sábado, 22 de junho de 2013

A filha dos meus sonhos
Antes de sóis e luas, antes dos dias floridos, antes da harmonia de todas as músicas e dos doces sentidos. Antes de clarões de olhos arregalados, de sorrisos dengosos, de irreverências irrestritas, de apuradas percepções, do humor ferino e da cristalina voz, ela já existia.
Apareceu nos meus sonhos, como uma poderosa composição de nomes. Dois nomes inspirados num dos personagens mais fortes de García Márquez. Nessa época, tinha, já, os olhos graúdos (mas nem tão negros e nem tão franjados como os que hoje se mostram admiravelmente reais para mim).
Havia a vontade. Imaginávamos nossa filha. Passávamos horas com ela. Conversando, fazendo carinho, trocando sorrisos.
Ainda, no mundo maravilhoso dos sonhos, decidimos mudar o segundo nome. Continuou habitando a Macondo de infindáveis quimeras, mas agora, a solidez da matriarca Úrsula daria lugar a singela aliteração nos érres e ao coração dadivoso da mãe da Amazônia. Seria Maria. Amaranta Maria.
(Alinhavávamos o futuro no início dos anos 90. Eu queria ser pai e minha companheira Edna, ser mãe. Queríamos uma menina por vários motivos. O mais forte deles é que nas nossas vidas, na vida de pessoas próximas e queridas, tínhamos sempre e decisivamente presente a figura da mulher. A nossa menina já tinha padrinho, próximo e querido, certo e motivações consistentes para a escolha.
Eis então que, como os destinos caprichosamente traçados pelo escritor colombiano, ela adiou sua vinda. O menino Argel veio primeiro, como se nos adiantasse a realeza, como se abrisse cortesmente, o caminho para a princesinha de tez doirada).
Em 26 de junho de 1998, chegou aos meus braços no calor da luta. Estava eu, num processo delicadíssimo de fundação de sindicato. Quando nasceu, minha lida não estava fácil. Havia perdido minha mãe Luzia, a grande mulher da minha vida, há um mês. Vivia dias cáusticos, amargos, de uma ferocidade premente. Para onde eu me virava era uma guerra a vencer, um gigante a derrubar. Todo dia, chorava um pouquinho, e depois tinha que dar conta de uma fera ou reagir a um repente gélido e distante. Por isso não a vi chegar à luz. Fui tê-la em meus braços somente no segundo dia, me sentindo culpado, quase arrependido de não estar lá na hora do nascimento, mas seguro de que havia, pela minha menina, feito o certo (e rogo aqui, que por esta ausência minha filha me perdoe).
Tenho a absoluta certeza de que Amaranta Maria veio preencher aquela lacuna que havia dentro de mim. Veio, com a sua inspiração feminina, ajudar a cicatrizar a ferida aberta em meu coração (com a partida de Luzia, eu me sentia muito só, esvaído, vazio daquela força de mulher). Amaranta era aquela esperada; a antes de tudo, anunciada. Mas, caprichosa, também era aquela que burlara a ordem, que obsequiosa, dera lugar ao varão, ao primogênito, como se dignos fôssemos nós homens, da primazia pela vida. E resolveu nascer depois. Chegou, pois, na hora certa. Parece que de lá, de antes das auroras e dos arrebóis; de lá, da eternidade dos sonhos, ditosa, antevia os fatos e as ânsias.
Amaranta veio enxugar-me as lágrimas e mais: pôs-se à minha frente a me anunciar uma nova vida. Um ânimo vítreo, luzidio. Com ela reinvento a alegria cotidiana. Reitero singulares admirações. Certifico-me de valores femininos que me enriquecem e me enlevam. Traz uma personalidade que me dá segurança. É objetiva, curiosa, desbravadora. Espetacular. Tem valores que me amparam e me sustentam na crença de dias melhores. Vai fazer quinze anos, na quarta-feira, mas vive desde antes de sóis e luas, nos meus dias, como a filha que eu sonhava ter.

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