sábado, 7 de maio de 2016

crônica da semana - premonição mãe

Premonição
Pensei ser premonição, mas não, era só sono mesmo.
O máximo de fantástica e misteriosa adivinhação que fiz, na vida, foi fornecer, advinda de um sonho, uma sequência que a mamãe fechou todinha no Corujão. E daí, não mais. Até, que noite dessas...
Tínhamos essa coisa, eu e mamãe, de apostar no desconhecido; na atuação do enigmático em nosso enfrentamento diário aos encalacres. Mas ficou nisso. Uma alegriazinha pelos cinco no Corujão.
Mamãe, para garantir, prestava atenção nos acasos, mas não desviava da conta certa. Da pule do Bicho, não largava e nem das obrigações do lar.Tudo na ponta da caneta. Nisso somos parecidos. Elaborava sempre uma listinha, antecipava o que vem a ser hoje a minha planilha em Excel.
Constavam dos apontamentos da mamãe, as contas do mês, o aviamento da taberna, o rancho no supermercado e, é claro, o universo de números reais que combinados infinitamente lhe indicavam o resultado possível do desejado milhar. Tudo medido, contido e pertencido cada um ao seu cada qual. Meu avô era agente estatístico do IBGE. Não sei se mamãe herdou dele estas afinidades com as retas intocáveis no caso das programações domésticas ou a fé nas probabilidades parabólicas exercitada à exaustão, no caderninho dos sonhos.
Depois que mamãe partiu, nunca mais tive nem notícias do Jogo do Bicho. É uma diversão que a mim só se apresenta por indícios, nos dias de hoje. Embora mamãe fosse catedrática, escolada e graduada nas nuances das apostas, eu mesmo nunca me interessei pelas regras ou discernimentos do jogo. Não entendo nada. A mim, só me cabia sonhar. Ter as premonições.
O destino, porém, me reservou ser o guardador do acervo estatístico da mamãe. Um caderno que tenho comigo desde aquele tristíssimo 15 de maio de 1998, mas que por ironia das consequências e sentimentos, hoje me diverte com aqueles números todos dispostos aleatoriamente na face confusa das páginas, na capa, na beiradinha do papel, nas entrelinhas. Uma composição numérica própria, criptografada, que só ela entendia e que a mim sugeria sempre uma combinação devastadora para quebrar a banca com o milhar na cabeça.  O caderninho de notas (o Excel da mamãe) repousa ali na minha pequena biblioteca, junto ao Guimarães Rosa, ao Gárcia Márquez, ao Humberto Eco. Está entre os clássicos.
Noite dessas, alguém aqui em casa, pegou o caderno da estante, leu os primeiros números em voz alta e depois devolveu o caderno pro lugar. Nessa hora, eu estava meio que dormindo, meio que acordado. E algo pressenti no limbo.
No dia seguinte, pensei ter ocorrido comigo uma premonição. Amanheci com a sequência de números na cabeça, corri para o caderno da mamãe e identifiquei na primeira página a mesma sequência. Era uma mensagem.
Com o correr do dia, tudo foi esclarecido. Pensei ser premonição, mas não, era só sono mesmo. Eu ouvi alguém de casa ler, guardei no cocuruto os números, enquanto estava na antecâmara do sono.

E a lida segue, fortemente inspirada em mamãe, com os enfrentamentos diários aos encalacres, algumas vitórias e muitas, mas  muitas alegriazinhas pelos cinco da vida.

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