Sapatinho de crochê
A conta considerava o novelo de linha, a
agulha, uma peça de fitilho e um acessório de bolinha colorida, dependendo do
caso, que servia como atracador.
Eram estes os itens que compunham a planilha
de preços imaginária que mamãe admitia para dar valor aos sapatinhos de crochê
que ela fazia. No arremate final do ponto, dividia tudo por um fator
arbitrário, multiplicava pela simpatia da freguesa, rebatia aquele numerário à
serventia que ele teria na conquista de mais um dia de vida e sentenciava: É
tanto!
O filósofo revolucionário Karl Marx torceria
o nariz para a mamãe porque ela não contou o talento dela e nem o tempo que ela
levou para fazer o sapatinho na hora de botar o preço. Ou seja, o componente
mais importante para a realização de qualquer produto, ela não contava. Fosse
esta força de trabalho de outrem, outras as condições ambientais e sociais,
mamãe teria ficado milionária. Não ficou porque sucumbiu à perversidade máxima
capitalista de explorar a si mesma.
Mas nós, que não atinamos para o lucro, somos
assim desse calibre. Esta composição de preço para peças artesanais, feitas em
casa, funciona desse jeitinho mesmo. Com o chope, que mamãe também fazia,
acontecia o mesmo. Listava os saquinhos plásticos, o açúcar, à época, mais
conhecido na versão feminina, “a açúcar”; as frutas ou os pozinhos artificiais
que ela usava. Pouco importava o fato d’ela acordar de madrugada para ralar o
coco, coar o cuizinho do maracujá, encher os saquinhos, amarrar, arrumar tudo
no congelador. Este trabalho, ela não contava, e um chope pra lá de delicioso
não ia além dos cinquenta centavos de real. Nem o custo da energia ou a
depreciação do liquidificador era embutido no preço final. Resultado: era um
negócio insustentável, sem contar o fato d’a gente, da casa, consumir a maioria
da produção naquela horinha boa de calor depois do almoço. Houvesse algum
lucro, era nessa hora que ele ia s’imbora, não tinha escapatória.
É um custo entender, e concordo que não é
fácil, que o valor das coisas está na gente. No suor que a gente derrama, nos
neurônios que a gente põe pra pirilampar no cocuruto. Não sou douto nem nada
nessas teorias das relações sociais, mas se ainda lembro da minha cartilhinha
de comunista que me acompanhava lá pelos idos de oitenta e tantos, nas reuniões
com os movimentos da Igreja, isto se dá por um tipo de estranhamento, uma
espécie de distanciamento. Uma cisão, um apartamento do que é o nosso trabalho.
Falei que é difícil entender, né, mas quando
estava naquelas reuniões sisudas discutindo os meios, os processos de produção,
a mais valia e a alienação do trabalho; e sentia dentro de mim que não
compreendia patavina, rapidola trazia aquelas teorias para dentro da minha
casa. E logo via minha mãe acordar antes do sol nascer, ralar o coco, coar o
cuizinho...
Agora por esses dias vou retomar minha
cartilhinha e estudar direitinho o valor das coisas. É que no próximo sábado
vou lançar mais um livro na Feira Pan-amazônica, e tô planilhando um preço pr’ele.
Semana que vem sentencio: É tanto! Do jeitinho mesmo da mamãe, quer ver.