sábado, 24 de novembro de 2018

crônica das semana - medico da baixada


Os médicos da baixada
O lugar era um abandono só, com imensos lagos formados no meio da rua desde a saída do asfalto, lá em cima, e que se estendiam até o bairro vizinho da Sacramenta, sendo que dali pra frente eram entremeados de pontes estivadas cheias de falhas e inseguras. Não havia calçada e a frente das casas era tomada por férteis capinzais, inclusive ricos daquela espécie que a garotada usava como pequenas flechas, nas brincadeiras de final de tarde. À noite, a sinfonia era a dos sapos. No inverno, as casas eram visitadas por cobras gigantescas e jacarés silenciosos. A vida era uma aventura diária. Nosso lar ia ao fundo, a água e as imundícies invadiam as residências e traziam chamichugas e diarréias à rotina da molecada.
Um dia, à margem de um dos maiores buracos da rua, daqueles que pra passar um carro, o motorista tinha que usar de toda perícia em manobras beirando o batente das casas, um pequeno prédio começou a ser erguido, e antes que a construção se realizasse por completo, com três compartimentos acanhados construídos, uma placa subiu na fachada: Consultório Médico da Baixada. Revezando os doutores e as doutoras, diariamente, o atendimento iniciou logo e daqui pra’li se formou uma legião de pacientes em busca das melhoras.
(Antes disso, já havia no bairro, o dentista de 10 Reais. Ocupava um prédio no asfalto, na parte nobre do bairro. Era um dentista negro. O primeiro e único que conheci em toda a minha vida. A molecada da minha rua era a pri na fila de atendimento. Quando descobriu o consultório popular, tratou de fechar as panelas que só cresciam, naquela região frágil dos molares e dos pré-molares. Era comum, também, naquela época, os dentes da frente, escurecerem na fronteira entre um e outro e sofrerem corrosão ambos. Era o famoso ‘dente furado’, um mal muito comum entre os adolescentes, e responsável por aquela geração de banguelas  estilo traves sem goleiro da minha rua. O sorriso que o doutor de 10 Reais conseguia salvar, salvava. Aquele que não, ia direto para a implantação de uma chapa, pra dar uma forra pros pequenos. Ele mesmo encaminhava prum protético baratinho. Durou pouco, o dentista de dez reais. Uma coisinha assim a mais que a primeira dentição. Deixou o bairro, mas recuperou a auto-estima de um feixe assim, ó, de jovens que, antes dele, sorriam envergonhados com os beiços apertados).
Os médicos da baixada estão lá. Ampliaram o prédio, instalaram laboratórios para exames de rotina, um pequeno ambulatório, renovaram o quadro. Os mais experientes trazem na bagagem o apoio a famílias inteiras. Na minha família, do mais pequenininho até a minha avó octogenária, todos se valeram dos cuidados daquelas pessoas.
O asfalto maquiou a baixada, e os postes de luz iluminaram os escondidos. O tempo atenuou alguns sacrifícios, mas não eliminou as doenças da pobreza, não acabou com os males da fome e da parca educação. Não aplacou o oportunismo das chamichugas. Os médicos, ainda estão na baixada . Na luta diária.
As cobras e jacarés, quando chove, ainda aparecem. Mais aquelas de grandes. Mais assim, assim, de silenciosos.
                                                                              

sábado, 17 de novembro de 2018

crônica da semana - camisa de onze varas


Camisa de onze varas
Lembro benzinho da minha avó ralhando com um pequeno da rua, que malandrava debaixo do pé de acácia e, enxerido que só ele, soltava gracinhas e saliências para as alunas do Donatila: “olha, rapaz, tu ainda vais te meter numa camisa de onze varas”, vovó dizia.
Virava e revirava os ticos e tecos do cocuruto imaginando como seria uma camisa de onze varas. (Tempos depois, andando por essas matas, conheci algumas artes. Tapiris, mutás, pinguelas, jiraus. Mas não eram camisas e também, bem contadinhas, via-se que eram obras tecidas com bem mais que onze varas).
Daí que tirando dum lado e pondo noutro, cascavilhando aqui, e assuntando ali, deduzi que não se tratava de peça do vestuário, o alerta de minha avó. O recado era uma previsão de apertos futuros, de enrascadas, encalacres e perigos certos.
Anos além dos presságios de vovó, estamos caminhando para nos metermos nesta camisa. E se nada for feito, vamos ficar tesos sem nos mexer, sem rir, sem falar. A clara intenção de transformar a educação em experiências realizadas no ermo, na solidão, pode gerar uma linhagem fria, apatetada, empombalecida; uma legião de estudantes insossos.
O que dizer de uma geração que não vai saber, nem entender o quanto de superação tem o ato de, no silêncio de uma compenetrada aula de cópia, levantar e, animado por uma força inexplicável, quebrar a concentração de todos e pedir à professora para ir ao banheiro.
A segurança para atitudes ousadas assim, a vitória sobre o ensimesmamento e a timidez vêm das parcerias. Cresce com a convivência. A energia para formar dentro da gente controles e poderes, vem do meio da nossa galerinha. Sempre tem um ou dois que estão ali, dando aquela força.
O que dizer de uma geração que não vai saber, nem entender o quanto espetacularmente delicioso é, na hora que todos olham para o quadro tentando decorar o roteiro das contas de arme e efetue, desviar o olhar e mirar apaixonadamente a coleguinha ou o coleguinha do lado.
O amor nasce desse emaranhamento de personalidades. As amizades se criam no ninho de estilos, de calibres, de humores diferentes.
O que dizer de uma geração que não vai saber, não vai entender o que significa dividir um sanduíche de 'mortandela', partilhar um lanchinho que mal dá pra um; misturar vários tipos de sucos, refrigerantes, num só copo e beber de gute-gute. O que dizer de uma geração que não vai dar aquela fugidinha até o portão para comprar uma intera de chope e unha ou pastel de vento; como pensar no futuro de uma criança que não vai experimentar um sanduíche de banana ou achar normal a pergunta “o que é isso?”, e a seguir o rogo “me dá um pedaço”. O que dizer de uma geração que não vai se alegrar com a campa anunciando a hora do recreio.
Educação à distância não ativa a solidariedade, nega o florescer da generosidade, sufoca o companheirismo. Suprime experimentações gastronômicas. Propõe uma geração de robozinhos egoístas, arrasta nossos filhos para dentro de um eu solitário e derrotado. Como advertiu minha avó, admitir este tipo de futuro é socar-se dentro de uma camisa de onze varas.



sábado, 10 de novembro de 2018

crônica da semana - a perereca sapeca


A perereca sapeca
Mesmo que a gente seja alheia à pesquisa, tenha horror a uma consulta rapidola ou que despreze qualquer informação mais aplicada e objetiva, não tem escapatória. Ao nos depararmos com aquele bichinho de pernas finas e longas, de fácil fixação nas paredes; ao perceber aqueles olhões esbugalhados, e tanta agilidade nos saltos, instintivamente, admitimos se tratar de uma perereca.
O susto abona a definição taxonômica. Toda vez que encontrava uma em casa, não pensava ser sapo ou rã. A espécie que me ocorria enfrentar em longas tentativas de devolução ao seu habitat, era a perereca.
Não tivesse eu uma necessidade qualquer de abrir aquele armarinho que ficava embaixo da pia, não nos toparíamos. Um lugar escuro, úmido, de vez em vez a companhia de um barulhinho familiar de água correndo, era um ambiente agradável para a bichinha. Deixa estar que, foi-não-foi era um susto e um salto.
Morava na Vila dos Cabanos, lugar que tinha uma concepção urbana, à época, ainda tolerante com áreas verdes e uma população animal diversa. Era comum, nossa casa ser visitada por camaleão, cobras, pequenos roedores, e toda a linhagem de anfíbios. Na maioria das vezes as visitas ficavam do lado de fora, pelo quintal, no alpendre. Só a apresentada da perereca é que ousava uma intimidade.
A cada encontro, uma luta para convencer a zoiuda a voltar para a casa dela. Era uma peleja. Usava de vários artifícios. Fazia menções, batia palma. Gritava uhuu! Mas, à menor aproximação, a perereca se desviava com um salto espetacular. Se pregava no fundo de uma prateleira, atrás da porta. Até que desaparecia num estratégico e insondável esconderijo. Eu sempre desistia. Deixava pra lá. Aceitava aquela convivência conflituosa e gosmentinha.
Um dia, sem que a malícia me acometesse. Num indiscutível acaso, flagrei a bichinha saindo de casa. Estava ao pé da porta, aquele corpo esverdeado. Esticou as pernas, vergou o dorso, foi se ajeitando, se arrastando. Se espremendo contra o chão. Passou a metade do corpo. Fiquei só observando aquele contorcionismo. A outra metade, que ainda ficou para dentro de casa, foi se adelgaçando, se esticando, até que foi deslizando pela fresta da porta, para fora em silêncio e sem traumas. Uma frustração me abateu. Tantas vezes, abri toda a casa, dando várias opções para que a perereca se escafedesse. Estimulei, Incentivei com palavras pouco simpáticas. E ela preferiu sair naquela situação desafiadora, de apertos e deselegantes adelgaçamentos abdominais.
Este desfecho aconteceu, penso eu, outras vezes, sem meu testemunho. Foram muitas visitas. Não eram, obviamente, os mesmos indivíduos (morei mais de quinze anos na mesma casa e acho que nem a luta diária contra os predadores, nem as agressões urbanas, garantiam tanta longevidade às pererecas). Estava na natureza delas que, no mesmo repente que apareciam e causavam um rebuliço em casa, espremiam-se sob a porta e desapareciam.
A perereca sapeca é uma unidade contestadora, um ensinamento. Estabelece e fortalece o instinto e me estimula a acreditar que o susto pode ser superado e reinterpretado.



sábado, 3 de novembro de 2018

crônica da semana- arroz integral


Arroz integral com chicória
Um filme vai rodando na minha cabeça enquanto vigio aquela porção de arroz que está no molho de ontem pra hoje. A ansiedade é controlada, a expectativa é medida, naquele rito paciente de hidratação. E o filme em quadros velozes de milesegundos pra menos, desliza na tela submissa da minha memória.
(As passagens alegres de amigos diversos, os beijos escondidos de quintais, a verruga sangrando que nunca sarava. O estrepe no pé, o golpe beiçudo, o tempo cinza com cara de que vai chover já já).
O arroz integral tem aquela cor sujinha, como se fosse catado e esfregado no terreiro. Repousa sob um tanto de água desde ontem e o tec tec da memória passa e repassa lembranças. Acho que é bom estender os braços sobre a mesa, descansar a cabeça mesmo sem conforto, apoiada na cava do ombro e, sem perder o silêncio da terrina do arroz de vista, sonhar de olho aberto.
(Bicicleta desembestada no prumo do igarapé do Zé. Te ajeita, menino, passa um talquinho e vem pro alpendre apreciar o movimento da tarde. Come e te conforma. Dorme, dorme, te aquieta que a fome passa. O turvo dos dias ameaçam o presente. Retrohistória sem luz. Blecautes de razão. Homem ao mar de horrores. O moleque malino saindo lá detrás pra chutar a canela do coleguinha cá na frente. Humilhação e pobreza. Coroa de espinhos no dedo mindinho. Alicate aparando as unhas. Intolerância com o outro. Inveja. Torpeza).
“O arroz integral diminui os problemas intestinais. Melhora o metabolismo da glicose nos diabéticos. Protege o sistema nervoso devido à vitamina B1, aumenta a saciedade.”
Quando sai da terrina e vai ao fogo, o arroz integral cresce em conceito e propriedades. Depois de pronto, uma colher das de sopa, basta para garantir um cumê de sustância. Parece que a gente comeu um alqueire todinho naquela colherada.
Mas ainda não é tempo. A hidratação ajuda no cozimento, catalisa o ponto al dente. Enquanto não se embebeda de funções e qualidades úmidas, a porção dentro da terrina é por mim velada com carinho e atenção.
(Recortes controversos de saudade. Amigos mortos. Amigos desaparecidos. Gente estúpida do faz de conta. Gente que brilha e se alia. Cenas desconcertantes se desdobram. Em amor. Mamãe. Cidadã que criou 4 filhos que se estranham, que se arranham. Não são vossos filhos. São filhos e filhas da ânsia louca, do delírio santo, do estresse vivo. Do desvelo e das tristes descobertas de sarjeta e de bancos de praça abandonados à sorte da noite. Amigos sumidos. Irmãos sozinhos).
Houve de por agora, eu abandonar o arroz limpinho, brilhosinho, o arroz branco polido e me bandear para o arroz integral sujinho. É hora de experimentações subordinadas aos vereditos da natureza. O tempo é de cautela. É a vez de desopilar o humor, de enfrentar insanidades com a razão e um maço de chicória.
Enquanto não recuperamos o tino; até que tornemos do mitológico reino de Hades, até que desçam os letreiros, acendam-se as luzes e até que acabe o filme que passa na minha cabeça, a porção de arroz integral dentro da terrina é por mim velada com espanto e apreensão.