sexta-feira, 6 de maio de 2016

crônica reix - flor mamãe

Flor mamãe

Eu sempre fui amamãezado. Até hoje. É sentir uma dorzinha, ter umas tristezas, a garganta arder, que gemo e procuro o colo da mamãe. “Quando me encontro no calor da luta”, é a ela que recorro. Mamãe já não está presente fisicamente, mas a lembrança dela me fortalece, me suporta as missões, me garante as conquistas e me apara nas quedas. É a minha heroína, a deusa que me redime e me conduz. 
Uma estrela que luz, Luzia. 
Quando conheceu meu pai, lá nos barrancos do rio Acre, minha mãe era uma bebê. Tinha 16 anos e era normalista em Xapuri. Do casamento com aquele seringueiro, teve 5 filhos. Duas meninas morreram: Roseana e Maria do Perpétuo Socorro. Esta minha irmãnzinha, que foi batizada às pressas com o nome da santa que acode e auxilia, nasceu peca, roxinha, roxinha, e não vingou. Viveu algumas horas, somente. Foi enterrada dentro de uma caixa de sapatos aos pés de uma árvore secular, no terreiro varrido que margeava o barracão. Roseana, mamãe dizia, era bela, cheia de graça e jeito. Já andava, falava e sorria fácil, quando morreu de doença que ninguém sabe qual. 
Das veredas de seringa, varamos no Ver-o-Peso, eu, Mariazinha, Ana Valéria e ainda, minha amada irmã Sônia, que era filha só do seringueiro Manoel Sodré e que mamãe, sem o menor ressentimento, pegou pra criar. 
Viveu o casamento enfurnada, Luzia, entre as ruas de seringa, as águas ferozes do igarapé Ina e o mistérios da mata densa. Morava no seringal e, embora professora formada, tinha uma rotina de dona de casa. Meu pai, junto com meus tios Rubem e Rui, era arrendatário de uma área enorme, controlava a vendas de borracha e o movimento no armazém. Cuidavam dos negócios. A organização social básica do seringal admitia a distribuição de famílias em localidades chamadas ‘colônias’. À flor mamãe, cabia a função de ser madrinha dos filhos dos ‘colonheiros’ (conheço assim, e não colonos, como se usa dizer). 
Mamãe era paraense, passou uns tempos no Acre, casou-se. Gerou nosotros acreaninhos e quando voltou a Belém, viemos pegados na barra da saia dela. Cada qual com o seu casaquinho, porque esperávamos encontrar aqui o mesmo frio que fazia no Acre. As razões pelas quais deixou o seringal e voltou a Belém, são irresolutas até hoje. Eu por mim, penso que veio, porque não iria se submeter à sensaboria de uma vida de senhora do barracão, submissa e compreensiva. Veio para a sua Belém, para ter brilho próprio, para tecer seu destino, para ter sua obra e sua graça. 
Pouco tempo depois de desembarcarmos no Ver-o-Peso (não lembro bem, sei que era tempo de Brasil il il! nos radinhos de pilha e gols de Pelé), meu pai seringueiro morreu. Foi aí, que aquela mulher que só sabia ser madrinha, surpreendeu. Superou-se em façanhas e criatividade para criar os quatro pequenos. Papai, que era um homem do momento, que vivia o dia apenas, não nos deixou nada (a não ser muita saudade). 
Nos últimos anos de vida, mamãe, abatida pela tosse e pelo gogo excretado, já não tinha a mesma tenacidade, mas continuava objetiva. Quando eu arriava prostrado no fundo da rede, com dor de garganta, era batata. Ela enchia uma colher com uma meleca viscosa de mel de abelha, andiroba, limão. Pertinho de mim, tremia, derramava a metade da mistura e me breava todo. Enfiava a colher na minha boca e ao retirar, puxava assim, deslizando a superfície da colher sobre meus lábios, nariz, olhos, cabelos. Após esta sessão tensa, ríamos a valer. N’outro dia eu amanhecia bonzinho da silva. Mamãe me curava. 
Sou amamãezado, se tenho dor, choro, gemo, chamo mamãe e Luzia se faz luz, me ilumina, e me dá colo. 

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