sexta-feira, 29 de março de 2013

crônica da semana - freud


Freud, Dona Elvira e a vila Três Irmãos
Dona Deusa distribuía O Legionário no domingo e sempre cozinhava com a porta aberta, cantando um hinário fervoroso. Era um cumê, sem dúvida abençoado aquele de dona Deusa. Val não cozinhava, pegava marmita do restaurante do Goiano, todo santo dia. Todos tiravam o limo do jirau no sábado e geravam uma água esverdeada para a valinha da rua.
Bereco trabalhava na funerária. Tinha olheiras. Morava só. De vez em quando sumia, parece que morria junto com aqueles que enterrava. Depois, vivia de novo, com aqueles olhos de zumbi. Torto era tarado. Brechava todo mundo que ia na sentina fazer suas necessidades. Não se importava com os odores. Os moleques jogavam petecas no limpo do terreiro que separava as duas fileiras de casas. Triângulo, Corre-atrás, barroca, mas era proibido jogar com baluluscas de aço. Nequinho não jogava com os outros. Só apreciava. Não tinha ânimo. Era amarelinho, mãos pequeninas, beiços secos, barrigão. Diziam, as más línguas, que tinha muita lombriga. Tomava Ascaridil todo mês, mas não se via alvoroço de bicha saindo. Tinha era uma doença feia que ninguém sabia o que era. Mais tarde, já grandinho, enfraquecido, foi pro Barros Barreto, se tratou, tomou muito soro e ficou até coradinho. Estudou, se formou na Escola de Agronomia e hoje é um entusiasta de minhocários. Veridiana falava dormindo. Nos silêncios da madrugada, reclamava da vida, amaldiçoava o marido porque o peste a tinha trocado por uma pequena lá do Jurunas. Nem filho fizera nela. Era uma mulher só. Apaixonada ainda. Dona Irene que era parede-meia com ela, não dormia que prestasse. Ouvia tudinho que a outra falava e se comovia. Tratava Veridiana ali, na conchinha da mão, com muito zelo e carinho. Dona Irene sabia o que era viver sem um homem só seu. Perdera o marido cedo e, para aplacar seus ‘instintos bestiais’, arrumara um jovem dado à patifaria. O bacana mexia nas coisas dos outros, vivia de ganhos ilícitos e não parava em casa. A polícia pegava ele, arrancava as unhas dele, batia de palmatória. Quando chegava na vila, todo quebrado, a moçada ficava com pena. Dona Irene cuidava, carinhava ele, dava chá de erva cidreira, mas era só sarar um pouquinho que já estava na bandalheira de novo.  Bete era escandalosa. Gemia de noite. Todo mundo falava dela, no dia seguinte, quando ela aparecia toda marcada e com cara de feliz, para lavar os lençóis no quintal. Mas ela, ó, nem aí. Parece que ainda trazia uns finzinhos de prazer pra tina. Edmir, quando entrava na vila, todo mundo cochichava. Lá vem o perdido. Dona Elma, que era a vizinha de ao pegado, espalhou: nunca sabe o lugar das coisas. A mulher dele, toda noite, segundo dona Elma, advertia “aí não, Ed, aí não”. Seu Venâncio tinha flatulência. Ruidosa. Espalhafatosa. Viveu com o seu foguetório a assustar os consortes, até que se mudou para uma casa na Cohab. Foi fazer barulho lá pra Marambaia.
Zezé tinha os olhos vidrados, comia barro, tinha os pés rachados e sestros estranhos. Dona Elvira era a tesoura da vila. Ferina. Dava definição de tudo em quanto. Sabia quem traía, quem era traído, quem devia o prestação e não pagava, quem afrouxava aquele parafusinho do medidor de luz, quem não era mais moça, o que estava na mesa das pessoas na hora do almoço, quem tinha parente preso, quem tinha parente mas não era aceito pela família; contava os minutos certinhos dos banhos, no banheiro coletivo que ficava ao lado da retrete e que tinha as frestas das paredes tapadas com plástico preto molinho que, com qualquer vento, rasgava.
Assim, levando pro lado da interpretação, dora Elvira era Freudiana. Deduzia que aquele apego desregrado que Nequinho tinha pela mãe, só podia ser paixão edipiana, tava na cara e na palma da mão. Bete, tinha certeza, era o alter ego de Edmir (“aí, não, Ed, aí não”). Não se espantou quando soube que seu Venâncio, lá pelas barras da Cohab, revelou-se Helena. Algo de masoquista percebia em Veridiana...
Dona Elvira sabia de tudo, mas nem ela, nem ninguém, nem unzinho curioso que fosse, sabia que fim levou os três irmãos que inspiraram o nome da vila.

sexta-feira, 22 de março de 2013

crônica da semana - a beleza da rosa


A beleza da rosa
Semana movimentada essa. Equinócio, Dia Mundial da Água, uma fortíssima mobilização contra a intolerância religiosa. Fatos. Retratos da realidade. A vida de palmo em cima. Mas nem sempre percebida.
Assunto perigoso este de religião. Vespeiro. Mas bem a calhar com a água (que tal qual a fé, é argumento de arengas, gozos e sofrimentos) e com a passagem do Sol pela Linha do Equador.
A água surgiu nos primórdios da existência da Terra, tão logo a concentração de oxigênio e hidrogênio permitiu a amizade, a intimidade entre estes dois elementos químicos. A diferença de temperatura fez o resto. A água é resultado da diferença. Da contradição. Da desconstrução do que é estável, leve, lívido. Uma enfartada massa de ar quente e uma árida massa de ar frio quando se encontram, produzem o nosso líquido precioso. Reiteram o ciclo benfazejo que nos irriga o coração e a mente.
Nosso cocuruto demora um pouco para apreender a importância desse encontro quente/frio. Ou não quer mesmo entender. O cuidado com a água ainda é um sonho que sonhamos sem conseguir bons resultados. Corremos o risco de ficar sem. Aqui mesmo na beira do Amazonas, temos, mas não temos. A água é cara, apesar da trombada diária das nuvens despejarem um mundo líquido sobre nós. A água nos custa e nos falta. A água escorre sobre a Terra há uns quantos milhões de milhões de anos, se renovando num ciclo meticuloso, criterioso e frágil. É uma realidade, uma verdade abonada pela natureza. O homem, no entanto, não percebe que representa um risco para a recriação contínua deste precioso bem. Destrói margens, derruba florestas, contamina nascentes, aterra leitos de igarapés, joga tudo quanto é porcariada dentro dos rios. O Dia Mundial da Água, comemorado ontem, traz programações, reflexões, pesquisas, ações, exemplos e certificações sobre o nosso comportamento diante de nossas reservas de água doce. É uma oportunidade para que a gente, diante de uma realidade, a perceba com candura, humildade e racionalidade.
O Equinócio não rouba espaço das nossas prosas diárias e não é assunto sacralizado em mesa de bar. Ocorre duas vezes por ano, é uma realidade pouco percebida, mas fundamental para a dinâmica do nosso planeta. Ele expressa o significado exato da relação que tem a Terra com o Sol. É um momento quase humano do nosso planeta. Socialista (divide luz e calor de forma bem divididinha entre todas as terras e os povos), o Equinócio é um aprumo altruísta do planeta que torna iguais bárbaros do sul e escandinavos de tez aporcelanada.
Assim como o dia e a noite, como a lua cheia, como o ‘tiquetaquear’ ritmado do relógio, o equinócio é indicador de tempo. É esta passagem do Sol cruzando a Linha do Equador que define as estações do ano, determina o calor, o aquecimento que nos cabe em cada hemisfério. Nos traz a chuva, as flores, jambo, manga, o abafado de dias estirados, a saudade de um amor antigo...Não há mistérios nem misticismos nesta passagem. Agora em março, há as marés grandes nos estuários e só. Nada que estimule ou aumente nosso estresse. O Equinócio acontece para ratificar a nossa fé (como as religiões), para corroborar a doutrina de cada ente, para nos impulsionar a fazer um juízo sobre o tempo (temer, respeitar, odiar, desdenhar, porfiar...) e jamais ser indiferente a esta grandeza física inclemente que nos espreita. Que nos alerta: “tic-tac, tic-tac, tempo-passa, tempo-passa, tic-tac, tempo-passa”. É um evento lírico-astronômico, que ocorre para nos recordar a beleza de uma rosa e...amores gentis em dias de chuvas intermináveis a um passo da Linha do Equador.

* com enxertos de Carol Brito

sexta-feira, 15 de março de 2013

crônica da semana - bateria


A bateria caindo pelo corredor
Ela ficava ali, perigosamente posicionada na fronteira da cozinha com o corredor que ligava os quatro cantos da casa. Normalmente um lugar pouco iluminado, discreto, inócuo e silencioso (a não ser nos momentos em que alguém se enganchava nela e arrastava tudo quanto era de panela até um certo tanto de lá pra cá ou de cá pra lá, da cozinha).
A bateria era uma incompreendida. Um utensílio invisível, mas audível. Quando era excitada, causava alvoroço.
Fazia parte da cozinha. Era uma peça metálica vertical, armada em quatro vértices. Tinha uma altura de aproximadamente metro e meio. Quatro hastes volteadas por uns aramados rijos dispostos a intervalos regulares, que davam sustentação e a fixavam ao piso. Em cada uma das hastes, ganchos atracados de cima a baixo. Se a gente fosse comparar bacana, seria uma peça que teria a forma escritinha da Torre Eifell, sem a suntuosidade daquela, logicamente. Um deselegante monumento de metal leve fazendo número na cozinha.
A bateria era usada para guardar panelas. Havia, na cozinha, o armário, o petisqueiro, o bufê, a cristaleira, todos com funções definidas, mas que abrigavam também as panelas. A bateria, ao que me parece, era usada meio que transitoriamente, por um tempo apenas, antes do guardado perene nos móveis mais clássicos. Via umas peças penduradas, depois não as via mais. Sei que panela de pressão e o ralador eram presenças constantes. A panela, certamente pelo tamanho, agora o ralador, sei não, talvez pelo desprestígio.
A graça e o real sentido da presença da bateria na cozinha não era então, haver-se de zelos pelas panelas. Era exatamente quando acontecia o contrário, que a bateria se notabilizava, ganhava ânimos, atraía atenções. Era batata, pelo menos uma vez por dia a casa se via em alerta forçado porque alguém (ou o cachorro, ou o gato) esbarrava, tropeçava, se enganchava e trazia abaixo a bateria e tudo o quanto que por lá havia. E era uma barulhada de panela despencando. Um barulho prolongado, em estágios. De cima pra baixo. Ralador, crivo, papeirinho, bule, frigideiras, caçarolas, panela do arroz, panela de pressão. Reinava um verdadeiro estardalhaço quando alguém derrubava a bateria. E eu até acho que o nome mais certo para definir o evento nem é estardalhaço ou barulhada. Barulheira leva mais jeito. Dá uma idéia melhor daquela zoada interminável, sequente, tom sobre tom de panela tocando o chão. Tudo ia ao chão. E por último, o aramado que tinha jeito e pose de torre Eiffel.
Pois é. Essa confusão ruidosa da bateria caindo pelo corredor me veio à lembrança dia desses enquanto ouvia a versão original da música italiana Volare.
Experimenta aí. Pesca na internet, põe o disco na vitrola. “Penso cheunsognocosì non ritornimaipiù/mi dipingevolemani e lafacciadiblu/poi d'improvvisovenivodal vento rapito/e incominciavo a volarenelcielo infinito”. Este trecho da música nos traz um amanhecer calmo, com a mãe na cozinha, janela dando para o quintal que tem açaizeiro, rego de água escorrendo, pato chapinhando, pinto ciscando, um quarador... Ela tira a louça do café, com cuidado pra não atrapalhar o canto do passarinho que se exibe rés à cumeeira da casa. Aí chega no refrão: “Volare oh, oh/cantare oh, oh/nelbludipintodiblu/felicedistarelassù/e volavo, volavofelicepiù in alto del sole/ed ancora piùsu/mentreil mondo pian piano sparivalontanolaggiù/una musica dolcesuonavasoltanto per me”. Repara, vê se nessa hora, o arranjo que fizeram pra esta música não parece uma bateria caindo pelo corredor e espalhando panelas pra todo lado.

segunda-feira, 11 de março de 2013

crônica remix - Ivan


Ivan é meu amigo
Quando eu trabalhava em Altamira, tinha o meu cantinho na cidade para as minhas folgas e serviços de escritório. Morava num hotel lá em cima da serra, na saída da cidade, defronte da desmedida rodovia Transamazônica.
Houve um tempo em que o projeto tava pegando fogo, e o hotel andou muito movimentado. Nessa época, dividi o quarto com o Ivan. Por extenso: Ivan de Moraes Barros. Um paulistano boa praça, de sobrenome (quatrocentão) poderoso. Fã do Sílvio Santos e íntimo do bom pagode.
Pela convivência e pelas nossas atividades afins (eu era técnico da equipe de Geologia e ele, da Geofísica), acabamos nos tornando bons amigos.
Em Altamira aprontamos poucas e boas. Nos fins de semana de folga, juntávamos um grupinho e no início da noite, nos entregávamos ao pagode. Ivan tinha um surdo e fazia uma marcação competente, ritmada (aliás, se enchia de orgulho em dizer que ele e aquele querido instrumento já haviam acompanhado o Chico da Silva em memorável encontro musical). Eu era meio lerdo pra pagode, mas com o auxílio de umas ‘Vigu’, aprendi uma penca deles e segurava bacana uma noite com o meu violão.
Ivan exercia uma liderança saudável e alegre nas rodas de samba. Por incrível que pareça, varava uma noite sem tomar uma gota de álcool. Ia só de refri. E tinha uma energia autêntica, um entusiasmo explícito, um indisfarçável prazer quando batucava no estimado surdo...
Salve 20 de julho! Ontem foi o dia do amigo. E eu me pego a imaginar o que é mesmo que caracteriza um amigo. Fico tateando contratempos, azares e destrambelhos que por serem situações limites, servem para carimbar uma verdadeira amizade. E, diante dos absurdos, das bizarrices imperdoáveis que mapeei, posso assegurar que, amigo de vera, é aquele que sempre perdoa (às vezes com algum esforço, é certo, mas sempre perdoa) .
Certo dia, em Altamira, cheguei do campo na ira. Tava estressado. Vinha todo picado de carapanã, tava com saudade da mamãe...Queria tomar água gelada, dormir numa cama quente, sei lá, beijar uma morena.
A galera do hotel estava no futebol. Fui convidado para formar a grade mas declinei.
Fugi para o quarto. Peguei o violão, dedilhei alguma coisa. Mas não era isso que eu queria. Tava a fim de radicalizar. Foi quando eu vi, lá no cantinho, pedindo barulho, o surdo do Ivan. Não contei conversa. Joguei a alça do bichinho no pescoço e mandei ver na percussão. Bati. Bati com movimentos acelerados, insanos, alucinados. Era a minha catarse. A descarga das minhas dores.
Erguia a baqueta e descia com toda a força sobre o couro submisso. O quarto fechado. A acústica favorecia o transe.  Desci a mão com tal brutalidade sobre o estimado instrumento com o qual o Ivan tinha feito um som com o Chico da Silva que o couro não agüentou e rasgou.
Meu deus! Um desastre!
Na hora, fiquei doidinho, sem saber o que fazer. O que o Ivan iria dizer? Caramba, ele tinha o maior cuidado com aquele surdo! Não pensei em nenhuma desculpa, nenhuma solução. Fiquei com medo e me escondi debaixo da cama.
Quando o Ivan chegou e viu aquela arrumação, não falou nada. Eu, escondido estava, escondido fiquei. Ele tomou banho, se arrumou e saiu para o salão (o palco dos nossos pagodes). Não levou o instrumento.
Lá pra de noitinha, decidi enfrentar a realidade. Para encarar a fera, levei o meu violão como paga, para que ele o quebrasse também...
Ivan agora mora em Minas Gerais e vive dizendo que vem passear por aqui dia desses.
Daquele pecado que cometi, Ivan me perdoou naquela mesma noite.
Não quebrou meu violão e, até hoje, Ivan é meu amigo.

sexta-feira, 8 de março de 2013

crônica da semana - dia da mulher


A manhã é mulher


Envaidecida manhã de termos e cores, de lisases matizes e friinhas sensações de aconchego. Aurora acrescida de postulados áureos ou de plúmbeos estratos estanques, tanto faz. Tua graça sempre há, ela resiste aos humores grises do tempo. Banhos de luz e bocados de chuva no raiar do dia te são servos animados. Piedosa, dadivosa. Alvorecer primitivo de grunhidos prazerosos, de alucinações instigantes. Despertares. Útero provedor, rubros lábios doces, paixão. Primeiro choro. Indistintos sabores sugados do teu peito. Leite e lascívia, ânsia e deleite. Olhos prateados, conquistadores de dias e dias. Poderosos, insubmissos despertares. Sensuais. Nas primeiras horas tuas, esperas nuas, retinas puras pairam encimadas à dor do labor. Oxum rainha. Fecundo legado, adorno natural de pétalas. Humanidades encerradas em ti. Bendito teu fruto. Mãe. 
Humanizada manhã, Vênus de ofuscantes dons, dorso curvilíneo, adolescente concupiscência. Inebriante cantoria, nos arredores bosqueados, chamamento encantado de pássaros e divindades. Transe. Dorso conflitante, seios provocantes, sorrisos que entontecem. Primavera de saberes, panteísmo de amores. Românticos escritinhos, escondidinhos, papeizinhos amassados ao coração. Sonhos e ilusões. Santa e pecadora. No escuro do quarto as ondas do mar vêm te tocar o corpo. Falsas culpas, temores sociais, apedrejamentos, reclusão e pouca fé. Na solidão, desejos vulcânicos, explodindo na cara de gente hipócrita. Verve impudica. Libido descarrilada. Vênus sedutora, magia, manhã. Virgem irresoluta, aprisionada e triste. Diante do espelho, pele rosada juvenil, sem suores frios a denunciar gozos recentes. Arruma uma arte, bela intocada, tece um vestido abusado, um viés ousado, um nada que te dispa o pudor, e gargalha no meio da rua, destapada, descoberta, insana a olhos vistos. Expõe a tua pele de cristal. Gargalha e cai no chão desvalida, sem cuidado de macho que te proteja. Largada ao chão, lançada ao mundo, sim, mas incorrigivelmente, escandalosamente...feliz. Maldiz a inocência, abomina a servidão, odeia a violência e mata a maldade que te espreita. Vênus criadora, livre e feliz, estrela-amante-da-manhã. 
Florida manhã perfumada de licores febris, de essências envolventes. Luxúria e saudade no ar. Claridade repleta de distâncias perto. Vibrações virtuais, Beijos imprecisos, no céu, na terra, nos escondidos do mundo, carinhos rapidamente eternos. Deusa fugidia, musa fugaz, claríssima santa empobrecida de amores e poderes. 
(Um dia te calcinaram o coração, te explodiram o pulmão, te calaram a voz. E tanta vilania se deu que teu corpo sumiu ao vento. E a poeira, a fumaça e partículas de órgão, pernas, seios, sexo, olhos, lábios, pêlos, pedacinhos mínimos de ti, do teu coração, e também, traços visíveis da tua alma, subiram ao céu, tão alto e se espalharam tão longe, que a manhã, frágil e derrotada, quedou-se à escuridão. E o mundo viveu sem ânimo um luto sufocante até que uma chuva de esperanças se derramou sobre os campos e o dia amanheceu mulher). 
Bem vinda manhã, de todos os dias, de todas as vidas, dona. Perfeita e devedora, dominante e protetora. Doce amiga. Verdadeira companheira na minha caminhada pelos incontáveis desafios e insolentes sortes. 
(Um dia te cortaram a língua, te mutilaram as partes, te empanturraram de panos, te mercantilizaram o corpo, arrancaram teus cabelos, te abstraíram o útero, tingiram de violência e lilás teus olhos. Mil balas te destruíram por amor...). 
Mas uma chuva de esperanças se derramou...e a manhã, humanizada manhã,  se fez mulher. 

quinta-feira, 7 de março de 2013

crônica remix - las niñas


Las niñas
Luzia foi uma mulher maravilhosa. Lutadora. Saiu do Acre com quatro filhos agarrados à barra da saia, desembarcou do Domingos Assmar, no porto de Belém com nenhuma esperança. Mas não desanimou. Não se abateu. ‘Virou, mexeu, pintou os canecos’ e conseguiu criar todos os pequenos. Era professora formada, mas trabalhou um tempo com carteira assinada (pouco tempo), como caixa, na antiga padaria Aveirense que ficava de confronte ao Museu, depois ganhou a ruas de Belém, vendendo de um tudo. Se batia, também, com uma barraquinha de confecções na feira da Pedreira (em frente ao Bazar Brasil, como dizia a propaganda da rádio cipó). Embora tenha encontrado tantas dificuldades pelo caminho, minha mãe cumpriu a nobre missão de garantir a vida aos filhos. Agora em 2008, faz dez anos que minha mãe nos deixou. Mas para mim, mamãe não morreu, não. Luzia vive, e muito intensamente, no que sou. Está na minha batidinha diária, no meu entendimento sobre a conquista de cada palmo de vida, está na resistência e na luta contra as porqueiras e as tosses que tentam nos roubar o fôlego. Está na minha mania de andar a pé pela cidade e dita, no meu cocuruto, muitos dos dizeres e fraseados que uso nas minhas prosas aqui na coluna . Sinto minha mãe por perto a me guiar e a me aliviar a alma. Por isso, como dizia a Luzia: “tanto faz José como Cazuza, o que importa é que por onde se enxerga, sempre vou indo muito bem”.
Minha mulher Edna tem a virtude de ser amiga, de ser fiel, de ser companheira. É uma mulher inquieta. Não aceita o revés: vai à luta. Mas tem uma serenidade de dar inveja. Tem a capacidade de contemporizar. Sempre que o aperreio se instala, Edninha está ativa, presente, armada de sutileza e calma.
Conhece todas as minhas fraquezas, sabe dos meus defeitos, reconhece as minhas poucas virtudes e me é a companheira que me “suporta e chega a me amar”. Estamos juntos há 19 anos dividindo momentos felizes, refletindo a qualidade do nosso amor, revalidando os nossos compromissos.
Sabemos do desafio de nos tolerarmos, mas somos românticos e quando o coração fraqueja, quando a cabeça roda, quando o corpo cambaleia, busco na vitrola os argumentos dos versos cantados pelo Chico Buarque, e faço deles a minha remissão e a minha expressão de carinho: “Amo una mujer clara/ que a mim me ama/ sin pedir nada/ o casi nada/ que no és lo mismo/ pero és igual...
E assim renovo a certeza de que “Soy feliz,/ soy un hombre feliz.” Amaranta Maria chegou assim, trazendo o charme estilístico da aliteração no nome. Para mim foi uma luz, uma prova da vida eterna, da reedição da esperança. A chegada de Amaranta representou pra mim a confirmação da “ânsia da vida por si mesma”. Minha filha nasceu com os olhos negros e graúdos dos Sodreres e herdou a boca avermelhada e bem desenhada da avó Luzia. Veio ao mundo para prover a minha alma de mais força feminina.
Ganhou o nome das páginas do romance do Gabriel García Márquez “Cem Anos de Solidão”. E é, verdadeiramente, uma menina ilustrada. Tem a elegância da fidalguia e o destempero descortinado da plebe. A tez escandinava inspira certa distância, mas ao mesmo tempo desperta encanto. Amaranta é amável, severa, sensível, implacável, doce e amara... Maravilhosa e sabiamente paradoxal.
Quando eu vi, na folhinha do ano, que meu dia aqui na coluna cairia exatamente no dia em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, falei, legal! É a chance de homenagear as mulheres da minha vida, atomizações luminosas de todas as mulheres do mundo: minha mãe Luzia, minha mulher Edna e minha filha Amaranta Maria.

quarta-feira, 6 de março de 2013

Crônica remix-Glauco


A arte de Glauco
Soube da morte do Glauco Villas-Boas, pela manhã. Estava no trabalho e ouvi pelo rádio a notícia da tragédia. Passei o dia inquieto, triste, em silêncio.
Quando cheguei em casa, fui até o quartinho e separei as revistas do Geraldão, que fazem parte da minha coleção (imexível, inegociável, intransferível) de quadrinhos. Fiquei um tempo repassando as histórias e admirando o talento de Glauco. Depois, peguei todo o meu acervo, Piratas do Tietê, Circo, Níquel Náusea, Chiclete com Banana, juntei aquela geração que me animou para o cartun, no início dos anos oitenta, e coloquei todos aqui do meu lado.
Agora percebo que reproduzi, instintivamente, o que eles faziam naqueles tempos: era comum um cartunista participar da revista do outro. O fulgor desta ligação agitou nossas cabeças, logo no início com o lançamento da revista Circo, que juntava todo mundo, depois, deu lugar ao brilho de cada um e, na sequência, explodiu novamente na edição memorável de Los Três Amigos, com Laerte, Angeli e Glauco. Esta história está contada aqui no meu lado, pelo traço daquela turma iluminada que, tenho certeza, desenhou a identidade daquela geração oitentista. (Não tenho dúvida disso. Se aquele período ainda carece de um perfil, de um contorno, ele é moldado pelo Rock Nacional, que registra uma certa independência na criação; pelo movimento cultural paulista, regido por Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé, Grupo Rumo, Premê, Ná Ozetti..., que recompõe a idéia antropofágica,  redescobre a arte moderna na canção;  E, seguramente, pelas linhas dos cartunistas paulistanos que, naquele momento, exorcizam os recalques de revolucionários, os pulsos derrotistas que nos moíam a consciência).
Glauco Villas-Boas deu a sua contribuição para a remissão dos nossos pecados e para o aplainamento de nossas dores. Em mim, a arte de Glauco fez este efeito, nos anos oitenta. Aprendi pelo riso.
E aprendi, também com o espelho. Aquele espelho que mostra o que a gente não quer ver. O segredo da arte de Glauco reside na capacidade dos personagens criados por ele se confundirem com a gente, só que reconhecendo as nossas mentiras, as nossas hipocrisias, nossas desconfortáveis impotências (o Casal Neuras é um exemplo clássico desta delação social. Símbolo dos casais moderninhos, liberais, daqueles que viraram moda nos anos oitenta, daqueles que juravam dividir tarefas chatérrimas como lavar louça ou cortar cebola, os personagens de Glauco, não resistem a uma crise de ciúmes, ou um arroubo machista e sempre quebram o pau na saída das festas e se denunciam incapazes de sustentar uma utopia ).
Os detalhes não ditos do nosso comportamento, os tabus e as nossas vergonhas, Glauco transformou-os em normalidade. Obscuridades de nossas vidas que passamos a reconhecer e aceitar. É uma eficiente terapia, a arte de Glauco.
Geraldão é o meu personagem preferido. Se a gente for falar de tabu, Geraldão transborda. Tem todos os estigmas da modernidade. Ele é uma provocação. Um desafio à capacidade de sermos generosos, complacentes, tolerantes, sociáveis. Com ele, a gente vai exercitando a nossa civilidade, vai captando os sinais, até que a gente passa a não ver mais as marcas proibidas no Geraldão (e se a gente percerber, sei lá, o pessoal da lingüística, da semiótica, da simbologia, acho que entende melhor esta característica do personagem, o Geraldão não é definido em espaço fechado, ele não é necessariamente um corpo limitado a um plano. O desenho do Geraldão é uma idéia livre, um conceito em gestação, pede a subjetividade) e ele vira uma figura íntima, porque a gente conhece alguém com aquele jeito. Um amigo, um vizinho, o patrão, o cara estranho da rua, o namorado da irmã. Para mim, o Geraldão é quase um irmão, ou é uma porção de mim perdida nas minhas vontades.
Glauco nos revelou a fugacidade da matéria. Seus personagens não têm contornos herméticos e são formados por traços frágeis. Parece que queria dizer com isso, que podíamos nos desfazer a qualquer momento. Pilheriava com esta severidade sem sentido, pela qual tentamos enganar os outros e a nos mesmos. E iluminava os escurinhos com o riso.
Aqui, ao meu lado, as revistas e o humor dos caras que fizeram minha cabeça, quando eu tinha 19, 20 anos. Elas (Angeli,Laerte, fernando Gonsales, Luiz Gê...) as revistas, que sempre me disseram tanto, por uns instantes, silenciam. E choramos juntos.

terça-feira, 5 de março de 2013

Crônica remix - O bê de bule


O Bê de Bule

Às vezes eu fico olhando pros meus meninos. Assuntando, assuntando, vendo neles as mudanças do tempo, a virada de comportamento. Dia desses num almoço in family, ao som de uma guitarra, o meu filhinho, do lado de lá da mesa se balançou no ritmo. Eu daqui, também dei uma sacudidela ao som do Rock and Roll. E matutei em silêncio: é  isso mesmo, é isso mesmo, quem disse que há uns  tempos, menino podia se remexer na mesa em plena hora do almoço. Deus te livre e guarde, era cocorote na certa. E fui mais adiante nas minhas constatações: quem disse que antigamente, o próprio pai podia responder a qualquer música, que dirá um Rock, com um sacolejo na hora sagrada do meio-dia. Nunca que podia.
Mas hoje, pode tudo. Que não fira, que não machuque, que não humilhe ninguém. O pai deixa. Em tempos modernos, diante da crueza da vida, o pai permite um tudo, desde que venha regado de candura, da fina e terna névoa de doçura que existe num comovente trinado de guitarra.
Confesso que de outras coisas pretéritas, porém, o pai aqui sente falta. E olha que dá o maior qüiproquó doméstico estas minhas vontadezinhas antigas, em plena era da modernidade. Quer ver, um conjuntinho de cambraia de linho marronzinho, que-nem-que-nem, tanto para um quanto para outro com shortinho de bolso externo e camisa de gola, é o meu sonho para os meus meninos usarem numa tarde ensolarada de domingo ( irem à missa, ao parquinho ou à praça tomar um sorvete de groselha, ou mesmo só para se aprontarem e sentarem na porta para apreciar o movimento. Eu, para um este ou para aquele ou ainda aquel’outro, felicíssimo, me ponho à disposição de acompanhá-los). Alguns probleminhas para realizar o meu sonho. Minha mulher, é claro não topa. Diz que temos um menino e uma menina e essa história de conjuntinho, quando cabia, era para irmãos do mesmo sexo. Eu, de pronto pondero: “ Ah, mas fica uma gracinha, os dois irmãozinhos iguaizinhos, e ainda mais fashion com os bolsinhos tanto da camisa de gola quanto do shortinho,  sendo de cores contrastantes do marronzinho, tipo um quadriculado matizado básico”. Ela perde a esportiva e diz que tudo isso é, no mínimo ridículo. A resistência vem também dos pimpolhos. A menina, que não sei com quem aprende, mas é uma vaidade só, não vai encarar um conjuntinho démodé mesmo que seja pra fazer o gosto do pai, de jeito e qualidade e o menino, alheio aos reclamos do pai, no domingo, prefere se ligar nos jogos do brasileirão que a uma programação na batente da casa, olhando pro tempo, a pensar na morte da bezerra.
Ah, que pena! Antigamente era comum. A mãe comprava a fazenda de duas larguras, marrom, na Pony e, à luz da sala, tecia, na vigorosa Vigoreli os conjuntinhos  (e não tinha esse negócio de para menino ou para menina, não, o modelito era no qual pega, pra todo mundo, do menor ao maior). Depois, talhava os trianglinhos dos cortes matizados e engendrava um desenho fashion aos bolsos do  conjuntinho.  Era que era uma gracinha, os pequenos abrigando as mãozinhas elegantemente na cava dos bolsos quando posavam para um retrato, no Bosque, à sombra de uma frondosa samaúma ou passeando de mãos dadas a dois, a três, pelas avenidas pedreirenses de outrora, se lixando para a Gisele ou para a última da Cê e A.
E o bê de bule? Ah, o bule! O bule, como os conjuntinhos marronzinhos, não existe mais.

sexta-feira, 1 de março de 2013

crônica da semana - 2 demarço


A carta

Porto Velho, 2 de março de 1983. Meu querido amigo, acabo de desligar o telefone. Que sensação difícil de explicar. Mistura de sentimentos. Aflição, carinho, saudade. É a distância... 
Porto Velho é uma cidade diferente. As coisas acontecem aqui de modo inverso que no resto do Brasil. Em momentos delicados de desindexação da economia, a cidade não para de receber gente. Famílias inteiras chegam a toda hora trazendo uma bregueçada que vai do colchão manchado com nódoas escurecidas a fogão de quatro bocas, na bagagem. Impressiona que dali da plataforma algumas pessoas já saem com destino certo para trabalhar em um dos sertões daqui. Agentes de empresas zanzam de um lado a outro ofertando emprego. Inacreditável. As fazendas e as empresas que exploram ouro e cassiterita são os maiores empregadores. 
Eu cheguei de avião. Mas meu paradeiro é o mesmo. Vim meio na doida, certo mesmo somente a acolhida da família do Carneirinho, que mora já há alguns anos em Rondônia e 11 prestações da passagem pra pagar; o resto, sonhos. Desembarcamos na terça, 22 de fevereiro. E olha como este lugar é bendito. Foi só parar na frente da TV por uns minutos, tirar umas cópias no nosso currículo de recém-formados, com uma única página, e não passamos desempregados nem uma semana. Mas antes de conseguir este emprego, eu caí da bicicleta com o Saulo, irmão mais novo do Carneirinho, na garupa e chorei que só. Chorei porque com essa minha lerdeza, essa minha amarração, derrubei o menino e ele se machucou; chorei porque estou a, sei lá, três, três mil e poucos quilômetros de casa; Porque disseram que aqui faz frio; porque tô com saudade da mamãe, das minhas irmãs; de ti, meu querido amigo. Por falar nisso, manda aquela música, que fizeste com o Ribba, e que diz assim “é pena que eu não sou mais forte/pra vencer a solidão”. Ela fala muito de mim hoje. 
E agora, neste dia 2 de março, te conto como é ir mais ao longe. Saímos de Porto Velho cedo. A estrada ainda é um pedaço de terra e um outro tanto de asfalto, mas a parte de terra é um sofrimento só. Viemos com o geólogo Masaharu Kaedei, nosso chefe. Nosso rumo foi sempre para sul, percebia, pelo sol, que quanto mais a gente andava, mais a distância da minha querida Belém, aumentava. Ora, se aumentava a distância de Porto velho, que era onde estava a minha nova família rondoniense, que dirá de Belém. Quanto mais o carro varava rumo ao sul, mais o meu mundo se esfarelava, se desintegrava, mais a solidão se avizinhava, e agora, da janela de uma casa silenciosa e vil ela é minha companheira, te conto, sem vergonha nenhuma da minha dor, e olha só, uma lágrima escapuliu sem controle e caiu sobre o papel de seda em que escrevo. Se chegar manchadinha, esta carta, já sabes, é um recado. 
Hoje, dia 2 de março, assinei meus papéis todos. Aquelas coisas. Seguro, FGTS, PIS...E a carteira de trabalho. Uma assinatura que representa um salto na minha vida profissional. Já tinha uma como empacotar no Supermercado Pão de Açúcar. Agora, Técnico de Mineração, formado. Éraste, um pulo e tanto. E eu que pensava ganhar 50 mil, vou iniciar, ainda na fase de estagiário, com 90 mil cruzeiros por mês. É um dinheiro que eu nunca na minha vida vi. Dá que sobra, pra pagar as prestações da passagem e ainda quitar o empréstimo que fiz com o padre Lourenço, dias antes de vir pra cá. Ele me ajudou me dando uma grana para me manter enquanto batalhasse emprego. 
Ah, meu amigo, a experiência nos faz crescer, anima os nossos conceitos, mas é preciso ser homem neste 2 de março de 1983 e ainda sou tão pequenino...Um afetuoso abraço. Sodré.