do pescoço, conseguia e com pouco mais voltava contando os trocados da gorjeta.
Naquela noite do dia 24, antes de fechar o supermercado, Seu Sandoval contou o apurado. Pegou uma cestinha e caminhou entre as gôndolas coletando o di cumê para a ceia. Eu fui atrás dele. Incentivei para que levasse também uns brinquedos para as crianças. Ele recontou o apurado. Não dava. Amofinou. Fui até a seção de brinquedos, com minha graninha das gorjetas e quedei-me ao altruísmo. Comprei presentes para mim (porque eu era criança e criança quer mesmo é de brinquedo) e mais quatro brinquedinhos para os filhos do meu colega de trabalho.
Lembro das lágrimas rolando dos olhos do Seu Sandoval, quando o relógio já beirava a meia-noite e a gente caminhava pela Almirante, na esperança de ainda pegar o cristo para a Pedreira. 

domingo, 15 de dezembro de 2019

                              cordilheira

crônica da semana- tua graça


Qual a tua graça?
Arrumava a quadra de vôlei bem confronte a minha sala. Eu me desconcentrava todo quando ela rodava e chegava na saída de rede.Vibrava nos relances que aquela visão mínima me proporcionava. Preparando o salto, ajustando a passada, elevando-se para a cortada. Não via o desfecho da jogada, mas se ela não saía do meu estreito campo de visão, era sucesso na certa. Um olho na aula da professora de Ciências, e o outro, mirando a fresta que capturava os lances do jogo de vôlei, na aula das meninas.
Era bem maior e mais robusta que a grande maioria de nós. Levava certa vantagem quando estava na rede. A imponência se realizava na harmonia perfeita entre o short vermelho e a camiseta com o emblema do Estado, que compunham o uniforme de Educação Física. Eu dava no ombro dela.
Certa vez, eu estava zanzando pelos corredores, sem aula porque o professor estava doente. Enquanto não batia a campa do próximo horário, fui apreciar o jogo das meninas. Ela estava lá.
Estudava à tarde. Era da oitava B. Tinha Educação Física às terças e Quintas, mas como esbanjava estilo e liderança, foi recrutada para auxiliar nos outros dias da semana. Antes das nove, armava a rede. Nessa aula vaga, nos topamos. Após umas das jogadas bem sucedidas, ela caminhou para fora da área demarcada com um fio, que definia a quadra de jogo, e me pediu água. Peguei meu caneco da merenda que tinha um azul já descolorindo, fui até a cantina e voltei devagarinho, me equilibrando para não derramar uma gota. Na pedida de tempo, ofereci-lhe a água. Ela bebeu em goles longos e atropelados pela pressa. Ao terminar, devolveu-me o caneco, agradeceu e perguntou qual era a minha graça. Sorri um riso nervoso, titubeei. Não respondi. Não sabia o que queria dizer aquilo. Qual era a minha graça? Que graça? A campa bateu, desviei o olhar para o corredor, buscando a minha sala e saí com mais de mil tentando formular uma resposta para aquela pergunta que um copo de água ensejou. Qual era a minha graça?
O professor sarou e só fui ter um tempo vago naquele horário, apenas lá pelo final do ano. E nem era tão livre assim. Estava no pendura. Em algumas matérias, precisava de oito, para passar. Qualquer tempinho era usado para rever o ponto da aula anterior, fazer cópias, responder questionários. Um lugarzinho na biblioteca para estudos extras, era disputado. Eu tinha que estar sempre na biqueira. Sempre na vez. Já havia repetido a sexta, se fico de segunda época de novo, mamãe ia ralhar de não parar mais. Postava-me, ainda, na bicora daqueles meninos que sabiam mais, das meninas que tinham um caderno completinho com a matéria. O tempo deles era o meu tempo. Ficava só na fresta, esperando o time dela recuperar a vantagem e fazer o rodízio.
Na minha sala tinha uma menina que se chamava Enedina. Considerava este nome por demais diferente. A curiosidade pelo nome nos aproximou, partilhávamos preocupações com as matérias e com outras coisas da vida. Era amiga da garota do vôlei. Fez o meio campo. Conseguiu um encontro depois da minha aula de Educação Física, de tarde. Naquele dia descobri que era um moleque que vivia das brincadeiras de rua, dava meu reino por um jogo de bola e não sabia nem beijar. Ela relevou. Me deu uma chance. Nos encontraríamos na tertúlia do Bosque, no próximo domingo.
Eu falei que ia pedir pra mamãe. Ela disse “tá, vou esperar”. E completou: “ah, minha graça é Irene”.

sábado, 7 de dezembro de 2019

crônica da semana - éramos seis


Maria José (Avenida Angélica)
O sobrenome é Dupré. Mas reduzo o nome, desde quando li “Éramos Seis”, na publicação da editora Ática de 1975. Tenho receio de cometer uma gafe. Não sei ao certo a pronúncia para “Dupré”. Vai que é francês.
Importa, no entanto, expressar o quanto este Romance me bate, revira e mexe.
Em tudo em quanto. No alinhavo histórico (corta algumas fases da trajetória da sociedade brasileira), na exposição de cenários urbanos lá dos primórdios da expansão das cidades. Na fala e na postura das pessoas. No figurino, nas linhas de bonde e no desenho dos poucos automóveis.
Toda a ambientação do Romance é dinâmica: obedece a passagem do tempo. É efervescente: notifica movimentos das organizações sociais, como as ações feministas e as manifestações anarquistas.
E a narrativa me cativa mais ainda quando focaliza lá dentro da família de Júlio e Lola.
Esta semana, fui às lágrimas com a morte de Júlio.
Tinha uma atenção especial com o personagem. A mim ele me vem como retrato de tantos pais que conheci. Aquele pai tradicional que bota o cumê em casa, exige respeito e silêncio na hora das refeições, tem sonhos de montar um negociozinho, casa própria. Aquele pai que vi em algumas dimensões, lá pelos idos de 1970. Que era severo e sisudo no trato com a família, mas um pândego desregrado, nos ‘serões’ que fazia à beira da piscina da Palhoça, aquele refúgio pra lá de avançadinho, que reinava em seduções, e que ficava lá pras bandas da Tavares Bastos. Aquele pai que, embora de maneiras e costumes humildes, se esforçava para estar sempre alinhado em boas peças de linho, de tergal e um lenço perfumado no bolso da camisa. Um pai que entendo. Não julgo nem discrimino. Um homem no seu tempo. Que tinha muitos filhos, fazia o tipo sério de seu fulano pra cá, seu fulano pra lá; cuidava para que nada faltasse à família, mesmo trabalhando em ofícios de pouca renda. Um pai distante dos filhos em idéias, diálogos e afetos. Amigo respeitoso da esposa. E que esperava dias melhores que nunca vinham. Porque morria antes de úlcera.
Meu pai morreu também com um dodói no estômago.
Outras adaptações foram exibidas na TV. Não tomei conhecimento dessas edições. Falta de oportunidade. Desta vez, calhou de passar exatamente no horário em que atravesso a baía. Vejo as cenas na tela. Não dá pra ouvir por causa dos barulhos ambientes. Mas reflito sobre estes sonhos cultivados, o planejamento do futuro, a casa, o comerciozinho, a escola dos filhos. Horizontes acalentados que desaparecem de repente, como foi no caso de Júlio e de tantos outros papais que conheci.
A vida e o Romance seguem, agora com Lola tomando pé. Assumindo a família. E de novo, um contexto refletindo as inúmeras famílias que conheço. Comandadas por mulheres.
Meu pai morreu alagado pela hemoptise e mamãe, sozinha, sem eira nem beira, nos criou vivendo da marretagem. Vendia até as amostras grátis dos perfumes, se isso, ao freguês, lhe aprouvesse. Como na família fatiada pela perda do pai, em “Éramos Seis”, na minha, também havia a tia rica, incertezas e o milagre da vida se realizando a cada nascer do sol.
Pesquisei. Diz-se como se escreve. “Dupré”. Oxítona e com o /e/ aberto. Uma escritora premiada, de texto apurado, um tanto esquecida (que bom que a novela a trouxe de volta) que emociona e me fez, na primeira visita a São Paulo, fazer de um tudo para conhecer a Avenida Angélica.

domingo, 1 de dezembro de 2019

Cr^nica da semana- a grande perca


A grande perca (vai um cafèzinho aí?)
Nos meus tempos de estudante, participei de um projeto em Barcarena chamado “Revisão Solidária”. A idéia era juntar estudantes universitários em jornadas de apoio aos alunos da rede pública que se preparavam para o vestibular. Cada um doava um pouco de si ao projeto. Com as bases do meu curso de Geologia, podia contribuir em Matemática, Geografia, um pouquinho de Ecologia... Mas, como na época já tinha a coluna no jornal, a coordenação sempre me escalava para os horários de Literatura e Língua Portuguesa. Tenho plena certeza que era deslocado, também, porque tínhamos uma galera feríssima nas outras áreas do conhecimento, e, penso que antes bem mais que hoje, ansiosa por partilhar saberes.
Fazia das minhas. Costumava valorizar a leitura. Levava textos para as aulas, líamos em voz alta. Interpretávamos. Deixava como dever de casa, uma redação. E porque sou gramatiqueiro, muitas vezes tratava das formalidades da Língua. Mostrava o jeito de usar as ferramentas da gramática, para construir meus textos. Inventei o sacolão. Fazia menção, descia das costas o sacolão pesado e revelava que ali, estavam os elementos que organizariam minha escrita. E de lá eu tirava os tijolos etimológicos, sintáticos, as análises, as constituições frasais simples, os apoios semânticos.
Citava os gregos como fabricantes daquele sacolão. Como intuíram um grupo de palavras para dar nomes às coisas. Os substantivos. E depois de as coisas nomeadas e identificadas, para que não fossem, umas iguais às outras, criaram os adjetivos. E quantas eram? Para contá-las, os gregos criaram os numerais. Quando quiseram dar movimento, dar vida aos seres e às coisas, o gregos criaram os verbos. E as partes do discurso iam saindo do sacolão, compondo pensamentos, estabelecendo a compreensão.
Foi um período interessante. Muito produtivo. Já desconfiava, mas nesse tempo, me certifiquei da dificuldade enorme que os estudantes têm na leitura. Quando, no início das aulas, lemos pela primeira vez juntos, quase tive uma síncope. Por outro lado, quando fizemos a última leitura do ano, uma lágrima de felicidade brotou dos meus olhos. Tinha conquistado uma vitória.
E são as vitórias miúdas que me levam a relatar o caso do sacolão. Porque em outra ocasião, quando da minha primeira vez na Universidade, fazia o curso de Geografia e meu professor de Português era o Pedrinho. Já maduro, magrinho, delicado no falar e no andar. Gramatiqueiro. Marcou minha trajetória, me apresentando o acento grave nas sílabas subtônicas (que já havia caído no Acordo ortográfico de 1971). Avalie só hoje a gente parando esta prosa para tomar um cafèzinho. No entanto, o que ficou mesmo no cocuruto foi a aula sobre as formas nominais dos verbos.
Os verbos são palavras retiradas do sacolão que indicam ação, estado ou fenômeno da natureza (ah, os gregos!). Quando não estão inseridos neste cenário, não são verbos. Assumem o papel de outro elemento do sacolão.
Pirei o cabeção com aquela aula do Pedrinho. Arrumei vários macetes para entender melhor aquele tema. Um deles é procurar sempre conjugar a forma ‘verbal’. Por exemplo, articular o verbo ‘perder’ na base do eu, tu ele, nós, vós, eles.
São essas pequenas reflexões, e essas buscas no sacolão da memória, que me fazem crer que não seria grande perda de tempo, uma parada para o cafèzinho.