sábado, 15 de março de 2014

crônica da semana - o madeira

O Madeira engoliu o Acre
O rio Madeira, na frente de Porto Velho, se acalma. Bem na descida do museu da ferrovia, faz um remanso auspicioso, quase silencioso.  Retrai-se comedido, afável. Descreve um extenso volteio em baixa velocidade, ganha o canal, e lá ao longe ressurge irrefreável. Traça um percurso versátil, contraditório, envolvente e sedutor, na frente da cidade. Como se quisesse ser contemplado, apreciado com atenção e prazer.
Nos quatro anos que passei em Porto Velho, era minha batidinha certa, apreciá-lo. Em pontais moldados à margem do rio, dispunham-se alpendres aprazíveis, espaços de lazer que se sobressaiam na paisagem, conhecidos como ‘mirantes’. De lá avistávamos alguns pontos marcantes do centro da cidade; acompanhávamos, até um certo trecho, os trilhos da ferrovia e reconhecíamos lá embaixo Mad Maria, a famosa locomotiva luzindo ao sol. Mas o que inebriava mesmo era o garbo do rio Madeira deslizando ao largo dos pontais.
Virando de rumo um pouco, ao levantar da vista, no curso acima, o rio exibe as primeiras ilhas encravadas no meio do canal, um borbulhar tímido e laços simétricos de água contornando as elevações dispersas. Se a gente teimar, a vista ainda alcança os primeiros sinais da cachoeira de Santo Antônio, um tantinho adiantado mais além.
Conheci as cachoeiras próximas de Porto Velho. A partir de Santo Antônio, que foi o embrião da cidade, a inclinação do rio sofre acentuadas, sucessivas alterações. Começam as sequências de vertiginosas corredeiras. Santo Antônio, Teotônio, Jirau, Caldeirão...
Temidas e amadas. Verdadeiras e romanceadas (a história da donzela que se afogou em uma das cachoeiras porque queria transportar um piano rio abaixo desde a Bolívia está presente tanto na composição ficcional de Márcio Souza, em “Mad Maria”, quanto na narrativa histórica de Manoel Rodrigues Ferreira na pesquisa que gerou o raríssimo “A Ferrovia do Diabo”). No curso à montante, o rio Madeira inclina-se à soberba. É um rio genioso. Armado em seu leito de poderosos blocos rochosos. Nada amistoso,  aceita poucos em seu leito. A estrada de ferro Madeira-Mamoré surgiu, exatamente como alternativa a este jeito indócil do Madeira, à sua pouca vocação à navegação. Quem por ele se arriscava, como a donzela e seu piano, não varava do rebojo.
Por esta pujança, o Madeira foi tragado pelo progresso e já que não foi doutrinado à hidrovia, não sem dor, dobrou-se às grandes barragens. Já estão em estágio avançado de construção, as usinas de Santo Antônio e Jirau.
O nível do rio Madeira em Porto Velho atingiu a  cota mais alta dos últimos 100 anos. Está mais de 18 metros acima do nível normal. Parte da cidade está submersa. Ao longo da BR 364, já entrando no Acre, a rodovia desapareceu sob as águas. O transbordamento do Madeira para além das margens inundou a estrada nas regiões em que ela passa rés-o-rio e isolou o Acre. O acesso por terra hoje só é feito com muito heroísmo. Há milhares de desabrigados na região.
Assim, de prima, seria leviandade culpar as hidrelétricas por estas inundações. Mesmo porque, lá do outro lado, ao norte, o rio Acre também subiu, alagou parte de Rio Branco e, pelos conformes, não é íntimo do Madeira.

O que é certo é a ratificação de um regime de chuva distinto com origem nas regiões do Brasil central, e que alimenta, de forma bem generosa este ano, os rios da margem direita do Amazonas (aqui embaixo, o Tocantins e o Xingu já crescem de tamanho). Entretanto, tal como se mira o peixe e o gato, há de se mirar à montante e à jusante, porque os rios, é bem capaz que reajam, percam a calma, quando se veem barrados.

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