domingo, 28 de julho de 2019

                              O telhado do mundo

sábado, 27 de julho de 2019

crônica da semana - sinhozinho


Sinhozinho, a mãe primata e o pregador de roupa
Ele não morava mais na mina. Fazia parte de um grupo seleto de pioneiros que iniciou a mineração em Rondônia. Aparecia nas frentes de trabalho somente para consertar o que ninguém consertava. Mecânico leigo, fazia e acontecia com uma chave de torque na mão. Homem de pouquíssimas palavras, contraditoriamente se animava quando a prosa ia pros lados das histórias de caçador, lá daqueles tempos antigos. Já peguei a fase de caçador arrependido. Ouvi várias vezes a passagem em que ele derruba a mãe macaca. Em algumas ocasiões penitenciou-se e, contrito, advertia que o macaquinho parecia gente. Parecia que rezava.
Aconteceu certa vez. Numa das suas caçadas, avistou no alto da árvore, a macaca com um filhote nas costas. Apontou a 12 e com um tiro certeiro, derrubou os dois. Quando se aproximou, percebeu a mãe primata sem vida, estirada no chão. Ao lado, o filhote pulava, gritava, rolava na terra. Segundo o relato de Sinhozinho, o macaquinho sem a mãe, não iria sobreviver na floresta. Tinha a “missão” cristã de sacrificar o filhote. Ao apontar a arma, notou que o macaquinho saiu daquele estado de desespero, virou para o lado dele, aproximou-se. Agachou-se, juntou as mãozinhas. Era como se rezasse, consternado tempos além, revelava Sinhozinho. Parecia uma súplica. Um pedido de clemência. Parecia gente. Naquela época, de caçador implacável, Sinhozinho não fazia essas reflexões. Atirou.
Se alguém ainda não viu de perto a mão de um macaco, eu asseguro. É igualzinha à nossa. A disposição dos dedos, a articulação da falange, da falangeta. É escritinho a nossa pegada.
Em uma outra ocasião, constatei esta anatomia. Ao chegar no meu acampamento, depois de uma exaustiva caminhada, na maior broca, o que encontrei para comer foi só carne de macaco. Vi o crânio, as mãos, os pés do macaco, descartados. As partes nobres cozidas na panela. Não consegui comer. Para mim, era como se fosse comer o meu avô. Bateu em mim uma angústia antropofágica. Uma consciência de parentesco. Uma pena ancestral. Uma desolação filogenética.
A Taxonomia é a parte da Biologia que relaciona características iguais entre os seres vivos. Olhando por esse lado, me senti atingido por aquele tiro que Sinhozinho disparou e acho que agi certo em declinar daquele ensopado, no meu acampamento. As semelhanças entre mim e aquele almoço eram incríveis.
Essa parecência e esta solidariedade, já não acontecem com o carrapato.  E tão distinto é, que Sinhozinho não contava um drama sequer envolvendo o artrópode.
Tenho pensado sobre a evolução do carrapato. O único degrau evolutivo alcançado que consigo associar o aracnídeo hematófago está ligado ao comportamento social. O bichinho é dado. Está sempre acompanhado de mina de parças quando a gente topa com ele, numa folha caída no bosquinho.
Assisti a um vídeo do maravilhoso Ariano Suassuna, e atinei bem para os argumentos que usa ao negar a Teoria da Evolução. Diz não acreditar que o homem veio do macaco. E que o macaco, por mais esperto que seja, jamais criaria uma engenhosidade do status de um pregador de roupas.
Penso que podemos explorar além dos rasos das opiniões. Pesquisar (olha que fucei um feixe de literatura e não achei texto em que Darwin tenha dito que um ser dormiu macaco e acordou humano). E ir mais além. Procurar semelhanças e diferenças entre nós, o carrapato e o ensopado de macaco.




sábado, 20 de julho de 2019

crônica da semana - o livro cor de rosa


O livro cor de rosa
Agora, em 2019, faz 21 anos que lancei o livro cor de rosa. Meu primeiro registro catalogado, com ISBN e tudo. “O Operário em Verso e Prosa” foi uma superação. Meu primeiro livro foi a prova dos nove sobre minha criação. Não tinha uma produção robusta. Escrevia para jornais comunitários, e periódicos restritos à região de Barcarena. Aqui, ali, publicava na grande imprensa em tiragens comemorativas, seções especiais em cadernos de arte. Não era a minha obra, conhecida, ou reconhecida. Havia uma divulgação acanhada do meu trabalho literário. Quando lancei meu primeiro livro, Tive o receio comum sobre a aceitação, afinal, expunha meus escritinhos num outro formato, exibia meu estilo a um espectro maior de leitores e, consequentemente, dava vez para opiniões várias. Morria de medo da crítica.
O livro cor de rosa trazia uma composição em prosa e poesia. Realizou-se sob a parceria das minhas crônicas com os poemas do meu compadre poeta, José Miguel Alves. O título veio do fato (que pensávamos ser inusitado, curioso) de nós dois vivermos o mundo literário e ao mesmo tempo batalharmos no dia-a-dia como operários da indústria de transformação. Éramos os peões que escreviam. Elaboramos o real sentido da publicação, pautado no emblema da literatura obreira. Chão de fábrica. Inspiração a base de chave grifo, procedimentos operacionais, papel, caneta e da marreta bruta.
Tudo arrumadinho, chamamos o professor Hélio Santos para conceber a capa. Uma sugestão havia para a arte. A capa deveria ser cor de rosa. Seria vermelha, para simbolizar nossa origem operária. Mas o custo dobraria. Optamos por suavizar o efeito visual e apostamos numa cor que se aproximasse do encarnado da luta das classes operárias e coubesse no nosso orçamento.
À época, Hélio fotografava para os jornais de Barcarena. Nos ombreávamos em várias oportunidades. Fizemos trabalhos juntos. Construímos uma amizade. Nos tornamos íntimos. Caros um ao outro. Senti que poderíamos dividir a responsabilidade da minha primeira produção. Ele aceitou.
Fez a foto da capa, compondo elementos da lida operária (capacete, luvas, óculos de segurança) com a minha máquina de escrever Olivetti Lettera.
O título, a gente choramingou na gráfica, e conseguiu colocar em vermelho. Ficou interessante a combinação. A capa cor de rosa, a foto em preto e branco, o título e nome dos autores naquele vermelho sangue dos obreiros.
Hélio Santos na formatação e na concepção sentimental da capa, nos ajudou a mim e ao poeta José Miguel, a adquirirmos confiança no nosso primeiro filhote.
Fizemos um lançamento espetacular numa famosa peixaria de Belém, vendemos livro pra caramba. Teve bolo, teve guaraná, degustamos acepipes fantásticos oferecidos pelo restaurante, fizemos coleta e entornamos todas. Saímos de lá felizes, com a primeira experiência. O povo gostou que só, do conteúdo e da forma da nossa obra.
Meu envolvimento com Hélio Santos ficou tão sério, que mais tarde, o convidei para fazer uma participação no meu livro “Corrente”.
Este ano, quero mostrar o quanto o Hélio é importante pra mim. Quisera ser com a reedição do livro cor de rosa. Este se perdeu nos bugs do meu computador. Vou relançar “Corrente”. Um livro em que ele compõe um elo. Porque a vida é assim. Feita de inquebrantáveis ligações. Cuidados. Carinhos. Um com o outro.
Estão todos convidados para a noite de autógrafos.

quarta-feira, 17 de julho de 2019

crônica remix - Jório embaixador


Meu amigo diplomata
Eu sempre fui comunista, e daqueles radicais, de não usar calça ‘ustop’, de achar que a Sibéria é uma estação de inverno e de dividir a minguada ração de pão-doce-com-garapa com o companheiro naqueles congressos estudantis paupérrimos. Sempre quis a liberdade, a igualdade e a fraternidade. E foi assim, à francesa, que cheguei, um dia a ser sindicalista (aliás, não gosto desta adjetivação. Prefiro a locução ‘líder sindical’. ‘Sindicalista’ parece com ‘seringalista’, que era o barão dominador nas relações impostas pela exploração da borracha. Uma peça chave no sistema extrativista cuja lembrança só me volta tristezas e mágoas).
Enquanto líder sindical, então, acumulei experiências que flutuaram entre a bizarrice e a mais agradável surpresa.
Quanto aos absurdos, prefiro guardar as minhas impressões para uma horinha mais aprumada na paz.
Agora as surpresas agradáveis cabem direitinho aqui:
Era um momento em que estávamos com a corda toda. Como se dizia na época: formulando, articulando, encaminhando.
Soubemos então, que o presidente da Vale do Rio Doce estaria em Belém para fazer a entrega de um piano que havia sido restaurado com recursos da empresa. Era a chance de um téti-à-téti com o homi.
No dia da cerimônia, estávamos lá daquele jeito. Carro som, discursos acalorados, motivos e coragem. Os assessores, por isso, entraram em ação para as combinas, as negociações. Entre um colóquio e outro, arriou um toró daqueles, mas nós não arredamos o pé. Ao ver tamanha obstinação, um dos negociadores se compadeceu e garantiu o nosso encontro com o presidente da Vale, contanto que parássemos o barulho e permitíssemos os preparos para o show do Artur Moreira Lima. Concordamos.
Alguns minutos após a chegada do presidente, fomos autorizados a entrar no complexo de Santo Alexandre para um encontro reservado. Houve, porém, de passarmos pelo salão onde estavam os convidados. Foi por certo, uma cena inusitada. Estávamos completamente molhados, pingando, em camisas de manga, tênis. O nosso saudoso advogado, Dr. Geraldo, era o único que ostentava alguma elegância, alinhado em paletó e gravata. Completamente encharcado, no entanto.
O clima, porém, amenizou bastante quando nos encontramos com o Dr. Jório Dauster. O embaixador era a personificação da educação e da urbanidade. Nos cumprimentou a todos, inclusive com abraços discretos, mesmo sob o risco de respingos. Na hora do ‘vamos ver’, deixei de lado a missão sindical e tietei sem acanhamentos. Falei que era um prazer para mim, estar diante do intelectual responsável pela tradução de Lolita, um dos mais belos e polêmicos romances de Vladimir Nabokov e parari, parará. Rasguei a maior seda. Ele recebeu com surpresa aquela investida, mas metabolizou com diplomacia os meus chiliquitos de fã, e logo em seguida se animou em comentar outros trabalhos que ele tinha feito sobre a obra do escritor russo. Mas o chove-não-me-molha literário durou pouco. Tínhamos uma missão. Entreguei a carta ao diplomata-presidente da Vale e nos despedimos com a esperança de que ele um dia nos responderia sobre as nossas mais nobres, justas e vastas reivindicações.
O tempo passou. Os sonhos sindicais se perderam mais em bizarrices do que em surpresas agradáveis.
Dias depois daquele encontro, recebi uma encomenda. Era um exemplar do romance Machenka, enviado e autografado pelo Dr. Jório Dauster, com um texto amigo e respeitoso na dedicatória.
Sempre fui comunista. Mas, também, sempre admirei os bons homens. E de uns tempos pra cá, passei a desconfiar das minhas certezas sobre a Sibéria.


sábado, 13 de julho de 2019

crônica da semana - mundiado


Mundiado
Tirando pelo certo e justo, se a gente for na onda da mundiação sem limite e do abismamento inevitável, não desaprega o olho daquele traçado rochoso. Passa horas, dias, eternidades fitando aquele enfileirado de montanhas de topos pontiagudos e branquinhos. Silenciosos. Misteriosos. É coisa de entontecer. A paisagem andina é um espetáculo que, ajudado pelo ar rarefeito da altitude, nos tira o fôlego.
Eu já tinha me deparado com a cordilheira em outra ocasião, quando fui ao Peru, a trabalho. Na época, aliei aquelas imagens coletadas da janela do avião, com outras impressões tiradas de filmes, documentários, séries do National Geographic, sonhos... e escrevi uma crônica falando das montanhas.
Desta vez não foi da janela do avião. Foi de palmo em cima mesmo. Caminhei no meio da neve, senti um anuviamento das ideias por causa da altitude, me aperreei com a falha na suspiração, mas tirei a cisma. A cordilheira é um mundo de maravilhas.
Não tão lírico como interpretei na crônica que fiz da primeira vez que nos batemos. Antes, tinha visto as montanhas com uma plástica rígida, irretocável. Tecida em arremate divino, em força transcendente. Uma obra completa, perfeita.
Agora, no Chile, vi de uma outra forma. Mais humanizada. Ou mais naturalizada. Comparei os paredões gelados com os compartimentos de uma casa desarrumada. Um arranjo sem arremate, inacabado. Com todos os processos construtores em andamento. Em sofrido movimento.
E se a gente for reparar direitinho, é essa sensação que as montanhas provocam na gente. As rochas são dobradas, esticadas, truncadas, cortadas, depois se unem de novo, sobem, descem, quebram-se, enrijecem-se, esmigalham-se, espalham-se em blocos grandes pelo leito dos rios. Quando vão ganhando altura, combinam-se em topos bicudos e rumam para o céu.
Se a gente fica estatuinha da silva para contemplar a cordilheira, a gente se convence de não estar patetando, usando o tempo indevidamente olhando para uma paisagem imutável. O que se apresenta aos nossos olhos, vale a pena. Mesmo que pareça um cenário estático, parado no espaço, a gente não desliga daquele longe belo. Não tira os olhos.
Depois, conhecendo os detalhes, é que a gente vai percebendo o movimento, a vida dos Andes se realizando nos grandes blocos de rochas.
A cordilheira dos Andes é formada por um processo de dobramento conhecido como orogênese. Que no frigir dos ovos e no subir dos picos, quer dizer “formação de montanhas”. Ativada por eventos poderosos, a crosta se ergue, num movimento comparado ao de uma esponja, dessas de lavar louça, sendo comprimida das laterais para o centro. Experimente. Pressione a espoja nos flancos e veja que no meio, ela se eleva. Escritinho assim, é em alguns pontos do Planeta. A pressão é constante. A força não acaba (ou vai levar uns milhões de anos para acabar) e as montanhas como os Andes e o Himalaia, vão crescendo. Ficando mais altas. A última medição diz que o Everest, o ponto mais alto da Terra já é um taludo de 8.844m. A cordilheira dos Andes abriga a montanha mais alta fora da Ásia, o monte Aconcágua, com 6.962m. E continuam crescendo. Estudos mostram que os dobramentos crescem em torno de um metro a cada século.
Do Everest não. Mas do Aconcágua, fiquei um isso aqui de distância. A casa é desarrumada, a cordilheira é um arranjo imperfeito, é uma formosura serpenteada, e por isso mesmo, mundia a gente.

sábado, 6 de julho de 2019

crônica da semana - bobeira


Não dê bobeira
Sou movido a pré-programas. O planejamento é minha regra. Minha língua é o Excel e suas fórmulas de simulações e previsibilidades.
Por isso, logo ao chegar a Santiago do Chile, estava com a estratégia de retirada toda montada. Sabe aquela pessoa que mal chega no lugar e já se preocupa com a hora de voltar? Sou eu. E a meta era em alto nível, no estilo nativo santiaguino. No meu pensamento chegaria ao aeroporto, para a viagem de volta dali a 10 dias, pelos meios mais baratos. O que incluiria transportes populares como ônibus e metrô.
Obviamente que precisaria passar por um adestramento. Teria todo o período de férias para treinar, conhecer itinerários, estações modais.
Informa daqui, pergunta dali e encaramos.
Começamos, eu e minha companheira, a nos deslocar com certa facilidade na cidade. O metrô é bem eficiente, tem horário regular, duas ou três ramificações. Fizemos todo o nosso roteiro de metrô. Estávamos craques. Uma recomendação se repetia a cada dica que solicitávamos sobre transporte e passeios pela cidade: o cuidado com as bolsas e os bolsos. Avisados fomos a não dar bobeira.
Santiago é um cartão postal. É meio Rio de Janeiro do Cristo. De qualquer canto da cidade a gente se encanta com a beleza da cordilheira. Há o fenômeno atmosférico no final da tarde que faz as montanhas refletirem cores diversas. O brilho esbranquiçado da neve ornando o cume pontiagudo das montanhas é um espetáculo rotineiro. É um lugar tranquilo. Seguro. Casos de assalto ou abordagens violentas são raríssimos. Não obstante, como toda metrópole, abriga os oportunistas, os descuidistas. Batedores de carteira, gatunos, mãos-leves são peças batidas no arranjo urbano. Neste aspecto, nada diferente do que passamos aqui em Belém na hora de subir nos ônibus, naquele empurra-empurra. É o momento preferido para o desfecho do golpe. É o instante que a gente dá bobeira.
Num desses deslocamentos que fizemos, de metrô, dei bobeira. Era hora do pico. Um aperta-cunha inevitável. Um sujeito limpinho, arrumadinho, branco, bem vestido, dissimulado, abriu o zíper da minha calça e se não sou rapaz, tinha dançado. Flagrei o janota perfumado já pinçando os poucos pesos que eu tinha no bolso. Dei o alarme, segurei na mão dele, apliquei-lhe uns golpes de street fight pedreirense e ele saiu correndo com mais de mil. Não levou nada. Mas impactou. Assumi a versão gato escaldado e achei prudente, depois do ocorrido, alterar meu planejamento de volta para o aeroporto. Fui ao Excel e substituí o transporte modal popular pela segurança do transfer out oferecido pelo hotel.
Agora tem muita graça eu, neguinho da baixada, sair aqui da Pedreira, do furdunço de fim de tarde nos ônibus lotados de Belém, para ser alfobitado por um chileno entalcado. Mas quando, já!
Foi bobeira. Um momento de distração e uma facilidade até incomum dada ao ladrão. A época é de muito frio em Santiago e o normal é a gente andar com muita roupa. Normalmente usava três calças comuns além de uma calça térmica. Dinheiro e documentos, sempre carregava ensanduichados, entre o feixe de calças. Nesse dia, exatamente, como faríamos uma saída apenas para um lanche noturno, relaxei. Reduzi o vestuário e guardei o numerário na roupa de cima. A ocasião não fez o ladrão empoadinho, mas adiantou pacas o lado dele. Dei bobeira.
Se não sou rapaz...



quinta-feira, 4 de julho de 2019

Oh meu amor
Minha querida
Entenda
A minha solidão
Que te chama em silêncio
Que apela por um beijo teu
Mas em uma linguagem sem som
Em um desejo sem fogo
Em estilhaços de intenções
Oh meu amor
Minha querida
Entenda a minha solidão
Que te ama em silêncio
Que apela em segredos e sussurros
Por teu olhar
Oh meu amor
Minha querida
Minha solidão é invisível