sábado, 26 de dezembro de 2015

crônica da semana - professora de história

Contadora de História
O tempo, esse dissipador de nuvens, esse debelador de fogos. O tempo, império do reticente e do inconformismo etéreo.Tempo massa. Substância. Fio de água fugidio. Tempo escape.Tempo perda. O passar dos anos me fez esquecer o nome dela. Mas a minha vida construída, o meu passado explicado, o meu futuro ansiado, o meu presente domável, o meu tempo medido reconhece aquela minha professora de História como mediadora, como interventora, e também como construtora de uma forma que tenho de ver o mundo.
A bem dizer, era uma contadora de história com todos os requintes de uma boa prosadora. Tinha postura, modulava a voz, asseverava o semblante, variava o ritmo do caminhar entre carteiras, dissimulava sustos e surpresas. Teatralizava os fatos.
O ano era 1975. Quinta série na Escola Jarbas Passarrinho. Atrás do Bosque. De lá, o tempo, esse inconteste sonegador de eras, me permite a lembrança do Franklin, coleguinha espevitado e bem nascido; da brincadeira de futebol com cacos de lajota, no prédio antigo da Perebebuí; dos imensos valões abertos de fora-a-fora na 25 de Setembro, onde seriam introduzidos os tubos de esgoto e que abrigava, escondidinhas as nossas brincadeiras de pira subterrânea; Permite também uma nesguinha de recordação da professora de Educação para o Lar que antes das aulas olhava as nossas unhas, ralhava se a gente estivesse remelento, enviava bilhetinho pra mãe mandando tomar banho e às vezes nos agraciava com um bem aplicado transpesco no cocuruto, daqueles de nos deixar azuruotinhos, só de ranzinzagem mesmo.
A mais nítida e agradável imagem que a memória me entrega neste Natal, porém, é a figura elegante e sábia, da minha professora de História. Era jovem, distanciava-se da professora de Educação para o Lar na idade e nos métodos. Amparava-se na literatura didática da época. O livro de apoio era da linha dos TD’s, que dominavam todas as disciplinas do primeiro grau. No caso, “Trabalho Dirigido de História”. Para a Quinta série, o enredo era desenvolvido no estilo de história em quadrinho. Um menino e uma menina eram as personagens que cruzavam os períodos da pré-História, História Antiga, Renascimento...
Minha professora narrava como sendo nossa, a aventura daqueles garotos. Inesquecível a visita que fizemos ao Paleolítico. A mestra caprichava na emoção ao relatar nosso encontro com o Homem das Cavernas na compenetrada tarefa de afiar uma pedra ou de tecer uma armadilha com um rude cipó. Antes de virar a página, a professora fazia um suspense, especulava um risco, declamava um thcan thcan thcan thcan, e de repente soltava um grito apavorado. Era um dinossauro lagartão arengando com nosso herói primitivo. Ela não nos iludia sobre o final: a História, não raro, nos entristece. Mas eis que, nosso antepassado, dizia a querida professora em tom assoberbado, na página seguinte consegue vencer a fera com o sua machadinha. Eraste! Era a festa do alívio.

Quis o tempo, que minha professora me visitasse neste Natal, sem nome, esguia, alterando a voz, jovem, teatralizando, subvertendo. Tecendo minha história.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

crônica remix - chita corrente

Corrente
Ana da dona Jucélia era dona do meu coração. Nos beijávamos beijos infantis, ao pegado das cercas de estacas ferpadas que separavam nossos quintais. Seu Paulo tinha um caderninho aonde anotava os “por conta” e os “em a ver”, com letras e números garrafais. Enedina era morena de cabelo escorrido e Roseana, miss. Piroró era neguinho oxítona e danado. O mais novo de 8 irmãos. O pai, Seu Três por Nove, vendia picolé e criou os meninos, sozinho, assim, vendendo o extra e o cremoso. Chita, toda vez que caía nas garrras da policia, tinha as unhas arrancadas. Depois, posto na rua, chorava. Um homem daquele tamanho, chorava na esquina da Lomas, de dor e humilhação. Era um ladrão doce.
Maria de Jesus me ensinou o beabá. Minha fascinação. Usava shorts prafrentex e me chamava de Pequenino. “Pequenino, já fez o dever?”. Um encanto de fessora. Tomava bença dela. “Pequenino, pra que lado é a perninha do a?”. Manoel Josafá era saliente. Ficava lá atrás, fazendo coisas, pensando indecências. Todo mundo sabia. Na hora da merenda, custava a se levantar. Ivo. Ivo via a uva. E...
Dona jarina via a princesa dentro da garrafa de água benta. Nas tardes quentes de agosto, se arrumava, pintava os lábios espessos, se enfiava em colares de contas. Sobrepunha um turbante de azul bem clarinho sobre os cabelos ralos. Chamava a gente da janela, dispunha a garrafa contra a luz e descrevia uma floresta encantada, com cachoeiras, pássaros, lajedos inclinados e, lá no fundo azul, a sereia. A rainha do mar. Eu vi dentro da garrafa.
Otávio já era grande e não sabia ler. Não tinha, porém, substituto na ponta direita do Internacional da Mauriti pra ele. Não fosse ter que bater marreta na construção da Casa do Bife, pra sobreviver, seria um grande jogador de futebol. O irmão variava da cabeça e à noite perturbava a esquina boêmia da Pedro Miranda com a Angustura. Assustava as meninas que batalhavam ali pelo Shangrilá, pelo Rosa Vermelha. Tinha uma voz agressiva. Quando se esquecia de tomar o Gardenal era recomendável guardar distância dele. Roubava toca-fitas de carro e não bebia. Nunca foi preso por roubo. Por desordem sim. Era um desordeiro empedernido. Irrecuperável. Já, Demerval, não. Este, de vez em quando caía. Não de graça. Resistia. Liderava refregas. Tinha um bando. Roubava carros. O corpo era todo marcado de bala. Umas cicatrizes arredondadas enegrecidas. Era imortal. O pai, caminhoneiro.
Tarcila cresceu rápido depois que teve papeira. Aos treze anos endoidava a molecada com um corpo de entontecer, uma faceirice, um odor primitivo, uma sensualidade abrasadora. Mas não queria os meninos da rua. Um dia um carro estacionou na frente da casa dela e perdemos Tarcila para um boy da Bailique. A mãe de Tarcila era mais bonita que ela. Enviuvou três vezes, continuou bonita e virou sogra de menininho rico.
Vitório pichava muro com frases contra a ditadura. Era franzino, usava óculos fundo de garrafa. Ninguém dava nada por ele. Era um guerreiro, porém. Tinha carisma. Atraía as pessoas. Conquistava seguidores com aquele jeitinho, aquele caminhar ensimesmado, aquele ar ausente. O que todo mundo desconfiava, era que ele vivia maquinando. Queria porque queria derrubar o governo. Certo dia, apareceu para uma reunião importantíssima, acompanhado de uma loura pra lá de bonita. Mãos dadas, troca de olhares (e ele que era tão disperso, atento a ela estava a cada instante). Era Natal. Era Ana da dona Jucélia. Entrariam para a clandestinidade depois da ceia e da reunião. Quando deu meia-noite, sumiram por um buraco na cerca que separava nossos quintais e meu coração explodiu. Bummm!



sábado, 19 de dezembro de 2015

crônica da semana - Cury

Vinte e cinco por cento
Esta semana, por indicação de pessoinha pra lá de considerada na paróquia, tomei contato, pela primeira vez, com uma obra de August Cury.
Não conhecia, saltava de banda dessas escritas que, dizem as más línguas, são coladas à fúlgida oratória da autoajuda. Eis que, no entanto, desemaranhado das teias aconchegantes de Dalcídio, imediatamente, mudei de rumo e aprumei a montaria para as águas psicopedagógicas de “Pais Brilhantes, professores fascinantes”. Digo só uma coisa: mal não me fez.
O autor é profuso, popular. Sou um entre 16 milhões de leitores dele. De primeira viagem, ainda ressabiado, mas, conhecendo, conhecendo... É frasista. Já topei, alhures e amiúde com pensamentos dele expressado por pessoas da minha laia.
Não é exatamente chocante, profético, maldito ou visionário. Realiza construções apascentadas, quase inertes, do tipo “as grandes idéias surgem da observação dos pequenos detalhes” ou similaridades concernentes à liberdade ou ao apossamento de nós mesmos como únicos e universais.
Ganhei o livro de presente num consórcio entre meu filho e a namorada. Cá comigo pensei: é, como se diz na grande indústria, uma oportunidade de melhoria. Por certo, não estou agradando. Bem capaz d’eu estar devendo... Recebi de bom grado o regalo, agradeci, fiz carinhas e bocas discretas por causa do gênero que não é muito minha praia, pus na fila das leituras da hora, logo após o Dalcídio e, né que já estou no finzinho!
O conteúdo fala da conduta dos pais, dos professores... Da carapuça que me coube, fiz anotações, tirei conclusões e, ainda, aludindo à linguagem dos programas da grande indústria, montei planos de ação.
Em tudo por tudo, concluí que não sou um pai brilhante. Mas tô na biqueira. Brilho uns 75%, sem falsa modéstia. Perco os 25% ali na hora do controle das emoções e tal, e tome plano de ação para dirimir estes descompassos.
Ganho destaque na parte das relações com a memória. Cury indica que a lembrança não é uma reedição do fato. É, sim, uma reconstrução da história. Pai brilhante tem que contar história. Oba, neste quesito, eu corto e aro. Mas já contei, olha, mina de histórias pr’esses meus meninos. Houve um tempo, que eles eram menores, não tínhamos televisão, internet, não íamos para as partes (e Cury fala também da necessidade deste alheamento), eu atava uma rede ao cair da noite, pulávamos todos dentro e haja contar causos com ou sem causas, da vó Luzia, de quando eu trabalhava no Carisma e era o menor empacotador do supermercado e do mundo, aquela aventura nas matas de Rondônia enfrentando tribos de pigmeus, do voo que fiz até a lua cheia, de tantos dos meus encontros, encantos, das minhas decepções. Tentava me mostrar, me apresentar para as minhas crianças do jeito escritinho que sou e eles gostavam, driblavam o cansaço e quando eu pensava que o sono já os dominava, me voltavam pedindo que eu contasse mais uma da vó Luzia.

Augusto Cury, mal não me fez, muito pelo contrário, me refez a memória e a realidade do brilho que está a uma insuperável distância de 25% de mim.

sábado, 12 de dezembro de 2015

crônica da semana - nem seu sousa

Nem seu Sousa
Uma pena, olha, mas uma pena mesmo que a massificação, a retidão, o padrão da fala tenham enterrado alguns dos nossos mais simpáticos ditos populares. “Nem seu sousa” é uma expressão similar a um árido “não tô nem aí”, ou a um desafetado “nem te ligo”, ou ainda a um irônico e pouquista “eu choro pra ti”. Cabe certinho em reclamações e constatações destemperadas comuns nos solavancos inevitáveis das amizades: “eu avisei pra esta pequena, não te assanha pra tá de esbruga pelos cantos, que a carne é fraca, e ela, ‘nem seu sousa’, pra amiguinha aqui, não prestou reparo”. E, mais adiante, pode se desdobrar em troco virulento: “Agora, que está com a barriga por acolá, eu, olha, ‘nem seu sousa’ pra ela”.
Eu por mim, até hoje manifesto meu desdém usando estas mesminhas palavras. Aprendi com minha avó, que era useira e vezeira dessas temperadas articulações do vulgo.
E mais animado a usar, estou agora. Reencontrei mina dessas artes do falar popular nas páginas de “Belém do Grão-Pará”, quarto romance do ciclo do Extremo Norte, sequência de narrativas em que o escritor marajoara Dalcídio Jurandir conta a desestruturação da Amazônia após os tempos áureos da borracha. Nos termos do falar da praça, neste livro, Dalcídio corta e ara.
Aí eu desdobro a pena. Um custo conseguir uma obra do Dalcídio. Indo e vindo, é um dos nossos maiores expoentes literários. Escritor pródigo, vasto. Guardador e disseminador do linguajar paraense. Mestre no enredo amazônico e, em especial, na prosa líquida dos baixios do Marajó. Tantos teres, tantos haveres. A gente fica num pé e noutro para lê-lo.
Mas quede.
Batemos e rebatemos o pé pelas livrarias da cidade, mas quando que a gente acha o autor! É por essa e por outras que a nossa identidade, as nossas particularidades, o nosso tino paraense vai se diluindo numa linguagem planificada, tesa, embalada a vácuo. Vai perdendo espaço para um falar enfadonho, pasteurizado, pseudo-moderno-elegante.
Este unzinho mesmo que estou lendo, achei numa dessas exposições de desapego no chão da Praça da República. Um jovenzinho organizou o exemplar entre uns vinis, uma bolsas de pano, uns vidrinho de não sei o que orgânico. Mais que depressa catei dele. Alguns dinheiros e a troca estava feita.
É aquela edição que a UFPA fez quando o romance caiu no vestibular, como leitura obrigatória. Lembro que foi no ano que prestei exame, e foi um Deus nos acuda porque a tiragem não deu pra quem quis. Era gente se agatanhando na livraria da Federal para garantir o livro. Na época, sobrei. Mas eis que um jovem, no exercício do desapego, anos mais tarde, me fez a presença. O livro é uma delícia.

E lá pelas tantas, em “Belém do Grão-Pará”, Dalcídio reproduz cenas da Transladação. Encontros paralelos, nos escurinhos das travessas. Travessuras de jovens romeiros. “Ai, Diquinho”, diz a garota, “respeita a Santa, mas assim, também não”. O autor não revela, mas eu, nos conformes e compreendos  da leitura, imagino que Diquinho, “nem seu Sousa” para os reclamos da pequena. Continuou foi os assanhamentos, atentandozinho. Dalcídio é que sovinou de contar.

sábado, 5 de dezembro de 2015

crônica da semana - cama patente

A cama patente
Não sei de onde mamãe tirou essa arrumação: chamava de cama patente, àquele arrumadinho formado no chão por uma peça de compensado pouquinha coisa maior que eu; um pano de rede maciínho; umas tiras pra mais de palmo de largura de uns cobertores aveludados nodoados e pitiús de xixi.
Foi o jeito que mamãe deu para nos acomodar, os quatro acreaninhos, com algum zelo, na hora de dormir.
Só tínhamos quatro redes. Uma era da mamãe. Sobravam três. Um de nós ia para a cama patente. E adivinha quem era o ungido? Raimundinho Nonato, o pequechichito aqui.
A intenção da mamãe era saltear, fazer rodízio com minhas irmãs. Até que no início deu certo, mas as meninas reivindicaram, evocaram o meu cavalheirismo. Podia ser um zoiudinho entanguido, mas era o homem da casa, deveria dar o desconto, utilizar as minhas potencialidades, a energia do macho... e dormir no chão. Ah, tá. Combinado. E lá fui eu, machinho, me conformando com o conforto possível que a cama patente me oferecia. Camapatenteei por um bom tempo. Sonhei. Babei uma babinha fina pelo canto da boca. Tremeliquei involuntariamente e falei palavras ininteligíveis durante o sono. Amanheci com a cabeça pro outro lado. Morri de preguicinha na hora de acordar e ir para a escola. Tudo, que-nem-que-nem dormisse em colchão de mola. Só não caí da cama, porque no chão, já estava.
Naquele tempo, tinha que rezar um ‘com Deus me deito, com Deus me levanto’. Mamãe cobrava. Lá da sala, que era ao pegado do compartimento que, no aperto de uma casa de três cômodos, tomávamos por quarto, queria ouvir. E eu mais que depressa encarreirava na desobriga, na fé e no fervor porque de todos, naquela hora, tinha mais precisão. No chão, precisava mesmo de uma proteçãozinha. A casa era de madeira. Assoalho falhado. Sem forro. Tinha bichos nos escondidos e escurinhos que se danavam a passear à noite. Nas altas horas do sono, era um pé pra uma osga se animar, dar aquela ‘lembidinha’ no meu beiço, sugar meu sangue quentinho e, à época, descontaminado de alcoóis, cepas ou graxos. Vez ou outra eu percebia uma vermelhidão suspeita, ao amanhecer. Mas não maldava e nem me entregava ao pavor. O que os olhos não vêem...
Deixa estar, que mesmo sem ver, me pelava de medo era do ‘santospés’. O argumento da minha reza era centrado, pedia que me espremia, e até promessa fazia, era para que o Bom Deus e a Santa Virgem me livrassem da centopeia, terrível representante dos Artrópodes, e suas perninhas nojentinhas fervilhantes.
Nas redes, mamãe e as meninas, penso eu, livravam-se dessas visitas noturnas. Dormiam sem medos e o mais de aperreio que passavam era o bate-bate automático esmigalhando um carapanã aqui, outro ali, aos tapas.
Dormi no chão muitas noites. Até que um dia, mamãe comprou no prestação, uma rede avarandada que atei ao lado dela.

Agora, em outros tempos, por causa de umas dores nas costas, tive que comprar uma cama especial para aprumar o esqueleto. Qual não foi minha surpresa, quando reparei que a cama é dura que só ela. A pura ‘talba’ de assoalho. A pura cama patente. Como nos velhos tempos.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

crônica remix- Neide Aparecida

Cadê a Neide Aparecida?
A Neide Aparecida era do tempo da Rural e do Aero-Willis. Do tempo do óleo Jaçanã e do pão e meio. A Neide Aparecida é da época de antigamente quando chamávamos band-aid de planticure e zíper de fecho-ecler. A moça era de um tempo em que o bairro do Sousa era longe pacas e que a gente falava “égua, tá ralado”, e ainda falava “é longe pacas”.
A Neide Aparecida, confesso, não me traz de volta nananina de sentimentos ingênuos ou infantis e olhe lá, olhe lá, muito pelo contrário, ainda hoje reino com a lembrança provocante da pequena de mini-saia atentando o Clementino pelos corredores do edifício Balança Mas não Cai na telinha em preto e branco daqueles anos distantes.
Enquanto a Neide serpenteava tentadora de espanador na mão pela alegria do Balança...a minha patota varava os quintais pródigos de cajueiros e do rasteiro camapu nas manhãs da Marquês com a Lomas, aquietava-se um pedacinho depois do almoço e mais com um pouco,  se danava a espalmar a mão sob o lodo esverdeado a cata do balulusca ou da colombiana no jogo de peteca da tarde. E à noitinha, se ajeitava pelas janelas de vizinhos para acompanhar as tesouras voadoras fantásticas do Ted Boy Marino, no telequete Montila.
A sedução de Neide se espraiava por um tempo em que os saqueiros ainda não haviam sido tragados pela reestruturação produtiva e os sacos de cimento usados garantiam o desenvolvimento sustentável. Um tempo em que a laranjinha era a da Gelar e o lacre era cortado com a ‘gilé’. Um tempo em que a gente pagava em dia  as prestações do carnê da R. Mendonça. Do tempo em que grassavam entre as mãos da molecada fortunas em carteiras de cigarro conquistadas no palmo resultante do choque de moedas contra a parede. E éramos todos ricos com o orgulho de, ao mesmo tempo, enriquecermos a base de foscas e populares notas de Gaivota ou de brilhantes e  laminadas notas do aristocrático Hilton ou Albany (aquele com filtro de carvão ativado).
Era assim: enquanto no talho do Manduca, na feira da Pedreira o quilo e meio de Pá só com o osso da peça era embrulhado nas folhas de guarumã, a Neide Aparecida despertava, precocemente, a libido imberbe dos meninos de família.
A personagem que a Neide Aparecida interpretava no “Balança...”, atazanava a vida do faxineiro Clementino. Era uma secretária boazuda, em trajes mínimos, que se insinuava para o pobre Clementino, que de bobo e desatento, não percebia o real interesse da moça. Esta lerdeza do faxineiro se reproduzia no bordão “xiiiiiii, como é boa esta secretária, ah se ela me desse bola”. Cai o pano e o Clementido passa batido como sempre: não traça ninguém.
E como era boa aquela secretária dos tempos pueris da Chulipa e do Kichute!
O Tutuca, que interpretava o incauto faxineiro, eu ainda o vejo zorrando, pelas esquetes do Zorra Total..., mas e a Neide, inspiração para as primeiras e maravilhosas sensações que se anunciavam a peso de muitos ‘arrupios’ e chiliquitos para mim e para os outros da patota. Mas e a Neide Aparecida. Cadê a Neide Aparecida?


sábado, 28 de novembro de 2015

crônica da semana - intelixente

Intelixente!
Quando morávamos naquela casa de enchimento encravada numa vila geminada fazendo limite com uma nesga de calçada alta à frente, a vida na Marquês de Herval era quase de interior. Sem muitas novidades. Que eu me lembre, a Copa de 70 e o primeiro morador da rua a passar no vestibular foram os acontecimentos que abalaram a rotina da Marquês. No mais era a bola da rapaziada no leito de piçarra da rua, as ousadias etílicas da turminha do Bar Pedra Noventa e as arengas e maledicências comuns entre vizinhos regulando os dias.
A minha batida era aquela de menino que fazia o Primário na Aparecida e que convivia em paz com a minha sensaboria, com a minha sensalzice.
Para a mamãe, eu era um fenômeno. Medindo a minha trajetória de cortadorzinho de seringa no Xapuri a aluno esforçado na Aparecida, se entusiasmava. Alardeava a minha alta capacidade. O menino é inteligente, dizia. E com tamanha paixão que o gê ia ganhando volume, intensidade. Articulava a palavra com tão ferino enlevo que o gê ia tomando a envergadura de um xis sonoro e prolongado. O menino é intelixxxxente! Sabe contar toda a novela Irmãos Coragem. Sem tirar nem pôr.
Mal sabia a minha vida na Escola. Não era um aluno ruim nem displicente. Mas também não era esta excelência toda que mamãe pregava baseada na ignorância da minha vida pregressa e no domínio de uma novela de aventura. Dava minhas mancadas também.
Uma emblemática, na Aparecida, que eu não esqueço nunca. Prova de Matemática. Conjunto. A questão pedia pra ligar os elementos iguais dos conjuntos. Sendo eles: casinha, bolinha, florzinha. Não sei o que me deu na telha, que destrambelho ou desmiolamento me acometeu que fui ligando tudo errado. Casinha com bolinha, bolinha com florzinha, casinha com florzinha. Hoje, uma pessoa de boa fé, diria que eu interpretei mal o comando. Mas quite, foi patetice mesmo. O que torna é que, depois da prova, nos ‘comentários finais de Grimoaldo Soares’ sobre as questões, reunido com a minha patotinha, me dei conta do furo. E pior, na minha inocência de acreaninho das brenhas (juro, não houve dolo nesta ação), voltei lá com a fessora, borracha em punho, e pedi a minha prova para as devidas correções. Pensa num carão que peguei.
Ah, mamãe, contar as cenas dos próximos capítulos na rodinha de vizinhos era fácil, agora ligar os desenhinhos dos conjuntos exigia uma concentração que eu não tinha.
Com o tempo, mamãe foi desvanecendo a idéia que fazia do meu brilhantismo. Era chegar o boletim com os meus errezinhos, os meus cinquinhos; Era constatar os meus aperreios, os meus malabarismos para passar arrastado que ela tomava pé da mais incontestável realidade. Eu não era um geninho.

Fui um aluno regular, repeti de ano uma vez por causa de umas paradas, hoje condenadas pelo ECA, que já contei aqui, mas foi uma única vez. Quando engrenei, passei sempre direto... regularmente, mas passei. Contudo, se mamãe me visse hoje, todo prosa contando causos no jornal, ligando desenhinhos da memória, certamente se entusiasmaria, faria uma rodinha com a vizinhança e cravaria: intelixxxente!

sábado, 21 de novembro de 2015

crônica da semana - a casa ao lado

A casa ao lado
Havia um calor dissimulado, amenizado pelo salpico de talco no pescoço e por um comportamento liminarmente imposto: da feita que me empoava, mamãe sentenciava, não podia me abalar para nada, suar, podia suar apenas aquele pouquinho, inevitável, na caminhada cadenciada pela Barão do Triunfo, procurando aqui, ali, a sombra das pequenas árvores alinhadas no meio da rua.
Era um menino das brenhas do seringal. Tinha uma vaga do governo numa escola particular. Nada da cidade dominava, a não ser aquele traçado inalterável que me levava até a igreja de Aparecida. Mas, nos primeiros dias, independência, isso não significava. Nunca ia sozinho. Minha tia, no caminho para o trabalho, sempre ia comigo. Era aconselhável acompanhar as crianças, principalmente naquele período calorento, silencioso e solitário da uma da tarde.
Antes de bater a campa, a turma formava uma fila protegida do sol por uma mureta que limitava o acesso à sacristia pelo lado da Barão. Era meu momento de interação com os meninos da cidade. As primeiras e importantes informações, aquelas que a família não sabe passar. Aquelas, que só a molecada domina e entende e com jeito e manha, partilha.
A escola que funcionava na Aparecida era da Igreja. Tinha um público distribuído pelas famílias tradicionais do bairro. Junto com o Josino Viana fazia a vez no ensino básico. Entrei lá na Alfabetização, fiz a Primeira, no meio do ano passei para a Primeira Adiantada, e fui me aviando de lápis e caderno na mão, até o final do curso primário. Na Aparecida, foram criadas as minhas bases de vivência, de percepção. A realidade foi se construindo sobre meus pés apertados dentro do Vulcabrás. Era uma escola que tinha merenda, cantigas para cada coisa: para a hora de merendar, para receber visitas, para homenagear os mestres. Lá, a gente até tomava a bença das professoras. Havia um enlace íntimo entre a pedagogia da Aparecida e o entorno pedreirense. A maioria dos pais que deixava os filhos na porta da escola, também frequentava a missa aos domingos. E muitos se conheciam. Eram parentes, amigos de porta.
Mas naqueles primeiros dias, eu era apenas um imigrante do Acre. Fazia a caminhada empoado, me comportava, reconhecia na cartilha o enredo de que Ivo viu a uva e tinha vergonha da minha casa.
Na volta, quem me trazia da escola era a mãe de um amiguinho que morava lá pras bandas da Passagem do Arame. Morávamos com minha avó numa vila construída com enchimento de barro e que em muitos pontos apresentava vastas áreas descobertas, exibindo apenas o esqueleto de finas estacas farpadas na fachada. Me sentia embaraçado para mostrar que morava naquela casa velha de enchimento quase sem enchimento. Parava na casa de alvenaria, ao lado, e com tal folga que parecia que morava ali. A mãe do meu amigo me deixava na calçada, eu me debruçava sobre o muro baixo e dizia algo leve como vou ficar aqui, apreciando o movimento, depois eu entro. E só quando os dois desapareciam além da Lomas é que eu me adiantava para minha casa de barro. Atormentado por aquele acanhamento besta.


sábado, 14 de novembro de 2015

crônica da semana -alinhado no prumo

Alinhado no prumo
Sou dado a curiosidades bestas e inquietudes vulgares. Isto dito reiteradamente, por aqui, já é causo retinto das nossas prosas. Me bato com cada coisa. Cada presepada, cada invencionice. Olha que quando cismo de viajar nas idéias, viajo pacas. Nem vai longe o tempo em que amanhecia os dias e varava as noites querendo entender o que seria a horizontal. Sim, esta linha inspirada logo ali na frente, na beira do fim do mundo; traço que define a planura do solo que pisamos. Me peguei com tudo quanto foi teoria ou impressão e não deu em nada. Meu cocuruto não conseguiu intuir nem conceituar. Mas não abandonei a barca não. Depois de tanto penar, tanto bolar pelos leitos irregulares das incertezas, cheguei ao segredo horizontal pelo caminho mais reto e seguro. Vi o pedreiro tirando o prumo na parede aqui de casa e deu aquele tóim óim óim no meu imaginar. A vertical do pedreiro é uma direção. E é a direção mais certa, imutável, irrevogável. O pesinho aponta sempre para o centro da terra, formando um alinhamento sagrado e se a parede sai torta, por certo, o obreiro sentou tijolo numa segunda-feira braba de ressaca, porque, culpa do prumo não foi não. O prumo não falha.
Além do alívio, do conforto no espírito e da leveza no trato, a descoberta de que a horizontal é uma direção tirada em quina de 90 graus do fio de prumo, mudou minha vida.
Ou melhor, não mudou, ratificou uma certa retidão que tinha no meu ser e no meu estar. Me reconheci e me assumi como um ser invariável. Ortodoxo e orto-operandi. Posso citar vários exemplos dessa minha tendência a fio de prumo. Uma que é bater e cravar: Uso sempre a mesma roupa. Tenho foto. Aos domingos, um grupo de escritores se encontra na barraca do Escritor Paraense, na praça da República. Lá pelas tantas a gente se junta para um registro. E não é que um dia desses, repassando as fotos em domingos diferentes, reparei que eu estava com o mesmo look. O testemunho era contundente. Não que fosse intencional. Não. É aquela minha retidão, minha cômoda invariabilidade. Só vou na certa. O mesmo conjuntinho camisa-bermuda-chinelinho. Repetidinho, mas limpinho.
No tempo das locadoras de filmes, era batata. Não experimentava. Alugava toda vez, os mesmos filmes. Blade Runner... aquele do Brad Pitt que ele tenta porque tenta escalar o monte Nanga Parbat, no Himalaia... Os meninos, em casa, haja reclamar.
Umas das minhas mais singulares fixações é o apequenamento, a análise fina, a repartição de um todo. É só eu pegar um papel para esboçar um texto ou um riscado que já vou dobrando, reduzindo as faces. Um papel A4 rapidola se encolhe em minhas mãos. Sobre uma superfície mais limitada, mais domável, me sinto seguro, concentrado e assim, mais à vontade ao riscado. Boa parte das crônicas que escrevi à mão, antes de ter um computador, foi escrita neste abrigo liliputiano, em terra pequena, nas entre-margens mirins.
O fio de prumo me alinhou de tal forma que toda vezinha que de punho escrevo a palavra atenção, mesmo sem atenção alguma, escrevo todinha a palavra, só depois é que volto e ponho o cedilha.


sábado, 7 de novembro de 2015

crônica da semana - Radinho

O Radinho, o Raimelo
Este ano, participei de uma edição comemorativa alusiva aos trinta anos de fundação da Rádio Cultura do Pará. Uma coletânea onde os autores foram provocados a criar textos que falassem do rádio. Para mim, nada mais estimulante: o rádio sempre esteve presente no meu dia-a-dia desde o tempo do Raimelo.
E talvez esta do Xapuri, seja a lembrança mais distal que eu tenha da presença do rádio na minha vida. Era uma propagação restrita, daquelas de poste. Cobria a beirada do rio Acre do extremo da igreja matriz até a sorveteria Sibéria, no final da praça. O nome da estação, deduzo agora, refletia a aglutinação de ‘Raimundo Melo’, o proprietário do transmissor. Quando meu pai deixava as ruas de seringa e nos dava a conhecer as ruas da cidade, folgávamos a valer, nas tardes de domingo, nós, os pequenos acreaninhos, nos lambuzando com o mel geladinho dos picolés e apreciando lá de cima, dos alto-falantes do Raimelo, o Wanderley Cardoso revelar para todo mundo ali da beirada do rio que “você não é doce de coco, mas enjoei de você”.
Quando chegamos a Belém angariamos bens que iam pouco além de duas ou três redes. E um rádio. E era sagrado, o amanhecer para a luta, sintonizado nas lambadas, na guitarrada, no merengue, no bater de panelas “alô dona Maria, passarinho que não deve nada pra ninguém já está de pé, vamos acordar!”. Minha mãe ajeitava o radinho sobre a pernamanca que atracava a janela, e o dia se definia ali. Coava o café, areava uma panela no jirau com areia e limão, passava uma vassoura rápida na cozinha, separava uma boneca de anil para o molho das roupas, dava as benças, as recomendações e ganhávamos o rumo das lidas. Antes, rodava aquela rosquinha de plástico até um clique desligar o radinho e reservá-lo para mais tarde.
E foram tantas as interações: as várias entonações para o ‘boa tarde’, no programa do Kzan Lourenço; a sorte na roleta para ‘responder’ou ‘perguntar’, nas manhãs do Costa Filho. A alegria matinal de Gilberto Martins, a polêmica vespertina favorita do ‘combatido, porém, jamais vencido’ Eloy Santos; as denúncias do Paulo Ronaldo, as mentiras do Braguinha Oséas Silva, o vozeirão de consciência pesada do José Guilherme, a secretária Iracema, as esquetes de A Patrulha da Cidade ao sol do meio dia. Os reclames dos empórios, dos armarinhos, das distribuidoras de secos, molhados e estivas em geral.
Estamos emboletados há anos, eu e meu radinho. Não nos desatarrachamos. Acho que é por causa da influência do lar... das marcas que ficaram...
Inesquecíveis também as noites de blecaute na cidade, quando a luz que se tinha era a dos pirilampos que aqui, ali, luziam sobre o capim da rua. Saíamos todos para a porta, o radinho na mesa de centro. Aprendi canções belíssimas com a mamãe, ouvindo a seleção musical de Joel Pereira. Ou por outra, atávamos as redes na sala e sem luz nenhuma, acompanhávamos Emilinha “assim se passaram dez anos”, enquanto encontrávamos as mãos para somarmos força nos embalos para o futuro.

Inesquecível a sorveteria Sibéria às margens do rio Acre... O Wanderley Cardoso, o Raimelo... Mamãe.

sábado, 31 de outubro de 2015

crônica da semana - vacaria

A vacaria da Everdosa
... Foi então que, seguindo um fiozinho de água, Everdosa acima, dei de encontro com a pequena. “Oi”, ela disse, exibindo um sorriso franco entre as covinhas do rosto. “Meu nome é Gabriela, mas pode me chamar de Bri”...
Sabia que até um dia desses tinha uma vacaria aqui na Pedreira? E era a coisa mais normal do mundo a gente passar por ali, e ver as bichinhas ruminando o capim, balançando o rabo pra espantar os piuns, mugindo a esmo; as que tinham sinetas, andando e badalando.
Ficava na esquina da Timbó com a Antonio Everdosa (aqui me dá um estalo de dúvida e desconfiança sobre o correto nome do homenageado nessa rua. Pesquisei pacas e o nome mais parecido que encontrei é grafado de forma diferente, trazendo o ‘r’ para frente. Na pesquisa dei com o  militar português Antônio Correia de Castro Sepúlveda que lutou contra Napoleão durante a invasão da Península Ibérica e foi agraciado com o título de Visconde de Ervedosa, pelo rei D. João VI, quando as coisas se acalmaram. Dá-se então que, pelo que torna e pelo que deixa, o nome da rua teria uma ligeira mudança na pronúncia por causa do translado do ‘r’. Mas vá saber, não encontrei outra fonte que justificasse o nome pelo qual conhecemos a rua que abrigava a vacaria até um dia desses. Quem souber que conte outra ou o certo).
Não morava por ali, não. Era a casa da minha avó que ficava ao pegado da vacaria. Agora, era só eu ter uma folguinha que me abalava pra lá. Dizia pra mamãe que ia ver TV. Vovó tinha uma televisão Empire 9 válvulas novisca comprada no carnê da R. Mendonça em suavíssimas prestações. Mas o de vera mesmo, o que me levava para aquelas bandas era uma pequena aparentada do povo da vacaria. Sempre que parava na vovó, voltava o olhar para a garota. Meu radar a encontrava cuidando de alguma prenda: entrando com um balde cheio de leite na casa, saindo com uma cesta de vidros branquinhos e quentes prontos para a venda, entrando no curral e se demorando um pouco. Ficava um tempo no alpendre da vovó meio apombocado, mundiado pela pequena. Eu não sabia explicar aquele encegueiramento. Hoje, diria ser uma paixão infantil. Mas naquele tempo da vacaria, era um transe sem nome.
A Everdosa (ou Ervedosa?), sempre teve esta configuração atual.Vem larga, plana e baixa, desde a praça Eduardo Angelim lá na antiga Sacramenta, mas quando transpõe a Timbó, estreita-se e eleva-se em leito margeado por barrancos de pedras vermelhas. No tempo da vacaria, aquela área tinha um aspecto rural, molhado e frio. Minha avó deixava eu explorar aqueles morrinhos de pedra. Minha diversão era achar os olhos d’água. Aqui, ali, dava com uns furinhos no chão borbulhando e largando ladeira abaixo um fiozinho de água. Essa água estiradinha ia encontrando com outra, com outra, com outra de outros furinhos e formava um rego que entrava pelo quintal da vovó, contornava o pé de urucu, descia suave regando as touceiras de capim santo, tomava a direção do cajueiro, mas era barrado pela raiz do uxizeiro. Aí formava um laguinho que transbordava para o quintal da vizinha. Cada dia eu encontrava um furinho borbulhando, uma água estiradinha, mais longe. Cheguei até o Acampamento, emendando as aguinhas que molhavam o quintal da vovó.
... Foi seguindo um fiozinho de água, que demos de encontra. E ela sorrindo entre covinhas, falou o nome dela e me provocou: “Heim, Esse-menino, que tu queres por aqui, já? Heim, Esse-menino, como é teu nome?”. E eu, calado, apombocado.


segunda-feira, 26 de outubro de 2015

crônica remix- Antônio josé

Antonio José
O trabalho, a gente sabe, às vezes é um fardo pesado, outras é um desafio amargo. Mas de vez em vez, é um deleite. Um momento prazeroso.
Tenho pra mim que o matiz da nossa alma depende exatamente do tanto de humanidade que a gente pode identificar no mundo do trabalho.
Manifestações elegantes, práticas gentis explodidas do meio do operariado, me enchem de orgulho e esperança. São pequenas revoluções num ambiente que, sabemos todos, é desmesuradamente competitivo.
Mas, graças ao bom pai, no seio do operariado foi me dada a sorte de conhecer gente como Antonio José.
Chegamos juntos aqui em Barcarena. Viemos na turma pioneira que iria pôr a vante um ambicioso projeto industrial. Éramos uns quantos, naquele dia, e gente de todo canto do Brasil. Não nos conhecíamos. Trocávamos uma prosa aqui e outra ali nos ombreando nas curiosidades e surpresas que a viagem a Barcarena nos proporcionava.
No primeiro contato com o projeto, fui balado. O médico me reprovou nos exames iniciais dizendo que eu tinha um não sei quê e ele não podia me aprovar sem que eu tivesse um laudo e piriri, parará. Foi um choque. Vinha de mais de dez anos me virando pelos sertões amazônicos, sempre longe de casa. Aquela era uma chance de trabalhar próximo a Belém, minha querida cidade. A chance de um emprego numa hora que vinha bem a calhar. Mas tinha ali um obstáculo. Fiquei triste, triste, triste, de marré de si.
Concluída aquela etapa, eu tive que voltar para casa.
Quando estava sentado na parada do ônibus, meio desolado, cabisbaixo, Antonio José apareceu, como um anjo caído do céu. Perguntou o que havia acontecido...
Após ouvir a história, ele me pegou pelo braço, me ergueu da calçada e disse que eu não podia amofinar, que eu tinha que ser forte. Tinha que acreditar. “Tu vais ver: o especialista vai te dar o laudo amanhã e vai dar tudo certo”, disse ele, com um animador brilho nos olhos.

Dois dias depois eu já estava integrado ao grupo dos aprovados. Reencontrei Antonio José. Dei-lhe um abraço agradecido e dali em diante cultivei um sincero sentimento de gratidão por aquele companheiro.
O mundo do trabalho nos impõe provações, mas também, nos reserva graças. Revelou a mim, no meio de uma revoada de candidatos a emprego, um homem cheio de humanidade, pleno de sentimentos bons. Fiquei eternamente agradecido ao Antonio José por aquele momento em que, sem sequer me conhecer direito, me acudiu na minha tristeza.
Depois disso, cada um foi pro seu lado. Pelejamos em pólos diferentes do projeto. Mas sempre que eu topava com ele, fazia questão de reiterar o meu apreço e a minha gratidão. Até nos tempos em que eu era um bicho feroz, nos tempos em que eu rosnava de microfone na mão, na portaria da fábrica, nesses tempos, quando encontrava o meu amigo no meio da massa operária, baixava em mim o espírito da candura e sem recatos, trocava o discurso enfezado por uma declaração apaixonada: “ei, Antonio José, gosto muito de ti, tu sabes disso. És um grande companheiro. Tens alma...Alma pura”, eu dizia. E ele recebia as minhas palavras meio sem jeito, humilde...Grandioso.
Antonio José, nos primeiros dias da vida operária, me trouxe uma mensagem de esperança e fé. Outras vezes, no calor da luta sindical, me inspirou a falar as palavras vindas do coração, sem vergonhas ou descrenças.
Antonio José, meu companheiro. Um exemplo de solidariedade, bondade, gentileza.
Meu querido amigo nos deixou.

Agora que Antonio José foi pro céu, tenho certeza que, naquele dia, na parada do ônibus, quando desolado eu estava, fui acolhido sim, por um anjo.

sábado, 24 de outubro de 2015

crônica da semana - curriculo vital.

Curriculo vital
Não sou jornalista, claro fique para que os profissionais da área não me tenham como pirata e para que meus leitores não me tomem como presunçoso. Sou um profissional de outra praça que escreve em jornal em primeira pessoa, busca temas na vida, na imaginação e nas calçadas, o que resulta num tipo de narrativa classificada como crônica.
Bem que gostaria de ser. O jornalismo é uma profissão encantadora.
Acontece que mesmo que quisesse e pudesse, não seria um bom jornalista. Me falta a propriedade que ao jornalista é imprescindível: a isenção. Como disse acolá atrás, meu eu lírico sou eu mesmo, nos meus textos. Me embrenho nas personalidades de narrador e personagem e isso dá aos meus escritos um perfil  evidentemente passional. Estes vieses na composição, esta teimosa subversão de construir frases em próclise; e o apego ao cordial, ao íntimo e ao recôndito, me jogam, providencialmente, a uma boa distância da linguagem denotativa.
O fato de ser um peão trecheiro de mineração que escreve, por analogias extemporâneas, me levaram inevitavelmente a empreitadas de responsa, principalmente no período em que militei no movimento sindical. Não tinha jeito de escapar da missão de secretariar a entidade e os eventos que participávamos. O meu desvelo, e o maior exemplo que tenho de desapego ao acontecimento inabalável e concreto, era na fase de elaboração de atas das reuniões que tínhamos com a patronal. As atas, recomendava o fair play, precisavam ser aprovadas e assinadas pelas partes. Necessidade não há em dizer que isso jamais acontecia. Eu como redator, e puxando desavergonhadamente a brasa para minha sardinha, inviabilizava qualquer acordo. Nossos contendores piravam com as minhas versões pensas, escandalosamente polarizadas da realidade das reuniões. Podia até dar indício de imparcialidade, mas caprichava no recheio com exposições do tipo: “o representante da patronal, confirmando sua inclinação para as práticas mais infaustas de intimidação aos trabalhadores, lançando mão de mecanismos obscuros e de interpretações equivocadas da legislação que protege os direitos da categoria, simplesmente rechaçou a proposta muito coerente e substancialmente lícita do sindicado para que a próxima reunião se realize nas dependências da sede do sindicato.” Tinha a impressão que se o negociador da patronal tivesse em mãos um airoso cipó da goiabeira, me lanhava as costas ali mesmo. E com toda razão, reconheço. O maniqueísmo tornava nossas negociações travadíssimas. Houvesse em mim o pendor jornalístico, atento apenas ao caráter referencial, reduziria esta informação a uma oração de período simplesinho assim “patrões e empregados não entram em acordo sobre o local da próxima reunião”.
Aqui, ali, quando me convidam para as partes, por causa do meu baque de cronista, um currículo sempre me é solicitado para as formalidades. Embora eu me esquive da denominação de jornalista, na falta de outra habilitação afim, por fim, o título é mantido pelo anfitrião. Parecer ser vital um encaixe. Minha valência é que não tenho que redigir atas.


quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Sobre este mês de outubro que vivemos:
vinte pras seis já é dia  claro, claro


sábado, 17 de outubro de 2015

crônica da semana - a santa vai passar

A Santa vai passar
A Santa já desembarcando da Fluvial, um vuco-vuco danado na subida da Presidente Vargas, disputa acirrada por uma sombra, uma ansiedade sem freio. O clima é de adrenalina e de atenta espera. Eis que me chega um cidadão entre incauto e apático, demonstrando ter desembarcado de Marte há poucos instantes; segurando uma sacolinha plástica, com aviamentos da rotina, ar de missão cumprida, focado no único intento de voltar para casa, e me pergunta se não está passando ônibus ali na avenida. Respondi que estava tudo interditado, que era Círio, que aquela multidão estava esperando para ver a Santa passar. Na mesma pisada, e meio inconformado, ele deu meia volta e sumiu, sem devoção, entre os devotos.
Posturas assim, alheias, distantes, são raras em outubro, mas acontecem, apesar dos sinais que Belém fornece. Nas semanas que antecedem o Círio de Nazaré, a cidade ferve de calor e de sentimentos. Temos que nos adaptar à época, nos reinventar nas tramas e tranças. Digo até que a principal virtude exercitada pelo belemense, em tempos de Círio, é a paciência. Principalmente no trânsito. A capacidade de relevar, de tirar por menos situações corriqueiramente conflitantes que ocorrem pelas ruas de Belém, é um dos milagres que a Santa opera. É um tempo que a gente se conforma. Tudo pela Santa. Uma viagenzinha daqui pra’li pode passar de hora e meia. A volta para casa, aquele compromisso irremediável, se coincidir com uma das tantas procissões em homenagem à Santa, pode levar um tempo enorme para se realizar. Como dizemos amiúde: a cidade para. Até a Pedro Miranda, aqui na Pedreira, a única avenida de periferia com três pistas, engarrafou no sábado. Por aí a gente tira o nível de tolerância que o período exige. Ocorre, também que, em momentos capitais, Belém encurta. Só vai até a Doca (por isso o mundiamento do cidadão no sábado de manhã, lá na Presidente Vargas).
Por causa, também, das travas na locomoção, é natural que os promesseiros façam as desobrigas a pé. E não dêem muita bola para o traçado da hora, que as rotas tomem. A fé e os pés sempre levam ao encontro com a Santa.
Caminham desde muito longe. Na sexta-feira a BR-316 estava repleta. Vi romeiros também nos ermos da alça viária. Alguns, caminhando há dias. A estes, pouco importava a trajeto dos ônibus, o conforto dos carros, a carona amiga, as alterações ou rotinas do trânsito. A estes um rumo só havia. Irredutível, irrevogável.
Nos limites da cidade, ocorre da mesma forma. Mesmo de bairros distantes, as pessoas dispensam a condução e partem caminhando para o encontro com a Santa. É parte da promessa, parte do sacrifício, o caminhar concentrado e reverente. Antes do nascer do sol um serpenteio fervilhante de caminheiros remodela a cidade.
Trânsito interrompido. Rumo à Doca, o cidadão carregando a sacolinha com os víveres costumeiros da hora. A volta para casa sozinho, ausente, insensível ao sábado iluminado. 
Meu coração bate forte, o foguetório avisa, a multidão em movimentos decididos procurando o melhor lugar. Emoção e devoção. A Santa vai passar.


domingo, 11 de outubro de 2015

crônica da semana - encontro marcado

Encontro marcado
O foguetório anuncia a Romaria Fluvial se adiantando lá na baía. Trânsito engarrafado. O som agora está mais distante. Varamos na José Malcher. Vou perder a descida da Santa, profetizo esboçando um desespero indisfarçável. Sinal vermelho. Me bato com umas contas rápidas. Recomponho em retalhos assimétricos as fórmulas da Física. Velocidade, o estirão a ser percorrido, tempo. Atrito. Onze e pouquinho. Faço uma simulação da maré. Se estiver na vazante ainda dá tempo. A corveta vai encontrar resistência da corrente lá na desembocadura do Guamá. Éraste, em compensação quando embicar para a escadinha, vem que vem somando vetores, reconsidero. Pensando assim, botando fé na Física, não vai dar tempo. Decido. Umbora, gente, chamo a mulher, os meninos e saio em desabalada carreira pelas calçadas de lióz da antiga estrada de São Jerônimo. Nem dei que estava com uma sandália de passeio e que ela, de vez em quando fugia do meu pé, indo dar lá longe e me atrasando mais ainda...
O grande momento, aquele instante em que percebo melhor a devoção é exatamente a chegada da Romaria Fluvial lá na escadinha. Ali somos louvores indizíveis, emoções libertas, sintaxes fervorosas de outubro. A graça se faz em fartos cachos de manga, em sombras acolhedoras e brisas confortantes, em lágrimas doces e vozes agradecendo, em olhares de contemplação e preces. Na subida da escadinha, até o estrondoso rumor das motos é tido como se fosse delicada bênção.
Só que eu ainda estava na subida da José Malcher catando a sandália aqui e acolá, na carreira. Procurava entender a situação. O cortejo adiantou ou nós é que demoramos pra sair de casa? Estava tudo tão combinadinho. Ofegante, não desistia do encontro. Minha mulher e meus meninos, perdidos da vista, lá atrás. Tive um forte pressentimento. Chegou!
Logo adiante do palacete Bolonha, meu joelho começou a doer. Uma herança do glorioso Internacional da Mauriti.
Apesar da sandália e da dorzinha chata no joelho, cruzei a Praça da República como um bólido (diriam os narradores de futebol, aos microfones das difusoras de rádio, fosse o caso, a minha solitária peleja).
Mas foi eu bater o pé na Presidente Vargas, e a Santa passou. A providência desacelerou o cortejo. A Santinha parou na minha frente, parece para me ralhar: “mas tu, heim, pequeno, quase, quase”. Reverente, aceitei o puxão de orelha e fiz o mesmo dos últimos encontros. Ergui as mãos em direção a Santa e agradeci. Poderia pedir. De mil coisas, preciso. Mas não, o que me ocorre toda vez que nos encontramos, é apenas agradecer. Pelos meus meninos, pela minha companheira, pela minha família, pela sintaxe de outubro. Agradeço à doce Virgem Maria pela esperança que ela deposita em minhas mãos a cada Círio.

A Santa passou. Os meus meninos, minha mulher apareceram e me pegaram a chorar um choro de felicidade. Tomamos as mãos uns dos outros e descemos para a escadinha fazendo combinas e amarrando compromissos de, para o ano, não nos atrasarmos de jeito e maneira, para este abençoado encontro.

sábado, 3 de outubro de 2015

crônica da semana - superlua

A lua acima do cocuruto
Uma belezura o espetáculo da lua de sangue no domingo próximo passado. Uma teba d’uma lua grandona, o eclipse, a cor inusitada, a beleza e o silêncio da penumbra por horas: um feixe de atrações pra lá de interessantes no céu acontecendo num só tempo. Mas, em matéria de bonitezas e luaus, eu sou pretensioso. Queria mais.
A superlua, foi amplamente divulgado, é um momento em que a lua está mais perto da Terra e por isso, exibe-se 14% maior e 30% mais brilhante que as, já belas, aparições normais. Por realizar uma trajetória em forma de elipse (algo parecida com a forma de um ovo), ao completar uma volta em torno da terra, em parte do caminho ela alcançará a maior distância e já noutra, ficará bem pertinho. Este lá e cá da lua acontece todo mês. Nem sempre, porém, a gente percebe a aproximação (e muito menos o distanciamento). É que o mais frequente é a lua estar pertinho, mas meio escondidinha numa fase que chama pouca atenção como a Crescente, a Minguante, a Nova. Nesses casos, tá ali poderosa, mas a gente nem malda. Nas raras vezes que coincide a vizinhança da lua com a fase Cheia, aí, sim, é bater e ver. É um absurdo de linda. Um espetáculo grandioso, prazeroso em todos os sentidos. Provoca sensações e arrepios nos poetas, curiosidade nos passantes, inquietações nos céticos, convencimentos nos eruditos.
Mais raro ainda é este esplendor todo ser ‘desconstruído’ por um eclipse. Aí é de balangar o coração.
O eclipse, sabemos pela definição, é a ocultação de um astro por outro. Ocorre quando, em pleno fulgor da lua Cheia, a Terra atravessa o caminho e impede que o satélite seja iluminado pelo sol. A sombra da Terra é projetada para a lua e ela vai sumindo, desaparecendo. Até ficar só o uma impressão, uma lembrança. Um efeito que impressiona nessa conjunção é a cor avermelhada que toma conta de superfície da lua. Um caprichoso detalhe da natureza, que ficou conhecido como lua de Sangue.
Tudo isso a gente viu no domingo e foi uma maravilha. Arte do céu que fica na memória, no coração da gente daquela forma mais aprazível, mais confortável, bem quista, querida, por um longo tempo.
Mas, em matéria de bonitezas e luaus, eu sou pretensioso. Queria mais.
O eclipse iniciou quando a lua já estava quase no meio do céu. Na posição em que estava, aquela sensação de gigantismo perde muito da intensidade. Quando caminha acima do nosso cocuruto rumo ao meridiano seja a maior das luas ou a mais gitita, ela se apequena, não tem jeito.
Todo este pacote de talentos lunares, com suas sombras e cores, poderia acontecer quando a lua estivesse nascendo no horizonte. Ali a escala e as ilusões da ótica reafirmariam o supertamanho do nosso querido satélite e a sombra da terra, imagino, seria algo entre o fascinante e o assustador.

Reconheço que para um evento que ocorre a intervalos de tempo longuíssimos, aspirá-lo assustador e fascinante, é querer demais. Mas seria uma experiência inesquecível além do que, a gente não ficaria com o pescoço dolorido e durinho da silva, de tanto se vergar para mirar acima do cocuruto.

sábado, 26 de setembro de 2015

crônica da semana - Fulana

Fulana
Estava reservando o momento, o instante certo para revelar um segredo. Uma confissão que eu faria e que tem a ver com a minha passagem pelo inquebrantável, o insuperável, o insuplantável, o infatigável; o combatido, porém jamais vencido; o ilustrado e glorioso Internacional da Mauriti.
Faria.
Mas não vou falar hoje sobre o time da minha rua, ainda quando eu era moleque bom de bola. Fica pra próxima esta prosa descortinada e suave, porque o papo da hora é velado e áspero e se esparrama sobre o zunzunzum criado em torno da regulamentação da PEC das domésticas.
E o zunido vem das histórias que minha irmã conta quando lidava com esta prenda nas casas da grã-finagem de Ipanema, Copacabana. Usava uniforme e tudo. Iguaizinhos àqueles que as empregadas domésticas usam nas novelas, com aquele folho branco no peito e aquela tiara engomada na cabeça. Minha irmã...Uma heroína. Filha somente do meu pai. Veio com a gente do Acre. Mamãe criou todo mundo junto. Ganhou o rumo do Rio de Janeiro com uma filha de meses no colo. Foi tentar a sorte. Deu de confronte com a grã-finagem. Tem muita história.
As empregadas domésticas agora têm direito, entre outros benefícios, ao FGTS e ao seguro-desemprego.
Assim como a Regina Casé, no filme “Que hora ela volta?”, que vai tentar o Oscar no ano que vem, minha irmã também levou a filha para morar na casa dos patrões.Tantas histórias me contou.
Em época de avanços nesta relação doméstica de trabalho, algumas lembranças vis voltam a arder sobre a pele da gente.
O íntimo de dominação, de autoridade, de comando e do jugo desmedido fez da elite branca brasileira uma das mais cruéis e preguiçosas das sociedades coloniais. Era sinal de status exibir-se em ócio confortável atendido em tudo em quanto por um grande número de escravos. Senhoras da realeza, dondocas da nobreza, castos membros do clero tinham serviçais até para limpar-lhes as partes após as naturais desobrigas fisiológicas.
Este comportamento descansado perpassou gerações. É claro, sofreu modificações impostas pelas pressões civilizatórias, mas não perdeu a propriedade folgazã, mandona, assoberbada. Apenas fez um rearranjo das humilhações.
A madama sentada estava e de lá não saía para nada. “Fulana, traz água”; ‘Fulana, serve o café”; “Fulana, limpa aqui que acabei derramando o suco na mesa”... E sempre ordena, e sempre impõe. “Esquenta teu jantar e vai comer na cozinha. Frita um ovo pra inteirar”. Já não lhe tem as partes íntimas asseadas por mãos de mucamas sem nome (Fulana), mas...mas só faltava essa.
Oxalá a PEC das domésticas moralize as relações e ratifique esta convivência no lar como uma relação de trabalho onde se realizem com severidade o respeito, as obrigações, os direitos.
Minha irmã me conta cada história da grã-finagem, mas a melhor delas é ter levado a filha a ter duas faculdades, é ter feito dos sofrimentos razões para lutas ferrenhas e gloriosas vitórias.

Eu deveria contar um segredo sobre o glorioso Internacional da Mauriti. Mas não, hoje não. Hoje estou atento ao zunzunzum das consciências coletivas.

sábado, 19 de setembro de 2015

crônica da semana -vira porco

Seu Vira-porco e a mata da Primeira légua
Eu tinha medo que me pelava de passar perto daquela mata que se estende além da Doutor Freitas. Mamãe dizia que ali era terra de encantados e que de tudo quanto era visagem, assombração e espírito havia por aquelas bandas. Jurava de pé junto que o manto verde que se erguia à beira da pista era a porta de entrada do desconhecido e do inacreditável. Éraste, chega só de falar me dá um arrepio!
(A área que fica à margem da Dr. Freitas demarca o primeiro limite urbano estabelecido para Belém, ainda no tempo das Sesmarias. Traçado em arco orientado por um raio de 6.600 metros, com centro no Forte do Castelo, compõe a extensão de uma légua. Ainda hoje, um marco de concreto sinalizando o máximo urbano da cidade está cravado ali, na Bandeira Branca; e com nome e sobrenome de Marco da Primeira Légua Patrimonial, é a origem do topônimo de um bairro residencial de Belém. Durante muito tempo, o que havia adiante da primeira légua era a mata densa, o rumo de Bragança e os medos coletivos).
A floresta se estendia desde Val de Cans até a margem do Guamá, lá pras bandas do Agronômico. Hoje, depois das pressões urbanas, apresenta rasgos salteados, desmatados, ocupados e redesenhados em novos bairros.
No final da Pedro Miranda ainda há o manto verde.
Só que de primeiro, não era assim como hoje. Antigamente os medos eram produzidos por menções e fantasias partilhadas. A molecada amofinava antes das dez da noite, só de pensar nos escurinhos do final da Pedro Miranda, e nos perigos que eles abrigavam.
Eu era menino impressionado, criança ainda, crente e ciente das criações do imaginário. Certa vez, tive que curar um golpe deste tamanho que eu tinha arrumado no pé quando pisei num caco de vidro, na bola que rolava em um aterro de caroço de açaí que tinha bem defronte de casa. Irmã Clara, que de todos cuidava, me recebia cedinho, no Centro Auxilium. Fazia o curativo, dava uma injeção pra não infeccionar aquela ferida beiçuda, e um ralho pela minha peraltice.
Aconteceu de uma chuva fina que tilintou ritmada durante a noite toda no telhado de casa, varar o dia. Tive que me abalar naquele chuvisco, me equilibrando nas pontes que remedavam um caminho para fazer o curativo. Manhã gris. Ninguém na rua. No que chego à esquina, vejo um vulto saindo da mata. Corri os olhos ao largo e uma viva alma que me valesse, vi pela rua. Firmei o passo em direção ao colégio das irmãs, e nesse momento notei um porco deste tamanhão se aproximando. Imenso, de movimentos lerdos, mas decididos. Veio em minha direção e estava em tempo de me pegar.
Minha mãe maldava de um vizinho solitário que virava porco. Havia história dele sumindo na mata e, coincidentemente, logo depois do sumiço, as pessoas ouviam um fuçado para além das matas da primeira légua.
Corri, corri, quando cheguei, me joguei nos braços da irmã Clara, em choque. Contei a história, ela juntou as irmãs, os funcionários e desceram para a rua. Lugar mais limpo. Ninguém. Nem porco, nem gente. Só a chuva fina, o eco e os causos.


terça-feira, 15 de setembro de 2015

crônica remix - cem dias

Navegar é Preciso
Uma aventura inconseqüente. Esta é a primeira impressão que temos ao nos depararmos com os relatos de Amyr KlinK sobre a sua louca travessia do Atlântico.
Mas valeu a pena?
E o navegador introduz a sua saga com os versos de Fernando Pessoa na edição do livro  Cem dias entre o céu e o mar (Companhia de bolso, 2005): “tudo vale a pena se a alma não é pequena”.
Em 10 de julho de 1984 um brasileiro incompreendido zarpava sozinho do litoral africano em direção à costa brasileira, pilotando um pequeno barco a remo.
Os momentos dessa viagem, mesmo aquelas coincidências que se anteciparam a partida, até os pormenores operacionais em meio à grandiosa massa de água atlântica são descritos com muita propriedade e concisão no livro, pelo navegador solitário.
O suspense, a emoção, o vislumbre de um mundo de água, para nós distante. Os fenômenos naturais anticiclônicos do Atlântico sul, a explicação para a descoberta (sem muito esforço, vá lá), do Brasil; a história regada pelo cientificismo náutico inaugurado pelos portugueses, são ingredientes que atraem e nos prendem a atenção numa leitura prazerosa. Nos levam sem medos ao mar sem fim de Diogo Cão e Fernando Pessoa.  
Enfim, quando aportou na praia da Espera, litoral baiano, Amyr havia cumprido uma aventura impensada por qualquer um de nós pobres mortais. Havia desafiado a solidão e encontrado motivos dos mais simples, no meio do mar, para perseverar.
Os relatos de Amyr, além de esclarecedores sobre a dinâmica das rotas oceânicas são uma vitamina para a alma. São aditivos para superar as nossas fraquezas tão rotineiras. Afinal de contas no nosso dia-a-dia não nos deparamos ocasionalmente com nenhuma baleia de 20 metros ou com uma vuca de tubarões nada amistosos. No nosso vaivém diário não nos vemos emborcados por uma onda salgada de 8 metros. Amyr tirou de letra estas situações acreditando em si mesmo, em seus estudos e em sua capacidade. Mas acima de tudo na sua sanidade física e mental. Puro e legítimo controle de si. Isso o livro nos ensina.
Já encostando na praia de Salvador Amyr foi abordado por um barco de pescadores. Perguntaram como foi a pescaria. Ele disse que não havia pescado nada. E de onde vinha? completaram os pescadores. Da África, respondeu Amyr. E esta praia é muito longe? Inquietaram-se os homens do mar. Um pouquinho. Um pouquinho longe, devolveu Amyr, com incontida alegria por avistar ao largo, os primeiros coqueiros em terra firme.
Cem dias entre o céu e o mar é uma odisséia moderna cheia de surpresas e perigos suportáveis apenas por heróis. Amyr cruzou da África para o Brasil num pequeno barco utilizando as correntes de deriva, muita técnica, mas acima de tudo valendo-se da fé num credo antigo que reza que ‘navegar é preciso’.

(E por falar nisso, vou aqui deixar uma pulga a incomodar as orelhas mais curiosas: a frase “navegar é preciso...” é creditada, pelos mais novos ou mesmo por aqueles tropicalistas de fim-de-semana-na-casa-do-tio-ouvindo-aqueles-discos-antigos ao baiano Caetano Veloso, por causa, é claro, da canção ‘Os argonautas’. Já os mais zelosos reconhecem a frase como um raio humanista deflagrado pelo eletrizado espírito poético de Fernando Pessoa. Só que, lendo aqui e ali, pesquisando acolá, dei com uma origem um tanto Antiga para esta frase tão atual. Diz-se que ela vem lá de Roma. Foi proferida pelo general Pompeu em uma de suas batalhas pela pax no império. Eu fico com o Fernando pessoa porque sou poeta-parcial, mas enfim, se ‘navegar é preciso’ e ‘viver não é preciso’, a pulga incomoda).

sábado, 12 de setembro de 2015

crônica da semana - a travessia da baía

A travessia da baía e uns dinheiros de bubuia
Eu tenho uma rede. Aquela de esticar o espinhaço no feriadão e a outra, aquela que chamo de parceirada, conhecida também por network.
Nesta minha lida de escrever e coisa e tal, meu network tem cortado e arado. Uma articulação em torno do meu trabalho, sempre há, e me deixa lisonjeado, bestão mesmo de tanta consideração. Não escapo, porém, a tropeções, porque digo sempre: um pobre é a representação da antítese. É o embate de sortes, a contradição de intentos.Tem uma rede? Tem. Mas às vezes, despenca dela. Sempre tem uma adversativa na vida do pobre.
Certa vez, minha rede me levou a Abaetetuba. Campus da Federal. Pessoal de Letras fazendo uma Semana Literária. Fui convidado para... não sei bem para quê fui convidado, mas aproveitando meus quinze minutos de fama fui disposto a tudo. Fazer uns passinhos de dança, jogar malabares, bater uma viola, falar sobre meu processo de criação, discorrer sobre minha maior premiação, o conto “A filha do holandês”, conferida pela própria Federal.
Era um evento acadêmico. Doutor a dar na canela. Os capas da teoria literária estavam lá. E eu, ó, fui me encolhendo, me abeirando, me acudindo à sombra protetora d’A Filha do holandês. Minha participação não tinha horário definido e eu fiquei lá e cá. Aproveitei e tentei aprender um pouquinho dos termos e causas do fazer literário nas oficinas. A estrela do evento era o professor Silvio Holanda, agudíssimo em dissecar a obra de João Guimarães Rosa. Um passarinho me soprou que depois das exposições do professor, seria minha vez. Quanta responsa! Como leitor apaixonado por “Grande Sertão...”, participei de todas as mesas comandadas por Silvio Holanda. O tempo passou, o horário dele montou no meu, a garotada interessada (e eu também). O previsível aconteceu. Balaram minha apresentação. Havia um último horário, uma última mesa a se formar, mas deram preferência a um grupo de linguistas que deveria voltar na mesma pisada para Belém. A mim, me restou a humilde aquiescência e uma pontinha de indignação. Afinal me tiraram da minha folga, do convívio com minha família, de uma ou outra obrigação social, me envolveram numa programação acadêmica da qual me sentia anos luz de distância no entendimento e na percepção, me deixaram bestando sob a luz das primeiras estrelas com minha “...Filha do Holandês” no colo, sem nem saber como voltar de Abaeté para casa.
Acabei ficando para a noite cultural e depois de umas quantas caipirinhas, tomei coragem e abri meu coração para a coordenação do evento. Estava desprevenido de grana para bancar a noite ali. Eles se compadeceram. Arrumaram hotel, um de cumê e ainda me proveram com um cachê de consolação pela minha participação na... caipirinha literária.

Na manhã seguinte, embarquei na primeira viagem para Belém. E constatei: o pobre (ou um pobre cronista), é sempre subjugado às adversativas. Ganha um dinheirinho de cachê por conta de uns talentos etílicos que tem? Ganha. Mas na travessia da baía, meu barco foi assaltado e os ladrões levaram de bubuia minha grana.

sábado, 5 de setembro de 2015

crônica da semana - cardinais

Bobas curiosidades (ou flexão dos cardinais)
Eu ainda não contei até três bilhões, quinhentos e vinte e nove milhões, doze mil, cento e quatro unidades simples, por isso não posso arriscar se acerto no cravo ou na ferradura. Então vamos assim, de pouquinho em pouquinho...
A gente sai por ali salteando entradas nos empórios do Veropa e arremata um candeeiro, uma bacia. Um pente de plástico azulzinho, uma grosa de grampos. Um espelhinho com desenhos na moldura, uma xícara de florzinha com os dizeres “à querida mamãe”. Um saquinho de canforina, uma peça de fazenda estampada. Um balde de zinco pequeno, uma garrafa térmica barata. Um envelope de Boa Noite para espantar carapanãs, uma rosquinha sobressalente para a máquina de moer carne. Atravessa para a feira.
Compra um saco reforçado no saqueiro, contrata um carregador com carrinho de mão no jeito, e desbrava os corredores ziguezagueando entre as barracas, buscando os preços mais em conta. E vai recolhendo: um mamão bem macio, duas pencas de banana. Um punhado de pimentas amarelinhas, duas dúzias de ovos. Um quilo de goma pra fazer tapioca, duas medidas apuradas de tucupi. Um maço de cheiro verde, duas latas de muruci bem medidas. Um paneiro de caranguejo, duas sacas de farinha. Encosta numa barraquinha de lanche. Um suco de cupuaçu, um de taperebá, duas coxinhas, uma garrafinha d’água, duas mentas.
Dá pra gente tirar por esta prosa no Veropa, que para sinalizar a quantidade de produtos comprados, pontuei o texto com os números cardinais um e dois e as variações que acho que atendem ao feminino: uma, duas.
Agora faz de conta que nas minhas compras, adquiri mais de dois produtos. Minha contagem ficaria assim:
Três pentes... dezenove grosas de grampos... trinta e cinco espelhinhos...Um milhão de xícaras...
Aí na xícara já está bom. Já dá pra ilustrar como é a natureza escalar da nossa língua e como este perfil de notações se define em gênero quase que exclusivamente masculino.
Não dizemos dezenovas grosas de grampos e nem uma milhona de xícaras, nem duas milhões de xícaras. A variação na notação numérica não ultrapassa as duas unidades. Um pente, duas xícaras. A partir do número dois, a contagem numérica não exibe mais o sentimento, a impressão feminina. Não se atém a gênero e se se atém, atêm-se, mesmo que sutilmente, ao gênero masculino ou a imparcialidade comum de dois gêneros: treze alunos, treze alunas.
Lá pela casa da centena a variação é novamente percebida. Duzentas pessoas, quinhentas vezes, novecentas ideias. Mas depois das centenas...
Hummm...Não sei.
Não sei se acerto no cravo ou na ferradura, não contei elementos de gêneros diferentes até a distância de três bilhões, quinhentos e vinte e nove milhões, doze mil, cento e quatro unidades simples. Se alguém quiser tentar, me ajude, por favor, e me volte com o resultado, tá. Sou dado a essas bobas curiosidades.

Detalhe: a resposta vai demorar. Estudos indicam que, contando de um em um, a gente chegaria na casa dos três bilhões em aproximadamente 100 anos. Tenho a impressão que não vou alcançar a resposta.

sábado, 29 de agosto de 2015

crônica da semana:discorrente vizinho

Discorrente
Por isso que não presta a gente se entregar com beira aos ruídos e pregações. Não tenho bronca de religião nenhuma, prezo a fé, acho a crença um elixir de esperança, dou o maior valor nos ritos, nos mitos. Só me reservo o direto de postar meu pezinho mais atrás nas transcendências e sublimações.
Caminho toda manhã com um parça fiel de uma igreja tal. E ele, eloquente, discorrente (nem sei se esta palavra existe, mas pra ele vale), faroleiro (e tricoteiro de doer), ó, só no meu ouvido. Fluido na provação, pleno nas virtudes. Inspirado na doutrina, não se acanha em recitar recomendas e dizeres comuns da livre interpretação das escrituras. Num certo momento cravou um “orai e vigiai”. Até aí tudo bem. Sou ex aluno salesiano,vivi um tempão dentro da igreja, fiz curso de Bíblia com o padre João Maria na Aparecida (que pronunciava Nabico, Nabicodonosor, quando se referia ao rei babilônico), frequentei as comunidades de base, sou meio íntimo dos ditos populares amalgamados a versículos e capítulos sagrados. Saquei que o bom conselho a gente encontra em Mateus, 26 e em Marcos, 14:38, de modos que assenti com a dica imperativa do parça.
Só que ele completou: “orai e vigiai, não estando dentro da casa do vizinho, mas prestando atenção, dando conta e observando”. Epa! Pode parar. Dei reparo no jeito compenetrado, sisudo com que ele fazia o seu sermãozinho. Maior cara dura. Sem nem tremer uma prega da regada do olho. Aquele semblante de sacrista agudizado não me convenceu. Pensei cá comigo “Deus não se mete com essa parada de vizinho não”, aí tem treta, o temente já está catequizando por conta, a partir de inquietações íntimas. Hum..humm. Por isso que não dá pra se entregar com beira, é o que conto, é o que conta a minha fé.
E todo dia, de manhãnzinha é esta cantilena séria, sempre com uma pitadinha de medos apocalípticos e ares de fim de mundo. E eu ali,ó, com o pé mais atrás, na nossa caminhada.
A prosa matinal de evangélica e passional; de uma parte e de outra tem um pouco, mas carrega também a indivisibilidade urbana no cerne da questão. No fim e no termo de tudo está a nossa relação, o nosso embate e a nossa confraternização; o nosso inevitável entrelaçamento, a nossa amálgama, a nossa peleja de amor e ódio com o incauto do nosso vizinho que por esta hora está com a orelha pegando fogo.
E por falar nisso, de vizinho tenho tantas...mas não conto porque não tô aqui para arengar e nem pra atiçar maledicências e malquerências por de cá, por de lá; nem pelo de confronte da porta da rua, nem pelos fundos dos chagões ou quintais.
Creio que na pregação diária nossa comunidade se aproxima dos primeiros cristãos quando dividimos aquela xicrinha de açúcar na hora exata que ela à mesa falta ou quando um bom homem tira o carro da garagem na alta madrugada para acudir alguém à urgência e emergência salvadora. Estas são as imagens que me ficaram da vizinhança e, estas lembranças, sim, me fazem orar e vigiar sem ter que, necessariamente, prestar atenção na vida ou estar dentro da casa do próximo.