sábado, 29 de junho de 2013

Crônica da semana - comissão

Devolva a comissão


Não sei por que conto essa história se hoje comissão nem para ser presa há... 
Naquele início de noite, os estudantes apimentados (não, não como hoje, apimentados) entoavam palavras de ordem, ansiosos por terem seus companheiros de volta: “Devolva a comissão. Devolva a comissão. Devolva a comissão”. 
A memória já não está muito aquela, mas pelo que consigo reconstruir, foi assim: 
A partir do AI-5, editado em dezembro de 1968, o que ficou de muito evidente foi a desarticulação de movimentos sociais no Brasil. Ouviu-se durante muito tempo, pelas ruas do país, o inquietante barulho do silêncio. 
No final da década de 70 e início dos anos 80, uma brisa alentadora soprou pelos nossos céus azuis. A Abertura lenta e gradual se engendrava e uma ‘suspiro de alívio’, embora ofegante, entrecortado, se anunciava. Alguns sindicatos, entidades religiosas se reergueram (cheguei a participar da JOC ressuscitada), políticos, agitadores culturais, cientistas voltavam do exílio com o fogo aceso, prontos para se redescobrirem no Brasil. O movimento estudantil, foi no vácuo. 
Aí eu tenho que fazer umas continhas: entrei na Escola Técnica em 1979. Naquele ano, ainda era meio apatetado, dir-se-ia na época, alienado. Trançamos muita prosa ali na calçada daquela sorveteria que ficava no canto da Duque com a Estrela, até que a década de 80 nos pegasse, a mim e a minha turma de protocomunistas do curso de Mineração e a gente se aviasse na passagem da teoria da luta para a mobilização nas ruas.
Quando dei por mim, já estava me reunindo lá na Ceasa (uma relva abandonada nos domínios intramuros da Escola Técnica, ali pros lados da 25, agregada ao campo de futebol). Éramos uma seção do Gremps (Grupo de Reconstrução do Movimento Secundarista do Pará, acho que era isso que a sigla queria dizer). Mais tarde, a partir deste grupo, renasceria a Umes. Mesmo naquela atmosfera condescendente da ETFPA, tínhamos um certo receio e tomávamos alguns cuidados na nossa reunião. Razão para isso havia.  As bombas ainda explodiam pelas bancas de revistas, atentados da Direita ainda extirpavam mãos e sonhos. De fato, éramos clandestinos. 
As reuniões, os debates, as assembleias nas salas do Curso Hélio Dourado, aos sábados, resultaram no soerguimento do Movimento Estudantil (a UNE também, tava que tava a fim) e alinhavaram nossa bandeira de luta: a meia-passagem. 
A primeira grande manifestação (aí é que a memória falha, mas vá lá que seja, foi em 1981, e até que eu me desanuvie as ideias, vale esta data. Outubro de 1981) ocorreu em dois momentos. No primeiro, o pau cantou. A sede do governo era no palácio Lauro Sodré. O governador, um coronel do Exército; o chefe da cavalaria, um oficial de vastos bigodes. Muita cassetetada no lombo. Reagrupados, após o confronto em frente ao palácio, cinco mil estudantes marcharam para frente da casa do Governador (o atual Palácio da Residência), e no asfalto da antiga Independência, mais arenga com a polícia (rolou um barraco e um ônibus da linha Jurunas Conceição foi apedrejado). Muita gente presa, mas a luta continuou. 
Dias depois, novamente os estudantes forçavam a barra em frente ao palácio sob os gritos de “receba a comissão, receba a comissão...”. A comissão entrou levando as reivindicações dos estudantes para o governador e por lá se demorou. E demorou, e demorou. Prenderam a comissão. Agitação, cavalos irritados e palavras de ordem: “devolva a comissão, devolva a comissão...”. Quando a comissão foi posta em liberdade, uma longa luta (que se estenderia até 1991), pela meia-passagem, se iniciava. 

terça-feira, 25 de junho de 2013

crônica remix-princesinha

A princesinha (e o brigadeiro do João manoel)
Hoje, Amaranta Maria tá no berço. Faz doze anos, a minha princesinha. Tá mocinha. Graciosa que só ela. Vaidosa que só vendo. E, acompanhando a revolução da modernidade, geniosa que é uma coisa, a pequena.
Tem uma personalidade forte, minha filha. É ainda a minha bebê, mas é exuberante nas decisões. Chega a ser radical. Quase gente grande. Não vai na corda de ninguém. Formula seu mundo, com ética e pudor, mas sempre independente de adestramentos. Valoriza a construção de conceitos próprios. Não tá nem aí para a uniformização, para a padronização (aqui em casa, em quase tudo ela é do contra. Se ela pegar o controle remoto, então, já era. A gente procura outra coisa pra fazer, ou se prepara para o novo, para um programa fora da rotina, para as surpresas de Amaranta). Eu, como pai, procuro entender estes traços que desenham a alma de minha filha. E, exagerando na corujice, posso até deixar escapar aqui, que este perfil da menina me agrada e muito. Talvez seja porque ela apresente um comportamento que a minha geração ousou experimentar. Adorável Amaranta. Desafiadora. Insubmissa.
Vejo como uma virtude caríssima, a energia meio anárquica nos seus atos, pensamentos e palavras. Penso que isto seja uma sensível guinada no rumo da sinceridade. Será útil à minha menina em momentos decisivos da vida e também, em gentilezas sociais não fundamentais, como nas ocasiões em que, inevitavelmente, será impelida a dissertar sobre a origem do nome.
(E não é um nome muito comum. Fiz uma pesquisa no Orkut e encontrei 299 usuárias se identificando como Amaranta, coisinha pouca, comparada com perfis como o de Raimundo, por exemplo, que tem uns trocentos mil. Por aí, a gente tira).
Não é preciso dizer que, por ora, ela prefira desconversar e mudar o rumo dessa prosa. Sobre ‘Maria’, silencia, acho que apelando para óbvias deduções do inquiridor. Quanto ao nome ‘Amaranta’, fala qualquer coisa sobre o livro que o pai leu, quando ela nem sonhava em nascer, cita o autor e dá o assunto por encerrado (ela se agrada do nome, aprecia o fato dele ter surgido de uma obra famosa, mas tem me deixado pistas de que acha uma bobagem ter que, aqui e ali, prestar contas desta presunção intelectual que herdou do papaizinho aqui. Hum! Hum! E olha que faço gosto. Ensaio todo o script com as razões do nome dela. Conto causos de quando ela estava ainda na barriga da mãe e a gente escolhia os nomes. Qual o quê! Ela não se entusiasma. Opta pela austeridade e pelo comedimento. Não falei que a pequena não gosta de nada ensaiado? A menina sabiamente declina destes estrelismos forçados. Destas coisas inventadas por besteiragens do pai).
Minha princesinha tem este lado indomável, arredio, silente. Mas sei, conheço bem. Muitas vezes fala pelos olhos (tão extravagantemente belos que parecem ‘cristais de turmalina/ incrustados à face/ de fina porcelana’). E naqueles olhos negros, encontro coração, sentimentos fortes de amizade, de solidariedade. Orações, nobres intenções. (Nos últimos tempos, Amaranta Maria, todos os dias me convencia a arrumar 1 Real para que ela comprasse o brigadeiro do João Manoel. Era pra ajudar o coleguinha que estava doente. Falava sempre dele. Se preocupava. Nos trazia notícias. Amaranta torceu por ele. Rezou por ele. Chorou pelo amigo João).
Minha filha faz anos hoje. É uma mocinha geniosa. Mas uma amiga fiel, empenhada e lutadora. Sabedora de que a realidade não é tão doce quanto os doces confeitados de chocolate. Serenamente consciente (e convenientemente inconformada) de que, nem sempre a vida vence. Bença, filha.


segunda-feira, 24 de junho de 2013

crônica remix - feliz aniversário

Papai te ama
Hoje tem arraiá aqui em casa. Vamos comemorar o aniversário da minha filhinha. Mês de junho é um mês bem aquele para se trocar idade. Nem é preciso se preocupar em fazer festa com comes-e-bebes  poderosos. Tendo o seu mingau...
Minha filha Amaranta abrilhanta a quadra junina. É do dia 26.
No dia, nenhum santo a lhe sombrear. Brilha, insuperável, minha beibe, entre João, o arauto das Boas Novas e Pedro, o santo guardião.
E, olha lá, ela vai ficar piriricas da vida porque tô falando do aniversário dela aqui na coluna. Amaranta Maria não é chegada à badalação (ou pelo menos, faz menção que).
Na véspera do aniversário, antes de dormir, deu logo o papo: “olha, não quero ninguém me acordando amanhã cedo - cedo. Tinha que ser cedo! - para cantar parabéns. Vocês ouviram? Não quero ninguém me acordando cedo para cantar Parabéns”.
Foi a deixa.
De segunda para terça, trabalhei de noite. Fiz as vezes de operário até bem, na lida noturna, e o dia amanheceu na paz. Cheguei em casa ainda com aquele friozinho matinal a estimular a momó. Peguei o violão que, há muito repousa improdutivo, sob a guarda fria da parede da sala, e fui até o quarto entoando uma canção de felicidades para minha filha. “Parabéns...Parabéns...Muitas felicidades/ Muitos anos de vida...”
Era isso que ela queria. Ser acordada assim, em grande estilo.
Acompanharam-me na cantoria, a mãe e o irmão. E ela, nem seu souza. Fez charminho. Simulou um sono profundo. Deu de ombros. Puxou o lençol para vante. Escondeu o rosto. Deu um sorrisinho manhoso, ao final das contas, e só deu chances para a realidade da manhã, quando sussurrei no seu ouvido: “Feliz aniversário, filhinha. Papai te ama”.
Daí por diante. O dia foi só dela. E o bestão aqui, do pai, permitiu tudo. Ah, minha bebê estava no berço e podia fazer o que quisesse. Nem sei o que se sucedeu depois do Parabéns. Dormi logo a seguir, cansado que estava da jornada noturna. Sei, porém, que o domínio completo sobre o controle remoto e a prioridade em todo e qualquer jogo no computador, fizeram parte da paga por tê-la acordado tão cedo e com tamanho alarde.
A lembrança pelo dia 26 de junho de 1998, se consumou com minha filha comandando o dia, o que resultou, também, na minha entrega total às artes culinárias. Fui intimado a fazer o almoço. E foi um almoço nota dez que rolou lá pelas duas, depois de um sono reparador.
Decidimos in family que, na terça não havia ‘as condição’ de uma mesa para as amiguinhas (os pais estão no trampo; as meninas, em aulas, ainda) e transferimos o arraiá para hoje, sábado.
Melhor. Deu tempo para umas articulações. Orientei a pequena que ligasse para o padrinho. Azuruote do jeito que ele é, deve ter esquecido a data. “Liga, liga, e pede logo dez. Diz assim: ‘padrinho, me dá dez’. Ah, sim, diz que é teu aniversário e não esquece de tomar a bença”.
Sei que ele não vai ligar para a brincadeirinha. Tem bom humor e, além do mais, tive cuidado de escolher, para a pequena, padrinho rico, bem situado. Conceituado na sociedade paraense. E ele sabe, a gente fala assim, nestes termos que é pra ver se rola, pelo menos, uma Barbie.
É assim mesmo. O padrinho tem que fazer as vezes do pai, em certas e significantes circunstâncias. E é sempre bem vindo à mesa, de par com o emblemático mingau de milho.
Em festa que Amaranta Maria merece. Ela é a minha redenção. A minha alegria e a minha introspecção. Uma bebê, que está fazendo nove anos, mas tem me encantado com a sua personalidade forte, com o seu jeito professoral, e com tão afinada voz. Um beijo, minha filha. Papai te ama.

sábado, 22 de junho de 2013

A filha dos meus sonhos
Antes de sóis e luas, antes dos dias floridos, antes da harmonia de todas as músicas e dos doces sentidos. Antes de clarões de olhos arregalados, de sorrisos dengosos, de irreverências irrestritas, de apuradas percepções, do humor ferino e da cristalina voz, ela já existia.
Apareceu nos meus sonhos, como uma poderosa composição de nomes. Dois nomes inspirados num dos personagens mais fortes de García Márquez. Nessa época, tinha, já, os olhos graúdos (mas nem tão negros e nem tão franjados como os que hoje se mostram admiravelmente reais para mim).
Havia a vontade. Imaginávamos nossa filha. Passávamos horas com ela. Conversando, fazendo carinho, trocando sorrisos.
Ainda, no mundo maravilhoso dos sonhos, decidimos mudar o segundo nome. Continuou habitando a Macondo de infindáveis quimeras, mas agora, a solidez da matriarca Úrsula daria lugar a singela aliteração nos érres e ao coração dadivoso da mãe da Amazônia. Seria Maria. Amaranta Maria.
(Alinhavávamos o futuro no início dos anos 90. Eu queria ser pai e minha companheira Edna, ser mãe. Queríamos uma menina por vários motivos. O mais forte deles é que nas nossas vidas, na vida de pessoas próximas e queridas, tínhamos sempre e decisivamente presente a figura da mulher. A nossa menina já tinha padrinho, próximo e querido, certo e motivações consistentes para a escolha.
Eis então que, como os destinos caprichosamente traçados pelo escritor colombiano, ela adiou sua vinda. O menino Argel veio primeiro, como se nos adiantasse a realeza, como se abrisse cortesmente, o caminho para a princesinha de tez doirada).
Em 26 de junho de 1998, chegou aos meus braços no calor da luta. Estava eu, num processo delicadíssimo de fundação de sindicato. Quando nasceu, minha lida não estava fácil. Havia perdido minha mãe Luzia, a grande mulher da minha vida, há um mês. Vivia dias cáusticos, amargos, de uma ferocidade premente. Para onde eu me virava era uma guerra a vencer, um gigante a derrubar. Todo dia, chorava um pouquinho, e depois tinha que dar conta de uma fera ou reagir a um repente gélido e distante. Por isso não a vi chegar à luz. Fui tê-la em meus braços somente no segundo dia, me sentindo culpado, quase arrependido de não estar lá na hora do nascimento, mas seguro de que havia, pela minha menina, feito o certo (e rogo aqui, que por esta ausência minha filha me perdoe).
Tenho a absoluta certeza de que Amaranta Maria veio preencher aquela lacuna que havia dentro de mim. Veio, com a sua inspiração feminina, ajudar a cicatrizar a ferida aberta em meu coração (com a partida de Luzia, eu me sentia muito só, esvaído, vazio daquela força de mulher). Amaranta era aquela esperada; a antes de tudo, anunciada. Mas, caprichosa, também era aquela que burlara a ordem, que obsequiosa, dera lugar ao varão, ao primogênito, como se dignos fôssemos nós homens, da primazia pela vida. E resolveu nascer depois. Chegou, pois, na hora certa. Parece que de lá, de antes das auroras e dos arrebóis; de lá, da eternidade dos sonhos, ditosa, antevia os fatos e as ânsias.
Amaranta veio enxugar-me as lágrimas e mais: pôs-se à minha frente a me anunciar uma nova vida. Um ânimo vítreo, luzidio. Com ela reinvento a alegria cotidiana. Reitero singulares admirações. Certifico-me de valores femininos que me enriquecem e me enlevam. Traz uma personalidade que me dá segurança. É objetiva, curiosa, desbravadora. Espetacular. Tem valores que me amparam e me sustentam na crença de dias melhores. Vai fazer quinze anos, na quarta-feira, mas vive desde antes de sóis e luas, nos meus dias, como a filha que eu sonhava ter.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

crônica da semana- caveirinha

O Caveirinha vai te pegar

Se ele aparecesse na tua taberna e alguma coisa pedisse, melhor era dar logo. Se não desse, ele vinha de noite e te roubava. E nada, absolutamente nada o impedia. Assim rezava a lenda do Caveirinha. 
Era um personagem famoso, na Pedreira, o Caveirinha, no início dos anos 70. Minha mãe contava das façanhas dele. Fazia medo pra gente, acreaninhos recém-chegados. Dizia que ele era encantado e que entrava na nossa casa até pelo buraco da fechadura. 
Foi meu medo, logo que chegamos a Belém. Era badalado na barra. Mas não cheguei a vê-lo nessa fase. Foi o período de maior efervescência na sua carreira de amigo do alheio. Andava nas bocas. Era Caveirinha pra cá, Caveirinha pra lá. E porque torna, Caveirinha; e porque deixa, Caveirinha. Era glamourizado, invisível e invencível. 
Não tinha paradeiro. Zanzava pelo subúrbio diuturnamente subtraindo coisas, diminuindo confianças, desprezando poderes e arrogâncias. Não tinha bom para ele. Deslizava pelos telhados e pelas mentes como uma divindade do revés, como um duende do prejuízo, como o algoz das irrefreáveis sujeições 
Contra uma investida do Caveirinha, não havia defesa. Em tantos anos de alarde, não tive, porém, conhecimento de uma ação dele violenta ou covarde. Era o bandido do fair play. 
O mistério, sim, havia. A delicadeza do afano, a elegância na realização de sumiços, os segredos que envolviam seu imperscrutável caminhar, isto sim, causava um certo fascínio, uma curiosidade patológica, uma paixão raivosa. 
Era um malandro respeitado. Conta-se até que, quando a polícia o prendia, era mais objeto de admiração que de repreendas. É bem verdade que uma unhinha aqui, outra ali, lhe era sacada, com todas as honras e reverências que o status de bom ladrão lhe facultava, porque naqueles anos de chumbo, a vida não era fácil pra ninguém, mas nada com desdobramentos tão aviltantes que lhe diminuísse a fama. Normalmente se lhe restabeleciam as garras, ali mesmo sob a tutela do Estado, e ele ao sair da cadeia, saía inteiraço. 
Quando o vi frente-a-frente, pela primeira vez, eu ainda era molecote. Trabalhava aviando pão e meio, frações da barra de sabão Regência, medidas bem medidas do óleo Jaçanã, unidades de bonecas de anil e cigarros Continental a retalho. Trabalhava numa taberna, na Marquês. Eis que apareceu ali, ao pé do balcão. Pressenti a visagem, a assombração, aquele que se esgueirava pelos espaços e tempos e nos levava as posses sem um ai sequer da vítima. Pediu um traçado, mas não me deu dinheiro algum. Olhei para o meu patrão, ele fez um sinal positivo com a cabeça e pus uma lapada caprichada de cachaça com um vinho travoso pr’ele. Bebeu com altivez, sem fazer careta. Desceu o copo ao balcão, fez um sinal de positivo para o dono da taberna, como se estivesse avalizando um salvo conduto que nos livraria da sua malícia, deu às costas e saiu com um andar balanceado. 
Anos depois, já o vi decadente. Bêbado, pelos estirões da Marquês. Ninguém mais o temia ou o respeitava. Tava só a casqueta. A molecada caçoava dele. Ele sempre com a camisa de botão aberta, deixando aparecer o relevo perfeitamente simétrico das costelas e uma tatuagem esverdeada. Estava nos estertores. Certa vez, ele apareceu varando, pelo meio da rua. Ia contra um vento forte que se deslocava ávido lá das bandas do igarapé do Zé. A camisa aberta ajudou na aerodinâmica, ele levantou vôo e se estatelou adiante, na piçarra. Minha patota foi ao encontro dele gritando vilipêndios para um corpo morto. Mas ele, embora, não parecesse, ainda estava vivo. Era uma lenda. Invencível. Levantou e correu atrás da gente. 

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Açaizal


Num frêmito
Ao alvorecer das
Águas do mar
A lua se foi

E lá no céu
Falando por seu brilho
A lua, antes Terra,
É Terra a se apartar de nós

Filho da explosão
Sol
Estrela criança
Lume infindável
Que um dia morre

Sol, gigante incandescente
Que anima a molécula primordial
Que um dia morre

Num equilíbrio entre força
E não força
O vácuo distante
Azul, aos nossos olhos
Permeado de esperanças e dúvidas

O imensurável
A serenar os seres de Gaia
A adensar
O vento brejeiro
Que varre o chão

Do açaizal aqui do meu lado.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

crônica remix= pé de cachimbo

Domingo pé-de-cachimbo
A cena acontece em tantos lares: ele chega de qualquer canto. Cansado, chateado com os descaminhos da vida. Preocupado com o pão do dia seguinte, com o trabalho e com o estresse da lida de operário. Com a fumaceira que imperou no último verão e com as novidades que (literalmente) aquecem as discussões sobre as mudanças climáticas. Com as peraltices dos meninos maluquinhos do planalto central do Brasil...Ele chega querendo um sossego já que a turbulência social no Paquistão o está tirando do sério. E os reféns das Farc, quando vão ser libertados?
Ele chega tomado por uma ira santa. Afogado nas desilusões e chateações provocadas pelo seu querido bicola que, ora ora, um dia vai tomar jeito. Ele chega, de qualquer canto, das esquinas da razão, atormentado. Com o humor meio lá, meio cá. E como se não bastasse a certeza sobre um futuro incerto, tem que se aviar com o desconforto daquele calo abjeto e aguado a avacalhar o bordado cheio de estilo da meia de passeio. Oh, Deus, quanta provação!
Anuviado, desaba sobre o sofá. Tenta relaxar. Um fiu fiu desafinado é o sinal para que o totó lhe traga os chinelos (cachorrinho esperto!). De passagem,   o filho do meio dá um clique no aparelho de TV, atendendo-lhe o pedido repleto de ansiedade...E nada. A não ser um minúsculo e embaciado ponto branco no centro da tela. A não ser o silêncio sepulcral, a não ser a nociva indiferença eletro-eletrônica.
Aquela tarde de domingo, letárgica, sonolenta e preguiçosa é, então, sacudida por um grito assustador, seguido de um gemido doloroso e, por fim, por um palavrão indignado, daquele tamanho.
Todos acorrem ao homem, já à beira da síncope. Um fio de voz denuncia a causa de tamanho sofrimento: a TV. A televisãolzinha...A única coisa que o distraía, que o divertia. O passatempo precioso. ‘mai préssscios, mai préssscios’! Quebrou...esbandalhou. Não acende nada. Não diz um ai.
Os olhos atônitos voltam-se para o aparelho e entreolham-se em dúvida. A quem socorrer neste momento? O homem ou a televisão? Decidem pelo homem, mas a TV precisa de cuidados e o filho mais velho corre até o aparelho para ver o que aconteceu.

Água com açúcar, álcool nos pulsos e nas frontes, uns abanos, um sopro solidário tangenciando a testa e palavras de conforto tentam reanimar o homem. A avó procura um consolo relembrando a velha Colorado RQ, a TV do rei Pelé, e diz que isso é passageiro, que depois de as válvulas esquentarem, tudo volta ao normal, e dá umas batidas enérgicas com o pé no chão da sala, pra ver ‘se a bicha pega’. Alguém sugere: “desliga e liga de novo. Às vezes, é só um mau contato”. Outro aponta que umas pancadinhas assim, devagarinho, no lado às vezes dá certo. Uma esperança. Ele arregala os olhos, tentando animar-se. Mas a coisa não anda. De lá do canto nobre da casa, o mais velho, que examinava a TV, dispara apocalíptico: “Axiiiiii, acho que foi o fleibeque”.
Um golpe duro. Certeiro. Irresistível.
O homem estrebucha. Uma baba verde espumosa desliza pelo canto da boca. O céu escurece. Trovões ressoam pelos quatro cantos. Clarões perigosos faíscam no horizonte. Tudo é muito confuso, ali, no espaço sagrado do sofá da sala. Nos estertores, nos últimos momentos de lucidez, ele clama: “Minha TV...Minha televisãozinha...”, e perde as forças.
O suor vem frio e abundante e o homem desmaia.

Alguém corre e liga pra assistência técnica.

sábado, 8 de junho de 2013

Longe-perto

Ter amigo é nunca sentir-se só. 

Houve um tempo na vida em que eu buscava definições para as relações pautadas na amizade. Não cravei dizeres melhores que este. Para mim, um amigo é o inverso absoluto da solidão. 

Certa vez, estava acompanhando a abertura de uma trincheira na margem direita do Xingu. Trincheira é um rasgo que a gente faz na rocha para melhor verificar as suas características. O caso exigia o uso de explosivos, equipamentos... Um geólogo famoso iria estudar aquela exposição, um craque da Geotecnia. Todo o nosso pessoal mobilizado para assistir à apresentação dele. 
Trincheira aberta, lá m’estava eu, numa tarde nublada preparando detalhes para a vinda do doutor. Aí choveu. Parte da minha equipe abrigou-se num barraco coberto com lona. Eu, que mais afastado estava, acudi-me a uma fresta de um bloco robusto de Migmatito. E foi entre faixas paleossômicas e neossômicas, sob uma aguinha neblinada de chuva de verão, que ouvi numa fita que pus no walkman, uma canção antiga. Deu-se então que uma sensação inequívoca de carinho me tomou por inteiro. 
Estava ali, enterrado numa loca de pedra, apartado da civilização, da família, das facilidades urbanas. Fincado à fenda de um bloco rochoso, me aninhando friento, ganhando o meu de cumê num ermo inóspito, umedecido pela chuva da tarde; Na margem direita do Xingu, estava eu, no batalho, me assombrando com o grito lá ao longe, do macaco guariba e aceitando, resignado, aquela perturbação do silêncio que o triscado das gotas de chuva fazia na casquinha limosa da pedra. Minha equipe bem afastada. Percebi que aproveitaram a folguinha dada pela chuva, estenderam um pano na areia e se entregaram ao carteado. E eu ali, me batendo com uma saudade boa. 
A música que tocava no meu radinho era um brega popular. Nem era um clássico sentimental ou uma pérola da emoção. Orbitava entre o usual e o casual. Sucesso nos escaninhos da Pedreira no início dos anos 80. Uma harmonia corriqueira que trazia o sorriso, a expressão faceira do meu melhor amigo pra perto de mim: é que houve um tempo em que trabalhávamos na feira e ouvíamos esta canção na rádio cipó. Como o som nos chegava um tanto atrapalhado, nos guiávamos pela melodia e criávamos outra letra para a canção. Inventávamos estrofes, engendrávamos um refrão absurdo, tecíamos clímax e prazeres sonoros. Nos divertíamos a valer com aquela presepada. 
Hoje, mais de trinta anos adiante, quando nos topamos com esta canção, pelas quebradas, cantamos, despudoradamente, a nossa versão. Ela resiste aos anos assim como a nossa amizade. 
Um momento que não me sai da cabeça aquele dia que fiquei socado na brecha de um migmatito esperando a chuva passar. De curioso há o fato d’aquela situação, não inspirar, de jeito e maneira, comoção ou emoção (fenda, explosivos, trincheira, a espera por um doutor que vinha de longe). Mas olha só, encontro aí o traço revelador das minhas convicções sobre amizade. Era um momento tenso, de um abandono dissimulado, mas abandono. Um pé para que a solidão pegasse carona no vento e me cortasse o peito. Naquele momento valeu-me a certeza cravada: quem tem um amigo, jamais se sente só. 
Meu amigo estava ali. O percebi dividindo a fresta comigo, inventando versos pelo silêncio dos olhos. Porque para estar junto não é preciso o testemunho físico, basta que as ondas de afeto vaguem pelos éteres e nos atinjam o coração. Terça próxima vindoura, meu amigo faz 50 anos. Destes, 34 anos ao meu lado (ou longe-perto) em sorrisos e canções, a me proporcionar bem-vidas sensações, a me mostrar que ele é escritinho, sem tirar um isso, ou pôr um aquilo; ele é o dito e inabalável, inverso da solidão. 

quarta-feira, 5 de junho de 2013

crônica remix - hiato

Amaranta Maria não sabe o que é hiato

Noite dessas, enquanto eu descarregava uma pissica da velha chica contra um participante do BBB, a minha filha, Amaranta Maria, que adormecera na redinha atada na penumbra do quarto, desandou a falar.
Falou dizeres incompreensíveis, desses que a gente fala dormindo mesmo, mas também, articulou perfeitamente frases pertinentes aos movimentos do seu dia: ralhou com o irmão, brincou com o gatinho, disse que ama o papaizinho, mandou fechar o portão...
Mas uma coisa, em meio ao fraseado, me tirou a atenção do sofrimento a que são submetidos os emparedados e me ligou a prosa inconsciente da minha menina. Ela disse: “eu não sei o que é hiato”.
É certo que faltaram só catorze anos para eu me formar de psicólogo, e que o livro que eu tinha sobre a interpretação dos sonhos, do Eduardo Mascarenhas, eu dei de presente para minha comadre Eliza Sena. Mas pelo que a gente ouve por aí, quando a gente fala dormindo, a gente revela os nossos conflitos reprimidos ou exageradamente vividos durante o dia (é por isso, por exemplo, que algumas pessoas, enquanto dormem, gritam ‘goooollll!’. Às vezes, porque foi e outras -olha lá a frustração- exatamente porque não foi gol).
No discurso noturno, as inquietações, as preocupações afloram. Segredos são revelados, indiscrições são cometidas, pecados são assumidos (cuidado, muito cuidado com a auto-trairagem do sono)...
Pelo sono turbulento de minha beibe, soube que ela estava tendo dificuldade no aprendizado da parte da Fonologia que trata dos encontros vocálicos.
No outro dia, já com a menina pronta para ir para a escola (é bem verdade que estimulada por sonoridades do tipo ‘vumboooora, Amaraaaanta! Já são sete hoooooras! Tu vais chegar atrasada, menina!), fui atrás. E ela confirmou . Disse que estava se havendo em Português por causa deste tal de hiato.
Ai, ai, ai, agora pegou, pensei ressentido. Minha filha não sabe o que é hiato.
Nem eu.
Na verdade, sei um pouco. Aquele tantinho na biqueira pra varar uma prova de Português com um cinquinho.
O hiato acontece quando uma semivogal, ‘i’ ou ‘u’, forma sílaba sozinha, ou seja, vira uma vogal. Como em sa-ú-de.
Ocorre também quando se separam as vogais idênticas como em Sa-a-ra. Confesso que esta parte eu não sabia. Para mim, hiato tinha a ver somente com os ís e us. Tendo o seu ‘i’ e o seu ‘u’, pra mim já era um hiato batido, jurado e sacramentado. E pronto. Mas que nada, a minha pesquisa aqui na Gramática do Ernani Terra já me vem com este negócio de ‘a’ dobrado, ‘o’ dobrado e complicaçõezinhas outras:
O termo ‘hiato’ assume, também, alguns valores conotativos. Um que me vem assim, de repente é o da temporalidade, na verdade, indica um intervalo de tempo. Diz-se, então “ele voltou à cidade, depois de um hiato de dez anos”. Tem, pois, um sentido de lacuna, de vaga, que cabe também nas construções de caráter espacial como: “só farei a pesquisa após um hiato de dez casas”.
Tá vendo, tem razão, a minha neguinha em preocupar-se. Se não cuidar, a gente corre o risco de compreender hiato como um termo que expressa breves interrupções, no lugar de dizer que é um encontro vocálico e aquela história toda de is, os, as e us.

Compreendo o sono aperreado de minha pequena, mas não hio nem chio para amenizar o seu drama. Faço o meu papel de pai: ensino as coisinhas que sei e indico uma boa Gramática. Previno, porém, minha filhinha, que desde agora, na quarta série, e ainda por um bom tempo, ela vai se pegar com as conspirações (ou inspirações, quem sabe?) da língua.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Crônica remix - asterix

Esses franceses...
“Estamos no ano 50 antes de Cristo. Toda a Gália foi ocupada pelos romanos...Toda? Não! Uma aldeia povoada por irredutíveis gauleses ainda resiste ao invasor...”.
Assim, com esta explicação, começam as aventuras de Asterix, o gaulês. O herói, criado há 50 anos pelo roteirista René Goscinny e pelo desenhista Albert Urdezo, vive numa pequena aldeia à beira- mar, encurralada pelas guarnições do exército romano. Ajudado por companheiros pra lá de especiais e por uma poção mágica que lhes garante um poder sobrenatural, Asterix e seus camaradas não se rendem e aprontam poucas e boas aos legionários de César.
(Meu primeiro contato com as revistas do Asterix foi em Rondônia. À época, a publicação contava com 27 edições. Todo mês eu pegava uma graninha e comprava um exemplar. Quando vim de férias para Belém, cheguei todo metidão, com minha coleção completinha: dias antes havia conseguido na Livraria da Rose, em Porto Velho, o mais recente lançamento, “O Filho de Asterix”.
Hoje em dia, conhecemos as aventuras de Asterix por causa de algumas estrelas como o ator Gérard Depardieu, que vive o intrépido Obelix nas versões para o cinema, e também por algumas produções em desenho animado. Mas o bom mesmo, para mim, são as edições impressas. Há uma certa magia na criação. O traço desenvolto de Urdezo e o texto bem-humorado de Goscinny são impecáveis, fascinantes. Há também, o fato de as edições serem únicas, especiais e historicamente bem argumentadas. Estes pormenores nas publicações se refletem, é claro, diretamente no preço. Um exemplar composto de aproximadamente 50 páginas, hoje, é bem carinho para os padrões de consumo de um operário que vara os dias e as noites pensando num jeito de trocar a geladeira que já está naquela fase de ter a porta amparada por um eficaz e multiético tijolinho.
Mas, naquele distante ano de 1984, eu desembarcava em Belém, de férias com a bagagem cheia de Asterix. Vinte e sete exemplares reluzentes, sem vincos. Só que não falei nada daqueles pormenores pra mamãe. Arrumei as revistas em uma caixa junto com alguns jornais e fui matar a saudade da minha Belém querida.
E eis que numa dessas minhas escapadas, passou lá por casa, um comprador de jornal velho. Daqueles que antigamente iam de casa em casa comprando papel. O golpe foi fatal. Mamãe pegou minha caixa e despachou a minha coleçãozinha de Asterix’zinho por uma merreca. Hoje seria coisa de um Real o quilo. Dá pra imaginar, né...Se existiu um zinho completamente desnorteado por aqueles dias, este um fui eu).
A Gália era uma região que hoje, corresponde à boa parte da França. Asterix, de certa forma, representa a natureza heróica do povo francês. O guerreiro resgata a altivez do líder Vercingentorix, cujo ato de depor as armas diante de César, mais o engrandeceu do que o deprimiu.
A teimosia de Asterix reverbera entre os franceses. Ecoa pelos escaninhos de Nanterre, lembrando maio de 68 e as palavras de ordem de Dany le rouge. Exibe-se nos lábios revoltosos de Brigitte Bardot e de Isabelle Adjani; no olhar arrebatador de Alain Delon e no sorriso indecifrável de Juliette Binoche. Traduz-se numa França cheia de inquietações e se reproduz em Zidanes argelinos.
Subversão que se desenha nos modelos de Chanel e Yves Saint Laurent. Desvela-se em Piaf, em Carla Bruni. Impõe-se na defesa intransigente da língua mater de Jeanne d'Arc. E que se denuncia ante a genial sonoridade de Ravel.
Asterix é um pouco da Revolucionária vontade (irrigada pela fluente coragem de Danton) que resistiu por entre os escondidos de Paris e que destronou os invasores nazistas.
Como diria o Obelix: “Esses franceses são...demais!”.

(Vou conseguir um dinheirinho e na Feira do Livro deste ano, vou começar outra coleção dos adoráveis gauleses).

sábado, 1 de junho de 2013

crônica da semana - TV

Deu na TV
Dia desses ao sair pro trabalho, antes das seis da manhã, parei um instante em frente de casa, esperando o dia clarear um pouquinho mais e me deparei com uma cena, no mínimo, curiosa: um pequeno vinha caminhando ali das bandas da Pedro Miranda carregando uma TV. Uma televisãozinha, de tubo ainda, dessas que mais não há no comércio varejista para venda. Jovem. Um boné surrado, camisa escura de botão assim meio troncha, bermuda frouxa descaída dos quadris. Veio no meu rumo. Passou por mim com a maior tranquilidade, continuou no seu vagar desacelerado, no sentido da Marquês e sumiu no horizonte limitado pelas árvores do passeio público.
Fiquei matutando aquela parada. A primeira conclusão que me bateu, é que era um ladrão desengonçado transportando o apurado da madrugada. Pode ser, pode ser, afinal, quem, ainda sob o claro-escuro do amanhecer, sai por aí com uma televisão nos braços? O que faria uma pessoa abraçar-se a um aparelho, já quase obsoleto, e desvairar pela beirada do canal sob o latido nervoso de cães de guarda e a espreita de operários em tempo de sair pro trabalho? Depois do caso passado, ainda reino na apuração: só pode ser ladrão, aquele pequeno, e pela qualidade do produto roubado, um roubador da pior espécie, daqueles que rouba pobre bem pobrinho.
Embora eu traga comigo quase que noventa por cento de certeza de que aquilo era um surrupio abjeto, ainda tenho uma ponta de dúvida, porque a mim, causou estranheza a serenidade daquele caminhar. Um desenvolver-se quase impassível, destemido; um passeio cadente ao amanhecer ante o chilrear dos primeiros pássaros e o bucolismo circunstante do canal da Pirajá. Penso que para situações limites como as de roubo, o camarada estaria um pouco mais acelerado, olhando para os lados, atentos aos latidos, aos movimentos, ao morador que faz ranger o portão na hora de sair de casa, aos carros eventuais que passavam na avenida. Pra mim, ladrão que é ladrão, rouba e corre. A ausência de aperreio, daquela carreira famosa de ladrão, ocasião em que ele sempre perde uma banda da chinela, me deixou no vácuo de uma conclusão segura; de uma definição para o caso, sem dolo, sem preconceito, sem deslizes, sem condenações compulsórias.
E tô aqui me batendo até hoje com aquela cena. O que fazia aquele pequeno, antes das seis da manhã, com aquela televisão no colo, em plena margem do canal da Pirajá? O que será, meu pai?
O que torna e o que deixa neste papo é que todo mundo me ralhou dizendo que eu deveria ter chamado a polícia e coisa e loisa porque na certa era um ladrão. Eu, heim, poderia estar cometendo uma injustiça. E se o pequeno estivesse levando a TV para um parente internado num hospital que não conta com este mimo? Podia até ser ladrão, mas era um ladrão do avesso, assimétrico. Dissolvido em uma lógica que não conheço.
O que eira e o que beira neste caso é este entrelaçamento de pechas: periferia, pequeno desengonçado, boné surrado, beira de canal, ‘galos, noites e quintais’...televisão de tubo. O que vinga é que na esteira, das especulações, vem logo a rima, a dedução simples: é ladrão.
Esta semana fui na TV. Fui dar uma entrevista falando do meu livro e aproveitei para divulgar alguns projetos que tenho para novas publicações.
O que corta e o que ara nestes casos é que a televisão esteve presente na minha vida de duas maneiras, nesta semana. De um jeito, retratando o enigma de um eletroeletrônico passeando em braços suspeitos. Do outro, na minha assunção dos alagados da Pedreira para os lumes das câmeras de TV. Ambos os jeitos, aos seus termos, expressando conquistas.