Ivan é meu amigo
Quando
eu trabalhava em Altamira, tinha o meu cantinho na cidade para as minhas folgas
e serviços de escritório. Morava num hotel lá em cima da serra, na saída da
cidade, defronte da desmedida rodovia Transamazônica.
Houve
um tempo em que o projeto tava pegando fogo, e o hotel andou muito movimentado.
Nessa época, dividi o quarto com o Ivan. Por extenso: Ivan de Moraes Barros. Um
paulistano boa praça, de sobrenome (quatrocentão) poderoso. Fã do Sílvio Santos
e íntimo do bom pagode.
Pela
convivência e pelas nossas atividades afins (eu era técnico da equipe de
Geologia e ele, da Geofísica), acabamos nos tornando bons amigos.
Em
Altamira aprontamos poucas e boas. Nos fins de semana de folga, juntávamos um
grupinho e no início da noite, nos entregávamos ao pagode. Ivan tinha um surdo
e fazia uma marcação competente, ritmada (aliás, se enchia de orgulho em dizer
que ele e aquele querido instrumento já haviam acompanhado o Chico da Silva em memorável
encontro musical). Eu era meio lerdo pra pagode, mas com o auxílio de umas
‘Vigu’, aprendi uma penca deles e segurava bacana uma noite com o meu violão.
Ivan
exercia uma liderança saudável e alegre nas rodas de samba. Por incrível que pareça,
varava uma noite sem tomar uma gota de álcool. Ia só de refri. E tinha uma
energia autêntica, um entusiasmo explícito, um indisfarçável prazer quando
batucava no estimado surdo...
Salve
20 de julho! Ontem foi o dia do amigo. E eu me pego a imaginar o que é mesmo que
caracteriza um amigo. Fico tateando contratempos, azares e destrambelhos que
por serem situações limites, servem para carimbar uma verdadeira amizade. E, diante
dos absurdos, das bizarrices imperdoáveis que mapeei, posso assegurar que,
amigo de vera, é aquele que sempre perdoa (às vezes com algum esforço, é certo,
mas sempre perdoa) .
Certo
dia, em Altamira, cheguei do campo na ira. Tava estressado. Vinha todo picado
de carapanã, tava com saudade da mamãe...Queria tomar água gelada, dormir numa
cama quente, sei lá, beijar uma morena.
A
galera do hotel estava no futebol. Fui convidado para formar a grade mas declinei.
Fugi
para o quarto. Peguei o violão, dedilhei alguma coisa. Mas não era isso que eu
queria. Tava a fim de radicalizar. Foi quando eu vi, lá no cantinho, pedindo
barulho, o surdo do Ivan. Não contei conversa. Joguei a alça do bichinho no
pescoço e mandei ver na percussão. Bati. Bati com movimentos acelerados,
insanos, alucinados. Era a minha catarse. A descarga das minhas dores.
Erguia
a baqueta e descia com toda a força sobre o couro submisso. O quarto fechado. A
acústica favorecia o transe. Desci a mão
com tal brutalidade sobre o estimado instrumento com o qual o Ivan tinha feito
um som com o Chico da Silva que o couro não agüentou e rasgou.
Meu
deus! Um desastre!
Na
hora, fiquei doidinho, sem saber o que fazer. O que o Ivan iria dizer? Caramba,
ele tinha o maior cuidado com aquele surdo! Não pensei em nenhuma desculpa,
nenhuma solução. Fiquei com medo e me escondi debaixo da cama.
Quando
o Ivan chegou e viu aquela arrumação, não falou nada. Eu, escondido estava,
escondido fiquei. Ele tomou banho, se arrumou e saiu para o salão (o palco dos
nossos pagodes). Não levou o instrumento.
Lá
pra de noitinha, decidi enfrentar a realidade. Para encarar a fera, levei o meu
violão como paga, para que ele o quebrasse também...
Ivan
agora mora em Minas Gerais
e vive dizendo que vem passear por aqui dia desses.
Daquele
pecado que cometi, Ivan me perdoou naquela mesma noite.
Não
quebrou meu violão e, até hoje, Ivan é meu amigo.
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