Amaranta Maria não sabe o que
é hiato
Noite
dessas, enquanto eu descarregava uma pissica da velha chica contra um
participante do BBB, a minha filha, Amaranta Maria, que adormecera na redinha
atada na penumbra do quarto, desandou a falar.
Falou
dizeres incompreensíveis, desses que a gente fala dormindo mesmo, mas também, articulou
perfeitamente frases pertinentes aos movimentos do seu dia: ralhou com o irmão,
brincou com o gatinho, disse que ama o papaizinho, mandou fechar o portão...
Mas
uma coisa, em meio ao fraseado, me tirou a atenção do sofrimento a que são
submetidos os emparedados e me ligou a prosa inconsciente da minha menina. Ela
disse: “eu não sei o que é hiato”.
É
certo que faltaram só catorze anos para eu me formar de psicólogo, e que o
livro que eu tinha sobre a interpretação dos sonhos, do Eduardo Mascarenhas, eu
dei de presente para minha comadre Eliza Sena. Mas pelo que a gente ouve por
aí, quando a gente fala dormindo, a gente revela os nossos conflitos reprimidos
ou exageradamente vividos durante o dia (é por isso, por exemplo, que algumas
pessoas, enquanto dormem, gritam ‘goooollll!’. Às vezes, porque foi e outras
-olha lá a frustração- exatamente porque não foi gol).
No
discurso noturno, as inquietações, as preocupações afloram. Segredos são revelados,
indiscrições são cometidas, pecados são assumidos (cuidado, muito cuidado com a
auto-trairagem do sono)...
Pelo
sono turbulento de minha beibe, soube que ela estava tendo dificuldade no
aprendizado da parte da Fonologia que trata dos encontros vocálicos.
No
outro dia, já com a menina pronta para ir para a escola (é bem verdade que
estimulada por sonoridades do tipo ‘vumboooora, Amaraaaanta! Já são sete
hoooooras! Tu vais chegar atrasada, menina!), fui atrás. E ela confirmou .
Disse que estava se havendo em Português por causa deste tal de hiato.
Ai,
ai, ai, agora pegou, pensei ressentido. Minha filha não sabe o que é hiato.
Nem
eu.
Na
verdade, sei um pouco. Aquele tantinho na biqueira pra varar uma prova de
Português com um cinquinho.
O
hiato acontece quando uma semivogal, ‘i’ ou ‘u’, forma sílaba sozinha, ou seja,
vira uma vogal. Como em sa-ú-de.
Ocorre
também quando se separam as vogais idênticas como em Sa-a-ra. Confesso que esta
parte eu não sabia. Para mim, hiato tinha a ver somente com os ís e us. Tendo o
seu ‘i’ e o seu ‘u’, pra mim já era um hiato batido, jurado e sacramentado. E
pronto. Mas que nada, a minha pesquisa aqui na Gramática do Ernani Terra já me
vem com este negócio de ‘a’ dobrado, ‘o’ dobrado e complicaçõezinhas outras:
O
termo ‘hiato’ assume, também, alguns valores conotativos. Um que me vem assim,
de repente é o da temporalidade, na verdade, indica um intervalo de tempo.
Diz-se, então “ele voltou à cidade, depois de um hiato de dez anos”. Tem, pois,
um sentido de lacuna, de vaga, que cabe também nas construções de caráter espacial
como: “só farei a pesquisa após um hiato de dez casas”.
Tá
vendo, tem razão, a minha neguinha em preocupar-se. Se
não cuidar, a gente corre o risco de compreender hiato como um termo que expressa
breves interrupções, no lugar de dizer que é um encontro vocálico e aquela
história toda de is, os, as e us.
Compreendo
o sono aperreado de minha pequena, mas não hio nem chio para amenizar o seu
drama. Faço o meu papel de pai: ensino as coisinhas que sei e indico uma boa
Gramática. Previno, porém, minha filhinha, que desde agora, na quarta série, e
ainda por um bom tempo, ela vai se pegar com as conspirações (ou inspirações,
quem sabe?) da língua.
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