sábado, 29 de março de 2014

crônica da semana - pé de galho

Pé-de-galho e outros parças.
De vera mesmo, o Pé-de-Galho nunca existiu. É uma criação minha para alentar o desejo de ter uma turminha do barulho na juventude, igual àquela do Chembra, porque, diga-se lá: eles cortavam e aravam.
Euclides “Chembra” Bandeira era jornalista. Não o conheci, assim, de palmo em cima, mas o admirava pelos seus textos, principalmente as história que ele publicava no PQP, o jornal do Comendador Raymundo Mário Sobral.
Fazia crônicas memorialistas e as agrupava sob o título de “Memórias de um anti-herói”. Uma narrativa permeada de humor e ativada por personagens além da conta de atentados, como o Faz-que-morre, o Portuga, o Espernegado...Tipos que campeam nos arrabaldes de Belém.
Toda vez que eu pegava um exemplar do PQP, desviava logo para a coluna do Chembra, para saber das últimas da molecada. Era um exercício de reconstituição, porque embora não houvesse na minha história, turma tal e qual, as genéricas haviam.
Pindoba, Torto, Galo, Diz-que-Tem e Fogoió formavam a primeira que atinei, quando vim do Acre. Eles orbitavam o Bar Pedra Noventa, ali na Lomas com a Marquês e se trançavam também em embates duríssimos na bola de travinha que rolava no leito pedregoso da rua. Foram essas as referências que me ficaram desta turma. Uma patota setentista, comportada, quedada ao som da vitrola e ao pneu número 5. Era a turma do canto da Marquês. Não tinham maldade, embora, vez ou outra, arrumassem uma arenga, até entre eles mesmos. Nada, porém, que cancelasse presenças, nada que limasse encontros em uma festinha ao som do ‘Sonoro do Roberto’. Nada.
A outra turma que me frequenta a memória e que deixou marcas, era formada pelo pessoal da Mauriti. Dessa, eu era parte integrante. Nosso negócio era futebol. Desbravamos a Augusto Montenegro até os confins do Tapanã, rompemos os limites interioranos do Tenoné, nos infiltramos pelas alamedas do Coqueiro, acho que bem antes da Primeira Cidade Nova, tudo por causa de uma bola.
No princípio, formamos o Santos do Meio da Rua. Um time que contava somente com os moleques da banda de cá da Marquês, os outros, da outra banda da Mauriti, que ia dar na Pedro Miranda, compunham o grupo dos arredios. Misturavam-se pouco. O Santos do Meio da Rua não durou muito. Tudo era na base do faz-tu-mesmo. A gente comprou os escudos, os números, as camisas, tudo, de acordo com as posses de cada um. Nosso uniforme saiu uma graça. Escudos alinhavados, números tronchos; malhas, umas de fio 24 outras de tramas bem ralinhas. Um look pra lá de avacalhado. Não preciso dizer que no primeiro jogo, depois da primeira peia, uns partiram contra os outros para malhar as camisas. Voltamos pra casa todos rasgados e desistimos do Santos. Chamamos seu Dori, que achava que a gente tinha futuro, fizemos uma aliança com os moleques da banda da Pedro Miranda, arrumamos uma vaga (e, claro, patrocínio) para o filho do dono da padaria e criamos o ‘combatido, porém, jamais vencido’ Internacional da Mauriti. E só com os escolhidos: Bem-te-vi, Bossa, Nikila (que nas horas vagas zelava pelo Cinema Paraíso) e Mandinho. Pau Preto, Nelson, Rico e Francisco. Toninho, Tatinha e Humberto. Ganhamos um jogo de camisa elegantérrimo.
Éramos também a galera que se reunia na frente do cinema Paraíso de noitinha, pra tentar entrar de graça. Não arengávamos com ninguém, no máximo havia um que empastelava, jogava vidro no canteiro gramado da Duque, nosso campo de treino-pelada chique, por causa de um gol mal interpretado e a condenação a uma grade demorada.
Pé-de-Galho, em outros tempos, já integrou este time. Hoje tá no banco. É só uma invenção.


terça-feira, 25 de março de 2014

crônica remix Mãe - 13 de dezembro

Mãe
Sempre dou uma atenção especial ao dia 13 de dezembro. Não que ele represente um dia de comemoração. Talvez, seja bem mais, um dia de descomemoração. É um dia, porém, que merece um recolhimento. Uma reflexão. Em 13 de dezembro de 1968, foi editado o imperioso AI-5.
Acho que o Brasil caminhou bastante, nesses últimos 20 anos. Ressalvo que tenho uma esperança danada no futuro e que não sou de ficar reativando dores gratuitas. Mas sustento que esse período da história que, aliás, ao contrário de gratuito, nos foi muito caro, deve sim, ser revisitado com os requintes realistas possíveis. Até como forma de alerta, de proteção. Como elemento de referência de métodos e de autocrítica das ações (tanto da Esquerda quanto da Direita, diga-se).
Bem a propósito, no sábado, 13, eu estava fuçando uns sítios na internet atrás de um material que falasse da promulgação da Declaração dos Direitos Humanos. Por afinidade com o tema, acabei varando no you tube. Encontrei lá uma seqüência retirada do programa Linha Direta que contava a história de Zuzu Angel.
O filho da estilista estava desaparecido há quatro anos. Ela, incansável na busca de Stuart, enfrentava os militares, desafiava o poder ilimitado da época. Procurava, procurava, abria caminho entre os porões da ditadura, perambulava pelos labirintos do DOI-CODI e sempre tinha respostas evasivas ou suspeitas negações.
Eu já tinha visto o programa, e lembro que além da história duplamente dramática (a própria Zuzu seria vítima, também, do regime), impressionou-me bastante a interpretação da atriz Zezé Polessa.
Na quarta parte do programa, é reproduzida a cena em que Zuzu recebe uma carta do preso político Alex Polari relatando as circunstâncias da morte de Stuart Angel. O destino, muito cruel com Zuzu, reservou para ela, toda a verdade sobre o paradeiro do filho, exatamente na véspera do dia das mães. A carta de Alex Polari era “uma carta terrível” como relata a colunista Hildegard Angel, irmã de Stuart, em emocionado depoimento para o programa.
Na seqüência, a atriz Zezé Polessa protagoniza um dos momentos mais sublimes da teledramaturgia brasileira. Ela interpreta a  Zuzu mãe, no momento em que ela toma conhecimento das barbaridades cometidas contra seu filho. A leitura é feita em voz alta. No início da carta, a atriz sugere um certo alívio de mãe, por confirmar, enfim, que o filho estava nas mãos dos militares. Havia sido preso 4 anos antes e levado para as instalações do aeroporto do Galeão. Mas depois, ao saber os horrores da tortura que o filho sofreu, ao descobrir que o filho “teve seu corpo arrastado por um carro” que o seu menino “por várias vezes teve a boca encostada ao cano de descarga do automóvel”... e “com o corpo todo esfolado, foi deixado a noite toda sozinho, sem tratamento a pedir água, água, água...”, o discurso se faz à beira do transe, do descontrole total. Zezé Polessa é a própria e inconsolável mãe desesperada, desamparada. Uma Pietá sem corpo pra velar. A partir daí as revelações da carta se mostram em frases entrecortadas, em soluços, em gestos débeis e desatentos. Percebe-se parte da mãe se desgarrando, o filho sendo arrancado brutalmente do seio provedor e sumindo, sumindo, morrendo. A cena se condensa em um sofrimento insuportável. Esgota-se em aflição.

A imagem provoca uma mistura de sentimentos na gente. Coisa forte. Ao fundo, a música “Angélica”, que o Chico Buarque fez com Miltinho, para homenagear Zuzu Angel, me comove e ratifica a tradição de que qualquer reflexão sobre o 13 de dezembro, por mais fria e distante que procure ser, sempre me faz chorar.

sábado, 22 de março de 2014

crônica da semana - pororoca

Ouviu esse barulho aí?


É a pororoca que vem pororocando com mais de mil pelos canais dos nossos rios. É a força da maior das sizígias rompendo a pedra do Ver-o-Peso e levando o banzeiro para além do Boulevard. É o tempo das marés altas submeterem as margens, e mais têi têi ainda, neste ano, somadas a essa ruma de água que desce do Madeira, do Xingu, do Tocantins em porções pra lá de taludas. É água pra mais de metro. Pode arregaçar as calças porque, daqui pro fim do mês, pra comprar um quilo de piramutaba no mercado de peixe, um maço de cheiro na banquinha da beira ou um punhado de verduras  ali na calçada dos sortidos, vamos ter que encarar uma maresiazinha. 
A Pororoca acontece como resultante de vários fenômenos astronômicos. Um deles é o Equinócio. Para mim, o mais misterioso, o mais socialista dos movimentos domésticos do sistema solar (e o mais referenciado. A partir do equinócio é que se determina a data do carnaval). Compreende a posição da Terra em que os raios solares iluminam igualmente os hemisférios Norte e Sul. E também, reflete um trecho do traslado celeste, em que a Terra está um issozinho mais perto do sol. E aí, maninho, o astro-rei, atracando nosso planeta exatamente pela cintura equatorial, não alivia. Usa de todo o seu poder e sedução. Põe a força gravitacional pra chulear. A Terra se vê, nas suas partes mais sensíveis, revolvida, remexida. Os mares se excitam, se assanham, só faltam pular para o espaço infinito. São as grandes marés. Elas vêm bater aqui na pedra do Veropa, dobram a esquina do Guamá e vão arrebentar, com alarde, nos domínios do rio Capim. 
O equinócio ocorre duas vezes por ano, provoca grandes marés em março e setembro, mas aqui no vale do Amazonas, é mais intenso, a gente sente mais, agora, no início do ano. Em setembro é mais discreto porque os rios amazônicos, nesta época, por estarem na seca, contribuem pouco com o volume d’água e a maré é tão comportada que mal chega a lamber a pedra do peixe. 
É uma breve estação na viagem que a Terra faz ao redor do sol, o Equinócio. E tão certo como o alagamento da Marechal Hermes é esta posição ao longo do ano. É conta batida. Sem falha. Traduz, na sua pontualidade, a ordem universal. A harmonia cósmica. A disciplina sideral. Em Março ou em Setembro, lá está a terra, no seu cantinho. De um lado. De outro. Simetricamente posicionada no condomínio solar. Um exemplo eterno de obediência. A cada seis meses, oferecendo o Equador para ser o meio de distribuição igualitária de calor tanto para os poderosos do Norte, quanto para os bárbaros do Sul. É como se Gaia nos quisesse dizer que somos iguais, nos alertasse para a partilha e para a interação fraterna. 
Sou meio encantado com essas marcações conservadoras. Extremos da Terra me interessam. Os traçados do céu também. Equinócio, Solstício... Todos são desenhos naturais imutáveis ou, no mínimo necessitam de quase uma eternidade para mudar de traço e jeito. Quer dizer, inalterável, para além das fronteiras estelares. Aqui pra gente, um ziguezague no tempo até que pode. Assim pela lei das coisas, o Equinócio deveria acontecer sempre no mesmo dia, se em março, dar-se-ia após o ciclo de 365, 25 dias, o tempo de uma volta completa em redor do sol. Este ano aconteceu no dia 20. Mas já ocorreu, em outros anos, no dia 21. Fica assim, entre o dia 20 e 21 de março. Se Kepler estivesse por perto, eu pediria pra ele me explicar esta subversão na simetria da elipse. Em todo caso, vou me preparar, para, no sábado próximo vindouro, dar uma voltinha pelas beiradas do comércio de Belém e apreciar, encantado, as águas de Março. 


sábado, 15 de março de 2014

crônica da semana - o madeira

O Madeira engoliu o Acre
O rio Madeira, na frente de Porto Velho, se acalma. Bem na descida do museu da ferrovia, faz um remanso auspicioso, quase silencioso.  Retrai-se comedido, afável. Descreve um extenso volteio em baixa velocidade, ganha o canal, e lá ao longe ressurge irrefreável. Traça um percurso versátil, contraditório, envolvente e sedutor, na frente da cidade. Como se quisesse ser contemplado, apreciado com atenção e prazer.
Nos quatro anos que passei em Porto Velho, era minha batidinha certa, apreciá-lo. Em pontais moldados à margem do rio, dispunham-se alpendres aprazíveis, espaços de lazer que se sobressaiam na paisagem, conhecidos como ‘mirantes’. De lá avistávamos alguns pontos marcantes do centro da cidade; acompanhávamos, até um certo trecho, os trilhos da ferrovia e reconhecíamos lá embaixo Mad Maria, a famosa locomotiva luzindo ao sol. Mas o que inebriava mesmo era o garbo do rio Madeira deslizando ao largo dos pontais.
Virando de rumo um pouco, ao levantar da vista, no curso acima, o rio exibe as primeiras ilhas encravadas no meio do canal, um borbulhar tímido e laços simétricos de água contornando as elevações dispersas. Se a gente teimar, a vista ainda alcança os primeiros sinais da cachoeira de Santo Antônio, um tantinho adiantado mais além.
Conheci as cachoeiras próximas de Porto Velho. A partir de Santo Antônio, que foi o embrião da cidade, a inclinação do rio sofre acentuadas, sucessivas alterações. Começam as sequências de vertiginosas corredeiras. Santo Antônio, Teotônio, Jirau, Caldeirão...
Temidas e amadas. Verdadeiras e romanceadas (a história da donzela que se afogou em uma das cachoeiras porque queria transportar um piano rio abaixo desde a Bolívia está presente tanto na composição ficcional de Márcio Souza, em “Mad Maria”, quanto na narrativa histórica de Manoel Rodrigues Ferreira na pesquisa que gerou o raríssimo “A Ferrovia do Diabo”). No curso à montante, o rio Madeira inclina-se à soberba. É um rio genioso. Armado em seu leito de poderosos blocos rochosos. Nada amistoso,  aceita poucos em seu leito. A estrada de ferro Madeira-Mamoré surgiu, exatamente como alternativa a este jeito indócil do Madeira, à sua pouca vocação à navegação. Quem por ele se arriscava, como a donzela e seu piano, não varava do rebojo.
Por esta pujança, o Madeira foi tragado pelo progresso e já que não foi doutrinado à hidrovia, não sem dor, dobrou-se às grandes barragens. Já estão em estágio avançado de construção, as usinas de Santo Antônio e Jirau.
O nível do rio Madeira em Porto Velho atingiu a  cota mais alta dos últimos 100 anos. Está mais de 18 metros acima do nível normal. Parte da cidade está submersa. Ao longo da BR 364, já entrando no Acre, a rodovia desapareceu sob as águas. O transbordamento do Madeira para além das margens inundou a estrada nas regiões em que ela passa rés-o-rio e isolou o Acre. O acesso por terra hoje só é feito com muito heroísmo. Há milhares de desabrigados na região.
Assim, de prima, seria leviandade culpar as hidrelétricas por estas inundações. Mesmo porque, lá do outro lado, ao norte, o rio Acre também subiu, alagou parte de Rio Branco e, pelos conformes, não é íntimo do Madeira.

O que é certo é a ratificação de um regime de chuva distinto com origem nas regiões do Brasil central, e que alimenta, de forma bem generosa este ano, os rios da margem direita do Amazonas (aqui embaixo, o Tocantins e o Xingu já crescem de tamanho). Entretanto, tal como se mira o peixe e o gato, há de se mirar à montante e à jusante, porque os rios, é bem capaz que reajam, percam a calma, quando se veem barrados.

quinta-feira, 13 de março de 2014

crônica remix - altamira

Altamira do Xingu
Era uma noite singularmente bela. Estávamos na época da vazante. O rio Xingu havia migrado das margens e deixado para trás um aprazível rastro de praias e múltiplas lagoas. Naquela noite, estávamos inquietos (ou, ‘desinquietos’, como, com muita propriedade, definiam os peões). Era a véspera de baixarmos para a cidade, depois de uma esmerada campanha no feixe de diques projetados para a barragem de Belo Monte. A ansiedade tomava conta da gente.
Tudo arrumado para a debandada, deixamos os barracos, e ganhamos a praia para descontrair um pouco com uma prosa e apreciar o céu. E que céu!  (a gente, na cidade, perde a noção do quanto o céu noturno é deslumbrante. Estamos acostumados com um conjunto limitado de estrelas ou com uma faixa difusa, esbranquiçada, tomando conta da noite. Em lugares afastados e com pouca iluminação incidente, entretanto, o que era uma ligeira impressão, uma vaga lembrança, um tímido estímulo aos olhos domados pela urbanidade, se transforma numa malha cintilante infinitamente preenchida por pontos brilhantes. Extravagantes, desinibidos).  Naquela noite, o céu, solidário com aquela margem esquecida do mundo, e de par com a suntuosa planície do Xingu, estava absurdamente bonito. Inesquecível.
O rio Xingu murmurava ao longe, entre os caminhos encachoeirados, e nós ali, naquele momento, usufruíamos das boas heranças deixadas pela sua benevolência (as lagoas que são formadas quando o Xingu seca, aprisionam uma enorme quantidade de peixes. Durante todo o período que passávamos acampados, sempre sobrava um tempinho para mariscar. Fazíamos um curral e íamos concentrando ali a nossa produção. Aquilo era uma bênção. Nos primeiros dias, a gente pegava peixe até sem isca. Até eu, que tinha uma pissica danada, pegava uns taludos assim, ó, deste tamanho (quer dizer, quer dizer...Um pouquinho menor). Depois, ficavam ariscos, mais difíceis, mas no início, vinham sem reclamar. Na cidade, aquele peixe era de muita valia. Era sinal de mesa farta para o nosso povo, que naquele trampo desgastante, não ganhava o quanto merecia, ou melhor, ganhava só o do aviamento do mês, e olhe lá. As lagoas do Xingu, então, ajudavam, e muito na ‘intera’). Aquela noite cheia de estrelas, e de peixes formigando no curral, era a ante-sala da cidade. Precisava passar. Mas nos convenceu, de que não havia pressa...
Chegando em Altamira, cada qual com a sua fieira, era hora de cuidar. Ali, as coisas mudam. A batida é outra. Não havia, mais a relação de trabalho, ou tarefa. Não havia o ‘sim, senhor’ incômodo. A gente se distribuía pelas esquinas e cada um ia procurar, ao seu jeito, viver.
Eu, como não tinha um pinto pra dar água, dividia a minha quota, atravessava a ponte e me socava, no domingo, lá pro bairro da Brasília, na casa de um ou de outro para um peixe frito com caipirinha.
No período em que a gente ficava na cidade, de folga, era assim. E eu ficava descobrindo ‘o jeito de ser’ daquele povo adorável. E me envolvia. Tentava aprender umas palavras em Kaiapó com o Chico, com o Pedro Cruz, com o seu Zé. Admirava o talento do Robério na arte do entalhe (aliás, Robério dominava todas as artes). Buscava aprender com o Pereira, com o Ricardão, com o seu Elcino, com o Cristóvão, os segredos para administrar uma família. Encontrava na minha irmãzinha Cléo, o conforto e o acalanto que um homenzinho de 23 anos sempre precisa quando está longe da mamãe.
Altamira mora no meu coração. As lembranças que tenho de lá falam de um céu com bilhões de estrelas; falam de um povo delicado e companheiro e falam de um rio extremamente generoso.

Altamira é do Xingu e o Xingu jamais faria mal à sua gente.

sexta-feira, 7 de março de 2014

crônica da semana- dia internacional

Papo (sério) de carnaval
Eu saí à rua, exclamando no qual pega: “a gente ouve cada coisa, cada marmota, cada presepada!”. Meio azuruote, não acreditando que um pensamento tão selvagemente dominador ainda exista.
Carnaval a gente sabe, né, fazemos poucas exigências, nos damos licenças e permissões, tudo em nome da alegria. Eu estava comedido, porque estava apertado, na fila do banheiro. E éramos os dois exemplares da espécie, ali lado a lado, com nossa fisiologia apartada por duas frágeis portas. Dividíamos o corredor até o momento final de escolhermos e adentrarmos as portas devidas. Enquanto isso, prosas e ambiguidades rolavam. Saliências e maledicências eram disparadas do meu lado de cá, para o lado delas. Pelo que entendi, eram pequenas provocações, porque a gente estava em tempo de se não aguentar mais e um alarido despretensioso acabava por dissimular a dor na bexiga. Tudo bem. Rola mesmo essa liberalidade na hora da agonia. Lembro que havia na minha frente, um rapaz, bem saidinho que exagerava nas propostas. Um senhor mais maduro se agitava atrás de mim, mas pouco falava. Antes que o banheiro nos fosse franqueado, captei a mensagem: o rapaz insinuava que se alguma das moças do lado de lá lhe atendesse ao menos com um selinho, daria a ela o privilégio de se antecipar às outras e usar o banheiro masculino, sob sua égide. Foi agraciado uma sonora vaia e alguns solavancos verbais. Caso passado, entramos os três, no banheiro. Tomadas as posições, fiquei mais sério que bode embarcado, uma porque não falo com estranhos, ainda mais no banheiro; outra, porque emburrei. Na frieza do desprezo, o rapaz começou a declamar ofensas contra as meninas, no que foi seguido, sem ponderações, pelo senhor mais maduro que eu pensava ser um tantinho mais sensato. E naquele tempinho, ouvi canalhices abomináveis, saltando com inconteste prodigalidade, da índole selvagem daqueles pobres diabos.
Tratavam as mulheres, não as mulheres da fila, me parece que todas as mulheres do mundo, com indisfarçável ira, com um primitivismo  de dar medo. Argumentavam, ali dos seus quadrados que, se era carnaval, as mulheres deveriam vir disponíveis para atender aos anseios dos homens. Se era pra curtir, tinham que vir sem reservas, se sujeitarem. Aderirem aos apelos da carne mesmo que impuros e fartos. Mesmo que sujos ou impositivos, autoritários. Percebia que eles estavam contrariados porque não estavam encontrando reciprocidade para os seus “instintos bestiais”, e esta frustração não lhes causava pudor em destruir a imagem das mulheres. Brutos, mal talhados moralmente, mas covardes. Vociferaram enquanto estávamos atrás da porta, no entanto, quando saímos e demos de frente com a tropa feminina novamente, se recolheram aos seus instintos. Eu ainda os vi sumir, pelo asfalto em meio aos foliões. Exclamei, reclamei em voz alta deles, e tomei termo e cuidado. São esses os caras que se misturam às alegrias do carnaval e potencializam tristezas.
Fui criado numa casa só com mulheres. Minha mãe e três irmãs. A minha vida toda, tenho aprendido com elas. A me defender...e a atacar...
Estava com minha filha, minha companheira, amigas da minha filha, a petizada da Geologia. A presença feminina no nosso bloco era expressiva. Fiquei piriricas com a postura dos caras. E elas, ah, elas me tranquilizaram. Conhecem a peça-homem. Sabiam reagir aos embates atávicos. Estavam no comando. Convencido do poder das mulheres, embora tenha adestrado o olho aos movimentos, desopilei da minha vingança saramaligna. Protegido por elas, não perdi o domingo e, na paz, nos divertimos a valer.

terça-feira, 4 de março de 2014

crônica remix - paulo xuxa e

Paulo, Xuxa e Eu
O que um descendente da República acreana teria em comum com Xuxa e Paulo Coelho?
Mais que depressa a gente dispara: nada, absolutamente nada.
Mas quite! Tenho sim. Vou começar pela Xuxa:
Não, não temos em comum encantadores olhos azuis. A nossa parelha é o dia 27 de março, aniversário da loira.
Todo baixinho que varou as manhãs das últimas décadas hipnotizado pelos xu xu xus e xa xa xás da rainha é sabedor desta data.
Pois é, na terça, também conto tempo. Aniversario, aqui na coluna.
Há um ano, eu dava o meu primeiro Bom Dia aos leitores do Magazine, com a crônica “Perdemos Emilinha”.
A missão, para mim, foi uma bênção, um salto extraordinário no ofício.
Mas, num primeiro momento, escrever uma crônica semanal foi, também, uma experiência nervosa, um grande desafio. Depois, fui me acostumando, tomando tento, me adestrando aos 2500 toques.
Tomei por rumo, os sentimentos expressos na crônica “Esta é a Sua Vida”, publicada logo no início, em que eu dizia que ficamos muito à vontade para detonar, esculhambar com os outros, mas temos enormes dificuldades para elogiar, para dar uma força, fazer um mimo. Me impus, então, aqui, criar textos que reflitam qualidades. Sei que isso é difícil pacas, mas temos sim, neste Brasilsão gente muito boa, gente que vale a pena (como o educado cobrador do UFPA-Pedreira, personagem da crônica de julho  e minha querida Emilinha Borba, homenageada primeira).
No estilo, optei por dar preferência aos textos em primeira pessoa. Não sei, talvez porque seja mais fácil, ou porque deixe escapar de mim, uns tiquinhos de verdades. Mas o certo é que me sinto mais livre assim e, ao mesmo tempo, declino, convenientemente, daquele discurso dissertativo: não quero convencer ninguém.
A minha temática reza por dar graça às coisas aparentemente sem. Tenciono provocar a empatia, me esforço para atiçar a curiosidade por coisas que grassam à nossa volta. Ah, foi-não-foi, me empenho em redescobrir Belém e, sem recatos, tento prestar tributos à minha Pedreira velha de guerra, do samba e do amor.
Na medida do possível, nas minhas construções procuro respeitar a sintaxe e ralo para respeitar a coesão e a coerência, mas ambas, por vezes, me ignoram. Portanto, sei que nem sempre consigo ser fiel ao correto discurso, mas cuido para não machucar tanto a “última flor do Lácio”.
E assim, deste jeitinho, vou varando este ano. Pávulo, pávulo com os resultados, confesso.
E o Paulo?

Ah, o mago Paulo Coelho, é meu estimado colega de Bom Dia. Estará brilhando, aqui na coluna, amanhã, como sem falta.

domingo, 2 de março de 2014

crônica re mix - Carnaval

Sonho de carnaval
Há tempos tô com vontade de desfilar meu charme numa das nossas Escolas de Samba. Este ano, tô a fim. Há um astral, mesmo que tímido ainda, pairando sobre o nosso carnaval de rua, mas reconheço ser um astral animador anunciando ‘a festa da carne’, e diante do clima,  já fiz uma jura: vou para a avenida do samba.
A Escola vai ser da Pedreira, é claro. Talvez duas, se o preparo físico de jogador de porrinha permitir. Vou tentar me arriscar também num bloco de empolgação. E se tiver um por aí bem ao estilo  revolucionário do velho Aguenta o Tombo, vou que vou com tudo (é um tombo pra cá/é um tombo pra lá...).
O problema é com que roupa eu vou.
Perdoem-me os diretores de harmonia, mas não tem cristão que me faça vestir aqueles balangandãs multicoloridos, aqueles acessórios, tão carinhosamente idealizados pelos nossos talentosos carnavalescos e que, verdadeiramente, enriquecem as fantasias. Não. Não tem quem faça.
Das alegorias de mão, me poupem: os deuses da folia reclamam as mãos soltas para louvá-los. Adereços e penachos que atentam contra a lei da gravidade, nem vem... Chapéu estilizado que ocupe uma das mãos com a missão menor de equilibrá-lo no cocoruto, eu dispenso: nada de coreografia “moça do leite condensado”.
Sobre os ombros, negatofe.
Nem resplendor de papel laminado, ou arco-íris de isopor, tampouco asinhas emplumadas que ficam entesando a gente na inglória missão de fixá-las. Não. Não quero nadica. Na avenida, meus queridos diretores, eu quero ser livre. Quero esvoaçar pagão sobre o asfalto e mostrar no pé a ginga de moleque pedreirense  e o samba que habita meu espírito.
Também nem tanto, né!
Não vou pleitear um lugar no nicho libérrimo que é a ala dos de sunga e brilho. Eu, heim! Com essa barriguinhazona e esses gravetos (vulgo canela fina), nananina. Não quero ser alvo de comentários populares do tipo “que coisa reeedícula”. Pelos mesmos motivos, declino de uma tanguinha na ala dos Tembé. De tanga? Ah, ah, ah, ah...Olha que as coisas vão sobrar...
Devemos nos entregar à liberdade momesca, mas devemos, também, manter o mínimo de lucidez para evitar a bizarrice. Devemos lembrar que haverá, lá na frente, uma rígida quarta-feira de cinzas a nos esperar com o caderno de contas na mão.
Deus Baco que me livre e guarde, em contrapartida, do alto dos carros alegóricos. Ali, sobre aquela plataforminha tremelicante segurando aquela varinha bêbada, e bêbado eu! Lá pras altura eu é que não vou me abalar. Lá em cima, não abriria nem os olhos, que dirá o samba no pé.
Mas taí: um chapéu Panamá, uma camisa listrada, uma calça de cetim... a sapatilha prateada, a barba por fazer, que tal? Ah, de passista, tipo malandro carioca de gestos leves e faceiros (um desafio para os meus sessenta e poucos quilos, admito), eu vou. Livre para alçar vôos sobre as luzes da avenida, para acariciar o povo animado da arquibancada da Aldeia Cabana, para reverenciar o meu povo da Pirajá, bem localizado, à beira da calçada. Obediente para pedir a bênção dos deuses, livre para desenhar no chão da Pedreira, o meu coração de sambista.
Legal, de passista é que eu vou. Livre para me entregar à poesia do carnaval. Com a confortável possibilidade de, foi-não-foi, fazer par com uma alucinante mulata, com o mistério, com o desejo, com a ilusão e com os sonhos de carnaval.
Ah, fazer par com a maravilhosa mulata...

Sim, eu vou de passista. Mesmo que seja em sonho, é de passista que eu vou.