sábado, 20 de fevereiro de 2021

crônica da semana-argel grama amendoim

 Grama amendoim (um quarto de século)

Há vinte e cinco anos, meu filhinho entrava em campo para ser este cracaço. A bola está com ele, neste sábado:

“Duas árvores de Ficus formavam uma sombra enorme. Os frutos amassados tingiam o asfalto de cor de suco de taperebá, e a seiva branca das folhas dava coceira. Do outro lado da rua, um portão.

Adiante, um jardim de grama amendoim, bem verdinha. Um dia, assim sem explicação, apareceu uma aceroleira no meio do terreiro, dando acerolas azedinhas, encarnadas, que atraíam passarinhos e crianças.

No pátio, a casa começava com o lustroso piso de cimento queimado, o vermelhão, o maior charme das casas de operários menos graduados. O que torna é que operamos o conceito de passar o dia inteiro com pé rubro.

Onde deveria ser uma garagem, forjou-se um ateliê pra mamãe costurar e produzir bolsas que ela vendia aos fins de semana, na praça. No ateliê, também guardávamos a bicicleta vermelha, bem antiga do papai, a minha cross azul, que nesse tempo a Amaranta já tinha herdado, e a minha linda bike cor de grafite com garupa e descanso.

A sala tinha um sofá de segunda mão (Acho que até hoje nunca compramos um sofá na loja), levemente deteriorado, usávamos o lençol de cetim creme-amarelado-pálido para cobri-lo. Encostada na parede da direita, nossa mesa, que até hoje resiste, de madeira boa com quatro cadeiras que marcam nossas bundas e pernas. 

Na parede esquerda, um mural com as melhores fotos. A mais emblemática, do aniversário de seis anos da Amaranta. Nós quatro. Mamãe sorri olhando pra Amaranta, papai sério olhando pra câmera, eu sem camisa, de calça jeans no colo de mamãe, com os olhos fechados, protestando contra os flashes. Ao fundo, umas telas que o papai ousou pintar.

Na parede da frente, duas estantes de ferro guardavam as coleções de rochas e minerais, uma garrafa de whisky, as rolhas das garrafas de vinho, a coleção de vinis, e a vitrola. Tinha também um violão Di Giorgio de cordas de nylon pendurado, esperando o meu único Ré, ou todas as músicas que o papai toca na mesma sequência de Lá menor.

O quartinho era um quarto pela metade, inacabado, sem porta e sem cama. Eu usava pra ficar sozinho, chutando bola na parede. Brinquei muito de futebol com meus bonecos, o Saint Seiya era o artilheiro, canhoto, especialista em cobranças de falta, igual ao Messi. Os dois guarda-roupas embutidos continham infinitos livros, lá, ainda criança, eu li sobre o capitão Lamarca.

O quartão era o quarto de verdade, onde nos encontrávamos em família pra assistir aos jogos da copa. Assim, em um gol de Ronaldo fenômeno, pulamos todos juntos e quebramos a cama. Demoraríamos uns 15 anos pra ter uma cama nova.

As paredes todas eram rabiscadas por nós, as duas crianças que estavam aprendendo a escrever. Riscávamos os nomes de todas as pessoas do nosso convívio. Argel, Amaranta, mamãe, papai, Maura, Caio Lucas, Flaviana… Dizem que a minha letra continua do mesmo jeito até hoje... E na cozinha, a geladeira guardava meu carrinho de ferro, no frio intenso do congelador.

Mexi e remexi na caixa de lembranças do meu lar, mesmo que ele só exista no passado. Com certeza é o lugar mais seguro de se ir. Hoje, no meu aniversário de 25 anos, eu só peço que o dia amanheça azul, com um céu de férias ensolarado, rompendo o fevereiro cinza... que faça florescer a verdíssima grama amendoim e que o vento dê balanço às florzinhas amarelas. Eu assisto tudo da janela.”

 

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