Freud,
Dona Elvira e a vila Três Irmãos
Dona Deusa distribuía O Legionário no domingo e sempre
cozinhava com a porta aberta, cantando um hinário fervoroso. Era um cumê, sem
dúvida abençoado aquele de dona Deusa. Val não cozinhava, pegava marmita do
restaurante do Goiano, todo santo dia. Todos tiravam o limo do jirau no sábado
e geravam uma água esverdeada para a valinha da rua.
Bereco trabalhava na funerária. Tinha olheiras. Morava
só. De vez em quando sumia, parece que morria junto com aqueles que enterrava.
Depois, vivia de novo, com aqueles olhos de zumbi. Torto era tarado. Brechava
todo mundo que ia na sentina fazer suas necessidades. Não se importava com os
odores. Os moleques jogavam petecas no limpo do terreiro que separava as duas
fileiras de casas. Triângulo, Corre-atrás, barroca, mas era proibido jogar com
baluluscas de aço. Nequinho não jogava com os outros. Só apreciava. Não tinha
ânimo. Era amarelinho, mãos pequeninas, beiços secos, barrigão. Diziam, as más
línguas, que tinha muita lombriga. Tomava Ascaridil todo mês, mas não se via
alvoroço de bicha saindo. Tinha era uma doença feia que ninguém sabia o que
era. Mais tarde, já grandinho, enfraquecido, foi pro Barros Barreto, se tratou,
tomou muito soro e ficou até coradinho. Estudou, se formou na Escola de
Agronomia e hoje é um entusiasta de minhocários. Veridiana falava dormindo. Nos
silêncios da madrugada, reclamava da vida, amaldiçoava o marido porque o peste
a tinha trocado por uma pequena lá do Jurunas. Nem filho fizera nela. Era uma
mulher só. Apaixonada ainda. Dona Irene que era parede-meia com ela, não dormia
que prestasse. Ouvia tudinho que a outra falava e se comovia. Tratava Veridiana
ali, na conchinha da mão, com muito zelo e carinho. Dona Irene sabia o que era
viver sem um homem só seu. Perdera o marido cedo e, para aplacar seus ‘instintos
bestiais’, arrumara um jovem dado à patifaria. O bacana mexia nas coisas dos
outros, vivia de ganhos ilícitos e não parava em casa. A polícia pegava ele,
arrancava as unhas dele, batia de palmatória. Quando chegava na vila, todo
quebrado, a moçada ficava com pena. Dona Irene cuidava, carinhava ele, dava chá
de erva cidreira, mas era só sarar um pouquinho que já estava na bandalheira de
novo. Bete era escandalosa. Gemia de
noite. Todo mundo falava dela, no dia seguinte, quando ela aparecia toda
marcada e com cara de feliz, para lavar os lençóis no quintal. Mas ela, ó, nem
aí. Parece que ainda trazia uns finzinhos de prazer pra tina. Edmir, quando
entrava na vila, todo mundo cochichava. Lá vem o perdido. Dona Elma, que era a
vizinha de ao pegado, espalhou: nunca sabe o lugar das coisas. A mulher dele,
toda noite, segundo dona Elma, advertia “aí não, Ed, aí não”. Seu Venâncio
tinha flatulência. Ruidosa. Espalhafatosa. Viveu com o seu foguetório a
assustar os consortes, até que se mudou para uma casa na Cohab. Foi fazer
barulho lá pra Marambaia.
Zezé tinha os olhos vidrados, comia barro, tinha os
pés rachados e sestros estranhos. Dona Elvira era a tesoura da vila. Ferina.
Dava definição de tudo em quanto. Sabia quem traía, quem era traído, quem devia
o prestação e não pagava, quem afrouxava aquele parafusinho do medidor de luz,
quem não era mais moça, o que estava na mesa das pessoas na hora do almoço,
quem tinha parente preso, quem tinha parente mas não era aceito pela família;
contava os minutos certinhos dos banhos, no banheiro coletivo que ficava ao
lado da retrete e que tinha as frestas das paredes tapadas com plástico preto
molinho que, com qualquer vento, rasgava.
Assim, levando pro lado da interpretação, dora Elvira
era Freudiana. Deduzia que aquele apego desregrado que Nequinho tinha pela mãe,
só podia ser paixão edipiana, tava na cara e na palma da mão. Bete, tinha
certeza, era o alter ego de Edmir (“aí, não, Ed, aí não”). Não se espantou
quando soube que seu Venâncio, lá pelas barras da Cohab, revelou-se Helena.
Algo de masoquista percebia em Veridiana...
Dona Elvira sabia de tudo, mas nem ela, nem ninguém,
nem unzinho curioso que fosse, sabia que fim levou os três irmãos que
inspiraram o nome da vila.