sábado, 28 de maio de 2016

cronica da semana- sapatinho de

Sapatinho de crochê
A conta considerava o novelo de linha, a agulha, uma peça de fitilho e um acessório de bolinha colorida, dependendo do caso, que servia como atracador.
Eram estes os itens que compunham a planilha de preços imaginária que mamãe admitia para dar valor aos sapatinhos de crochê que ela fazia. No arremate final do ponto, dividia tudo por um fator arbitrário, multiplicava pela simpatia da freguesa, rebatia aquele numerário à serventia que ele teria na conquista de mais um dia de vida e sentenciava: É tanto!
O filósofo revolucionário Karl Marx torceria o nariz para a mamãe porque ela não contou o talento dela e nem o tempo que ela levou para fazer o sapatinho na hora de botar o preço. Ou seja, o componente mais importante para a realização de qualquer produto, ela não contava. Fosse esta força de trabalho de outrem, outras as condições ambientais e sociais, mamãe teria ficado milionária. Não ficou porque sucumbiu à perversidade máxima capitalista de explorar a si mesma.
Mas nós, que não atinamos para o lucro, somos assim desse calibre. Esta composição de preço para peças artesanais, feitas em casa, funciona desse jeitinho mesmo. Com o chope, que mamãe também fazia, acontecia o mesmo. Listava os saquinhos plásticos, o açúcar, à época, mais conhecido na versão feminina, “a açúcar”; as frutas ou os pozinhos artificiais que ela usava. Pouco importava o fato d’ela acordar de madrugada para ralar o coco, coar o cuizinho do maracujá, encher os saquinhos, amarrar, arrumar tudo no congelador. Este trabalho, ela não contava, e um chope pra lá de delicioso não ia além dos cinquenta centavos de real. Nem o custo da energia ou a depreciação do liquidificador era embutido no preço final. Resultado: era um negócio insustentável, sem contar o fato d’a gente, da casa, consumir a maioria da produção naquela horinha boa de calor depois do almoço. Houvesse algum lucro, era nessa hora que ele ia s’imbora, não tinha escapatória.
É um custo entender, e concordo que não é fácil, que o valor das coisas está na gente. No suor que a gente derrama, nos neurônios que a gente põe pra pirilampar no cocuruto. Não sou douto nem nada nessas teorias das relações sociais, mas se ainda lembro da minha cartilhinha de comunista que me acompanhava lá pelos idos de oitenta e tantos, nas reuniões com os movimentos da Igreja, isto se dá por um tipo de estranhamento, uma espécie de distanciamento. Uma cisão, um apartamento do que é o nosso trabalho.
Falei que é difícil entender, né, mas quando estava naquelas reuniões sisudas discutindo os meios, os processos de produção, a mais valia e a alienação do trabalho; e sentia dentro de mim que não compreendia patavina, rapidola trazia aquelas teorias para dentro da minha casa. E logo via minha mãe acordar antes do sol nascer, ralar o coco, coar o cuizinho...

Agora por esses dias vou retomar minha cartilhinha e estudar direitinho o valor das coisas. É que no próximo sábado vou lançar mais um livro na Feira Pan-amazônica, e tô planilhando um preço pr’ele. Semana que vem sentencio: É tanto! Do jeitinho mesmo da mamãe, quer ver.

Um comentário:

  1. Sodré, essas aulas de economia, também tive. É incrível, como o que escreves nos faz lembrar dos tempos idos, e que não voltam mais.

    ResponderExcluir