sábado, 8 de junho de 2013

Longe-perto

Ter amigo é nunca sentir-se só. 

Houve um tempo na vida em que eu buscava definições para as relações pautadas na amizade. Não cravei dizeres melhores que este. Para mim, um amigo é o inverso absoluto da solidão. 

Certa vez, estava acompanhando a abertura de uma trincheira na margem direita do Xingu. Trincheira é um rasgo que a gente faz na rocha para melhor verificar as suas características. O caso exigia o uso de explosivos, equipamentos... Um geólogo famoso iria estudar aquela exposição, um craque da Geotecnia. Todo o nosso pessoal mobilizado para assistir à apresentação dele. 
Trincheira aberta, lá m’estava eu, numa tarde nublada preparando detalhes para a vinda do doutor. Aí choveu. Parte da minha equipe abrigou-se num barraco coberto com lona. Eu, que mais afastado estava, acudi-me a uma fresta de um bloco robusto de Migmatito. E foi entre faixas paleossômicas e neossômicas, sob uma aguinha neblinada de chuva de verão, que ouvi numa fita que pus no walkman, uma canção antiga. Deu-se então que uma sensação inequívoca de carinho me tomou por inteiro. 
Estava ali, enterrado numa loca de pedra, apartado da civilização, da família, das facilidades urbanas. Fincado à fenda de um bloco rochoso, me aninhando friento, ganhando o meu de cumê num ermo inóspito, umedecido pela chuva da tarde; Na margem direita do Xingu, estava eu, no batalho, me assombrando com o grito lá ao longe, do macaco guariba e aceitando, resignado, aquela perturbação do silêncio que o triscado das gotas de chuva fazia na casquinha limosa da pedra. Minha equipe bem afastada. Percebi que aproveitaram a folguinha dada pela chuva, estenderam um pano na areia e se entregaram ao carteado. E eu ali, me batendo com uma saudade boa. 
A música que tocava no meu radinho era um brega popular. Nem era um clássico sentimental ou uma pérola da emoção. Orbitava entre o usual e o casual. Sucesso nos escaninhos da Pedreira no início dos anos 80. Uma harmonia corriqueira que trazia o sorriso, a expressão faceira do meu melhor amigo pra perto de mim: é que houve um tempo em que trabalhávamos na feira e ouvíamos esta canção na rádio cipó. Como o som nos chegava um tanto atrapalhado, nos guiávamos pela melodia e criávamos outra letra para a canção. Inventávamos estrofes, engendrávamos um refrão absurdo, tecíamos clímax e prazeres sonoros. Nos divertíamos a valer com aquela presepada. 
Hoje, mais de trinta anos adiante, quando nos topamos com esta canção, pelas quebradas, cantamos, despudoradamente, a nossa versão. Ela resiste aos anos assim como a nossa amizade. 
Um momento que não me sai da cabeça aquele dia que fiquei socado na brecha de um migmatito esperando a chuva passar. De curioso há o fato d’aquela situação, não inspirar, de jeito e maneira, comoção ou emoção (fenda, explosivos, trincheira, a espera por um doutor que vinha de longe). Mas olha só, encontro aí o traço revelador das minhas convicções sobre amizade. Era um momento tenso, de um abandono dissimulado, mas abandono. Um pé para que a solidão pegasse carona no vento e me cortasse o peito. Naquele momento valeu-me a certeza cravada: quem tem um amigo, jamais se sente só. 
Meu amigo estava ali. O percebi dividindo a fresta comigo, inventando versos pelo silêncio dos olhos. Porque para estar junto não é preciso o testemunho físico, basta que as ondas de afeto vaguem pelos éteres e nos atinjam o coração. Terça próxima vindoura, meu amigo faz 50 anos. Destes, 34 anos ao meu lado (ou longe-perto) em sorrisos e canções, a me proporcionar bem-vidas sensações, a me mostrar que ele é escritinho, sem tirar um isso, ou pôr um aquilo; ele é o dito e inabalável, inverso da solidão. 

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