sábado, 27 de fevereiro de 2021

crônica da semana - suave spleen

 Suave spleen

É costume antigo meu, sintonizar o rádio na estação pública, certinho no programa que toca músicas paraenses. É benzinho na hora do almoço e se ajeita no clima, no arranjo e no aconchego do domingo. Se calha de ter um vinho, uma cervejinha, vou até mais tarde de ouvido colado na caixa de som do meu três-em-um, apreciando a seleção musical. Curto pacas. Tem até o bônus de, lá pelas tantas, tocar a música que fiz em parceria com o compositor/compadre Edir Gaya. A top 10 “Pedreira jazz Pedra Noventa”.

São tantos os talentos da nossa terra. Imagino a dor de cabeça do programador pra listar o domingo. Entendo que há uma rotatividade. Quem toca tal dia, passa um tempo sem. Dá a vez para outros. Muitos emergentes, outros tantos consagrados. A variedade da criação. Diversa em significados, harmonias, estilos e inspirações.

Daí que há alguns anos, uma música me mundiou. Em tudo por tudo. Pela melodia requintada, pelo arranjo elaboradíssimo, pela poesia delicada e pela interpretação de uma cantora fenomenal. Ouvi uma vez, fiquei maravilhado, passou, passou, ouvi outra vez. Penso que, subordinada à alternância na lista de execuções, a canção fica uma pá de tempo sem dar o ar da graça e do tema. Destarte (hã hã, sabia que usaria esta palavra uma outra vez na vida!) que fiquei na ira de saber o nome da canção, a autoria, os músicos, em que lugar encontrar, tais e coisas; e coisas e loisas. Eis que, em pleno dia de semana dei com ela fazendo a trilha sonora de uma tarde chuvosa. E com direito às informações básicas:“Suave Spleen”, de Waldemar Henrique, interpretada por Lívia Rodrigues e que compõe uma faixa do disco “Urbana”, lançado pela cantora em meados dos anos 2000. E eu completo: um brinco! Uma preciosidade. Um tesouro, a canção. Um maná que a todos deveria ser oferecido para a saúde do corpo e a satisfação da alma.

É só eu dar com essas componentes dos tempos e das surpresas agradáveis, que torno à atriz americana Amy Irving. Esteve aqui, no final do milênio passado, gravando “Bossa Nova”, filme dirigido pelo brasileiro Bruno Barreto. Na época, quedou-se à sedução do ator Antonio Fagundes. Deslumbrada, deu uma entrevista se perguntando por que as mulheres brasileiras não namoravam o Fagundes todos os dias. Entendo que floreou uma idéia que pregava certo encanto pelo ator. Mas aquilo ficou na minha cabeça. Entendi que algumas peças, em especial, poderiam ser manejadas no tabuleiro das satisfações coletivas e ofertadas ao namoro constante.

Quando, nessa tarde chuvosa dei com aquela voz, me perguntei: por que a gente não ouve música paraense com mais frequência, por que não temos Waldemar Henrique, Lívia Rodrigues e outros grandes nomes da história musical do Estado em outras rodas, em audições mais amplamente divulgadas? Por que não namoramos nossos artistas todo santo dia? (perguntaria Amy Irving).

Aí a chuva amainou, o barulho mundano tomou lugar do meu três- em-um e do chiado no telhado. Meu som doméstico arregou ante a competição externa. As batidas que ouvimos no dia a dia romperam a barreira do som e nos dominaram. A mesma coisa, a manjadíssima música em distribuição isotrópica. Daqui e dali. Sofrência e estridência na voz. Quadrados e trancos rítmicos.

Acalentado pela sincronia de pingos remanescentes que migravam da calha ao chão, traçando a memória da chuva, me acudi às reflexões... a me perguntar em suavíssimo spleen, por quê? Por quê?

sábado, 20 de fevereiro de 2021

crônica da semana-argel grama amendoim

 Grama amendoim (um quarto de século)

Há vinte e cinco anos, meu filhinho entrava em campo para ser este cracaço. A bola está com ele, neste sábado:

“Duas árvores de Ficus formavam uma sombra enorme. Os frutos amassados tingiam o asfalto de cor de suco de taperebá, e a seiva branca das folhas dava coceira. Do outro lado da rua, um portão.

Adiante, um jardim de grama amendoim, bem verdinha. Um dia, assim sem explicação, apareceu uma aceroleira no meio do terreiro, dando acerolas azedinhas, encarnadas, que atraíam passarinhos e crianças.

No pátio, a casa começava com o lustroso piso de cimento queimado, o vermelhão, o maior charme das casas de operários menos graduados. O que torna é que operamos o conceito de passar o dia inteiro com pé rubro.

Onde deveria ser uma garagem, forjou-se um ateliê pra mamãe costurar e produzir bolsas que ela vendia aos fins de semana, na praça. No ateliê, também guardávamos a bicicleta vermelha, bem antiga do papai, a minha cross azul, que nesse tempo a Amaranta já tinha herdado, e a minha linda bike cor de grafite com garupa e descanso.

A sala tinha um sofá de segunda mão (Acho que até hoje nunca compramos um sofá na loja), levemente deteriorado, usávamos o lençol de cetim creme-amarelado-pálido para cobri-lo. Encostada na parede da direita, nossa mesa, que até hoje resiste, de madeira boa com quatro cadeiras que marcam nossas bundas e pernas. 

Na parede esquerda, um mural com as melhores fotos. A mais emblemática, do aniversário de seis anos da Amaranta. Nós quatro. Mamãe sorri olhando pra Amaranta, papai sério olhando pra câmera, eu sem camisa, de calça jeans no colo de mamãe, com os olhos fechados, protestando contra os flashes. Ao fundo, umas telas que o papai ousou pintar.

Na parede da frente, duas estantes de ferro guardavam as coleções de rochas e minerais, uma garrafa de whisky, as rolhas das garrafas de vinho, a coleção de vinis, e a vitrola. Tinha também um violão Di Giorgio de cordas de nylon pendurado, esperando o meu único Ré, ou todas as músicas que o papai toca na mesma sequência de Lá menor.

O quartinho era um quarto pela metade, inacabado, sem porta e sem cama. Eu usava pra ficar sozinho, chutando bola na parede. Brinquei muito de futebol com meus bonecos, o Saint Seiya era o artilheiro, canhoto, especialista em cobranças de falta, igual ao Messi. Os dois guarda-roupas embutidos continham infinitos livros, lá, ainda criança, eu li sobre o capitão Lamarca.

O quartão era o quarto de verdade, onde nos encontrávamos em família pra assistir aos jogos da copa. Assim, em um gol de Ronaldo fenômeno, pulamos todos juntos e quebramos a cama. Demoraríamos uns 15 anos pra ter uma cama nova.

As paredes todas eram rabiscadas por nós, as duas crianças que estavam aprendendo a escrever. Riscávamos os nomes de todas as pessoas do nosso convívio. Argel, Amaranta, mamãe, papai, Maura, Caio Lucas, Flaviana… Dizem que a minha letra continua do mesmo jeito até hoje... E na cozinha, a geladeira guardava meu carrinho de ferro, no frio intenso do congelador.

Mexi e remexi na caixa de lembranças do meu lar, mesmo que ele só exista no passado. Com certeza é o lugar mais seguro de se ir. Hoje, no meu aniversário de 25 anos, eu só peço que o dia amanheça azul, com um céu de férias ensolarado, rompendo o fevereiro cinza... que faça florescer a verdíssima grama amendoim e que o vento dê balanço às florzinhas amarelas. Eu assisto tudo da janela.”

 

sábado, 13 de fevereiro de 2021

crônica da semana - empatia

 Meteu a mãe no meio, a casa cai

Do io que se estende pelas  cicatrizes que marcam o lombo emocional de cada um de nós; ao chio, que vem sem sentido e zonzo de direção, fim ou definição do que é esperança e o que é desespero, a vida da gente vai revelando almas... E olha, me aparece cada qual e tais e quais!

O que vale é que a gente se imuniza de embromações e ridículos coquetes. Agora, é na vera mesmo. Ferro com ferro. Transparência da finura da seda do papel de ‘abade’. O dito e o certo, no olho. Exigindo provações. Estabelecendo compromissos. Decidindo cuidados. E, ainda bem, desvelando caminhos tortos. Rasgando véus. Estampando personalidades e inspirando, dando as dicas sobre as estratégias de proteção.

Aconteceu com todo mudo, a frustração. Bambeou gente pacas, a decepção. Mãos que nos eram estendidas docemente, escondiam a ilusão amarga. O desencanto mágico, ácido e trágico.

Uma palavra saltou do caos: empatia. Para ser negada.

Conhecia o termo, olha só, das aulas de OSPB que tive na Escola Técnica. Numa das cartelas que incluíam conteúdos listando as condutas, os valores sociais e morais. Em plena vigência da ditadura, minha turma conhecia os princípios da empatia em dosagens bem mais substanciadas que hoje, quando o que se procura mesmo é se fazer de desentendido quando este tema é a pauta.

Comigo foi de abismar. De me deixar caindo os queixos. E retorno aos perdidos anos oitenta: Naqueles tempos , ora veja, a ETFPA sendo dirigida por um interventor, naquele cenário claustrofóbico, foi que ouvi falar, pela primeira vez na vida, em Karl Marx. Na dita aula de OSPB. De lá formulei entendimento sobre a relação capital/trabalho. E me convenci de que somente a minha força de trabalho interessa ao sistema. Não rolam sentimentos, carinhos, acenos de consanguinidades, afagos ou gentilezas nesse contato. É puramente de troca. Retocada pela mais-valia.

Com parente, pensei que fosse diferente.

A pandemia me mostrou que o sistema tem mais apreço por mim, mais cuidado com minha saúde do que meu parente de sangue.

Aconteceu d’eu ter um serviço assim, assado e optei por dar a missão a parente. Por telefone, combinamos os termos, as técnicas e preço, mas abortamos a missão quando, em determinado momento, ele exigiu minha presença em uma das fases do trabalho. Alertei que estava confinado em severa quarentena. Acrescentei que havia sido dispensado inclusive das tarefas presenciais na empresa em que trabalho, e desenvolvia, desde o início da pandemia, atividades restritas ao ‘home office’.

Só não me chamou de santo. Insinuou que eu era um fraco. Delirou do io ao chio afirmando que a pandemia não existe. Não era coisa outra, senão invenção da Esquerda e do Petê. Que eu tinha que me cloroquinar e sair para o mundo com fé no altíssimo pois que só ele salva. Resgatou arengas da infância, sentenciou que eu era um neguinho amamãezado, cheio de mimos e privilégios. Culpa da minha pusilanimidade, era da minha mamãe, cravou impiedoso e desonesto.

Opa! Meteu a mãe no meio, a casa caiu.

Desfiz o negócio na hora. Não teve trabalho, não teve clima para prosseguir nas concessões táticas das relações familiares.

A mim restou a certificação do descaso total que temos pelo exercício da empatia. A convicção da existência de almas descoladas do corpo social e, incrível, a evidência de que o patrão, o agente concreto do capitalismo selvagem, cuida mais de mim, que meu próprio parente!

sábado, 6 de fevereiro de 2021

crônica da semana - toalha

 Antes de jogar a toalha

Arte da qual jamais pensei me valer.  Prosa que sequer vagava pelo mais recôndito do meu ser era, um dia, escrever algo que significasse desistir. Jogar a toalha. Mas olha, tô na biqueira. Remoso está. Uma assustadora indefinição, como se diz ao repente, “em termos de tudo”, me balança para fora do prumo e forceja me levar à lona. Estou convicto de que, ao contrário do que pareça, este banzo não vem da fraqueza ou como diz o presidente nos seus momentos de maior rastejo, não é fruto de um chiliquito de maricas. A oscilação no tempo difícil e no espaço isolado tem motivações concretas. É certo, dito e cravado que o perigo nos ronda por todos os lados. Hoje mesmo, enquanto escrevo, meu coração sofre, engulo choro, desconcentro, torno, rezo e peço pela recuperação de duas pessoas muito queridas e que enriqueceram minha vida de bons momentos na Vila do Cabanos, para que elas resistam e se recuperem do mal cruel que é a covid-19.

Um registro que tenho, vai catar lá de 1989, a primeira crônica que escrevi. “Nós que amávamos tanto a revolução”, ironicamente, uma narrativa elaborada a partir de um contexto pra lá de otimista. Era final da década de 80, tabus quebrados, democracia restaurada, cheirinho de liberdade no ar. Contei de forma bem humorada alguns aspectos daquelas conquistas, deixei dicas de algumas aparas que precisávamos ajustar e no final, me arvorei a um discurso contra o preconceito: “quando tudo acabou, eu e meu companheiro de batalha nos olhamos, nos beijamos, nos demos as mãos e subimos a avenida iluminada. Tomamos um guaraná Garoto, pra distrair”. Minha primeira crônica revelava sentimentos, traduzia autoestima, validava comportamentos, atos e intenções que, hoje, buscam a todo custo espaço no que escrevo.

Tantos triunfos me fugiram das mãos, nestes dias atuais absurdos e obscuros.

À época eu era mundiado pelo Luiz Fernando Veríssimo. Minha primeira crônica foi inspirada no jeito que ele escreve e que o mantém no topo das minhas preferências literárias. Procuro, ainda, rezar na cartilha do Veríssimo nos quesitos humor, desapego, liberdade no uso da língua e empatia. Coisa outra senão provocar uma satisfação do outro lado, me foi motivada como pauta durante essa lida de cronista que já conta seus 32 anos.

Quem me dera sentar aqui todas as vezes e abrir o parágrafo desta coluna com palavras ternas, finas e agraciadas com muitos bens e bons. Esta é uma disposição que a cada tentativa se torna muito difícil. Remoso está. Desesperançoso está o Brasil. Uma saída rápida ao largo nos revela a mais devastadora onda de desprezo pela doença que nos dizima. Mina de gente sem máscara. Vendedores de comida sem máscara! Outros além de não usar, provocam, desqualificam quem usa. A gente se esconde da doença, mas desse jeito, ela nos descobre. Urge Sumir da rua e esperarmos a vacina. Quem está no poder joga contra. Não temos vacina, não temos oxigênio. E ainda somos submetidos ao discurso de ódio diário, aos arroubos de sadismo disparados pelos carrascos do zap. Aí, a gente se esconde debaixo da cama e se entrega à tristeza sem fim.

Uma hora boto a cara pra fora. Volto ao computador. Engulo choro. Rezo por mim, pela minha família, pelos milhões que sofrem sem esperança neste país. Tento iniciar o parágrafo. Insisto. Antes de jogar a toalha, encontro fôlego na primeira crônica que escrevi e que tinha uma pauta pra lá de otimista.