sábado, 30 de dezembro de 2017

crônica da semana - arnaldo

O pandeiro do meu amigo
Este ano, com muita luta e talento quase nenhum, consegui tocar umas peças no pandeiro, com o mérito louvável, de não atrapalhar o samba. Sou amante da música. Seria natural então, que a minha guinada para o pandeiro fosse um desdobramento deste meu pendor musical. Não foi. O quadrado que faço no couro se realiza, com sincera intenção, como uma homenagem ao meu amigo Arnaldo Porfírio Wanzeller...
Antes mesmo de conhecer o Arnaldo, já tinha uma admiração por ele. É que era costume, na Escola Técnica em tempos outros e melhores, ex-alunos empregados visitarem a Escola. A aula era interrompida, o visitante era apresentado com reverência e, em poucas palavras, descrevia como era a vida de um Técnico de Mineração. Todos nós que estávamos no último semestre, ficávamos empolgados, fazíamos perguntas, e não raro, após a aula, continuávamos o bate-papo num barzinho ali da 25, tudo por conta do técnico formado que já ganhava o dinheirinho dele, é claro. Era um exemplo a ser seguido. Com o Arnaldo não foi diferente. Quando voltamos a nos encontrar em Rondônia, anos mais tarde, ele já era meu ídolo.
A última vez que o vi foi no reveion de 2013, na estação das docas.
Arnaldo trabalhou muito em prospecção e pesquisa mineral, aqui no Pará. São missões penosas, difíceis. Muitos dias no mato, andando por dentro d’água, com o acampamento nas costas. Trampo brabo, na linguagem da turma. Uma oportuna transferência o levou para as minas de cassiterita em Rondônia, onde eu trabalhava. O local era uma vila organizada, com casas relativamente confortáveis, comida boa. Caminha macia pra dormir. O trabalho era sempre perto. Todo fim de expediente, nos encontrávamos. Naqueles dias, conheci a musicalidade de Arnaldo. A música que habitava nele. Era um percussionista fenomenal. Depois do trabalho, encostávamos no balcão do nosso alojamento, um violão aparecia e Arnaldo ia buscar um acervo farto de instrumentos. E, ao contrário de nós, sem beber uma gota de álcool, por causa do rim baqueado, tocava cada um deles com cristalino respeito, com insuspeita dedicação, e com muito prazer, mesmo diante de companhias amadoras que não saiam do Lá menor. Eu ficava hipnotizado com a perícia, com a desenvoltura de Arnaldo e, é claro, com o encantamento dele ao simples tilintar de dois vidrinhos, ou ao baque seco no pandeiro. Às vezes, eu não resistia e perguntava: “como é, como é que toca?”. Ele pegava o pandeiro, colocava assim à altura dos meus olhos, deslizava a mão em ritmos variados, e fazia uma carinha animada, extasiada. Era um momento mágico dele com o talento sem medidas que ele tinha.
Meses depois daquele reveion, encontrei os meninos do Cabloco Muderno fazendo uma oficina na praça da República. Perguntei pelo Arnaldo. Não estava mais entre nós. Não lembro de ter chorado tanto, nos últimos anos. Perdi meu amigo.
Aos primeiros fogos anunciando 2018, vou pôr o pandeiro embaixo do braço e seguindo os acordes do samba bom, com meu pouco talento, vou batucar uma homenagem amiga e sincera ao Arnaldo, percussionista irretocável, querido, ídolo, irmão.


sábado, 23 de dezembro de 2017

crônica da semana - siso

Ou o siso ou o bago de farinha
A Pedreira foi um dos primeiros, senão o primeiro bairro a abrigar profissionais da medicina popular. Ainda hoje estão ativos consultórios que fazem exames, administram terapias, atendem algumas especialidades; e que praticam preços que o pobre, na hora do aperreio, pode pagar. Já fui useiro e vezeiro destes atendimentos. Quando não conseguia ficha no centro três (o que até hoje é difícil pacas), o jeito era recorrer aos atendimentos médicos do povo.
Há muito tempo, muito tempo mesmo, quando eu era moleque e não atinava para os cuidados com os dentes, tive que recorrer a um dentista que ficou famoso por aqui. Atendia ali, na Pedro Miranda próximo à Humaitá. Fazia o que podia e o que não podia pela comunidade. O atendimento era baratinho, tanto que denominamos o lugar de ‘o dentista de dez tostões’. Um detalhe marcava aquele consultório de forma muito expressiva. Entre os profissionais que atendiam por lá, havia um dentista negro. E por aí a gente tira. A reação dos pacientes era diversa. Uns o buscavam por empatia, outros se negavam a ser atendidos por ele. Naquele tempo o preconceito se cercava de subterfúgios, de desculpinhas. Mas a simpatia também batia forte, se verdadeira. O certo é que, na minha vida toda, foi o único odontólogo negro que vi em atividade no meio. Para mim ele era o cara. Me afeiçoei. Fiz tratamento com ele e tive um atendimento de prima, pagando aqueles dez tostões. Os anos se passaram, o consultório dentário baratinho desapareceu da Pedreira e eu não tive mais dor de dente.
Até aparecer o tal do siso.
Deus me livre e guarde. Tava era pra correr doido com este dente, nos últimos tempos. Parecia um predestinado maldito. Desde o momento que anunciou que estava nascendo, veio trazendo desconforto, dor e sofrimento. É o fona a dar as graças na nossa arcada dentária, mas, despontou, e passou a ser o pri nas preocupações. Dentre as inquietações de tirar o tino e o juízo, a farinha baguda em inquestionável destaque. Quando batia lá, eu via estrela.
A situação chegou a um ponto tal que, ou tirava o siso, ou eu deixava de comer farinha.
Outras restrições estavam sendo impostas por este torturador cálcico. Comer aquele suculento churrasco me era uma odisséia. Um fiapinho reliquiar que se postasse na fronteira do último molar, me emboloava o juízo e me forçava a contorcionismos espetaculares com o fio dental para poder recuperá-lo. E haja machucado, e haja inchaço, e haja inflamação.
Não é procedimento que a gente faça sem que antes recorra a um pelo-sinal e a uma dose robusta de fé. Tirar o siso é coisa bruta. O cirurgião além da perícia, há de ter iniciação nos mistérios da alma para evitar, com um bom papo, talento e sensibilidade, que o paciente levante e saia cambalhotando dali para nunca mais.
Desta experiência, uma constatação: a anestesia foi a maior invenção da humanidade. Não dói nada.
O melhor desfecho: uma vida melhor longe das dores diárias.

E a dica para um Natal feliz: Ao contrário do desejado botijão de gás, aceito de presente, uns três litros de farinha, daquela bem baguda.  

domingo, 17 de dezembro de 2017

crônica da semana - muita onda

Muita onda
Certa vez, quando eu fazia Geologia, rolou uma pendenga sobre a teoria da Evolução. Uma colega era radical em negar a teoria de Darwin. Alertei para o fato de que alguns estudos geológicos operavam como fundamentos das idéias Darwinistas e se ela não acreditava na teoria, por tabela, desacreditava da Geologia. Ela recorria a doutrinações religiosas para criticar a Evolução. Acho que não prosseguiu no curso. Certamente seria difícil para ela, conciliar ciência, religião e alcançar aquele errezinho salvador que lhe garantisse varar os semestres.
Boto fé na ciência. Passei por crises, também, na época de igrejeiro. Na hora da dúvida, na hora de tomar pé e dar sentido às coisas, reconheci a religião como meio insuficiente de provas e constatações. A minha decisão em optar por outras leituras da realidade, se não compõe um fim, na certa oferece caminhos mais desafiadores. Permite atitudes ousadas, inquietações saudáveis. Insubordinações produtivas. Foi assim, penso eu, que a humanidade caminhou. Deixou de andar de quatro, de vagar de galho em galho, ergueu-se, construiu mundos e chegou aos confns dos céus.
Não descarto o Deus bom. Se alguém o busca para o bem, para exercitar o amor incondicional, e para preservar valores que nos leguem o necessário à preservação da espécie, pai d’égua. Tá valendo.
O que me perturba é que, mais comumente do que a nossa lógica vã possa imaginar, Deus é evocado para ocultar, para negar, para se contrapor à clareza das coisas.
Outro dia, no trabalho, reclamando do alvoroço que está a baía do Guajará, ao entardecer, com ondas fortíssimas obrigando os barqueiros a fazerem manobras delicadas para atracar no porto, alguém se adiantou em afirmar que aquilo era obra de Deus. E sem quê nem pra quê, pois sequer esbocei versão diferente àquela defendida por ele, asseverou o discurso afirmando que o homem tenta dar conta de tudo, quer alterar, mudar a natureza, mas Deus está no comando e com supremo poder controla as ondas batendo no casco e dificultando a atracação das embarcações, na beira da baía do Guajará. Credo! Este jeito de interpretar o movimento das ondas, é o mesmo artifício usado pelos gregos, antes de Cristo, quando todo movimento de mundo e de alma que não se conhecia, atribuía-se a causa, a um Deus. Então, este pensamento de explicar o solavanco das ondas pelo humor de Deus data de, no mínimo, três mil anos. Tá atrasado pacas. É uma prática que, com a evolução do conhecimento, se diluiu em concentradas soluções e deu lugar a entendimentos mediados pelo método científico.

Se não nos arriscamos à explicação mundana, que a gente se permita ao menos, a observação. Viajo de barco pela manhã, cedinho. Neste horário, a baía está calma, O barco desliza que é uma maravilha, pelo tapete de água. Mas no final da tarde, na volta, o banzeiro chega a assustar. Me parece conveniente atribuir esta mudança no comportamento das águas, à alteração de temperatura no ambiente, que de manhã é bem fria, e à tarde tá de derreter o cocuruto, e não ao humor do Todo Poderoso. Creio que Deus não faz onda.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

                              capturando almas

domingo, 10 de dezembro de 2017

crônica remix. pelas laterais

Pelas laterais.
A Mauriti já era asfaltada, havia um tráfego considerável na rua. Pelo menos duas linhas de ônibus faziam seu itinerário por ali, tinha um fluxo de mão dupla. O trecho em que eu morava, entre Marquês e Pedro Miranda, era bem movimentado, a qualquer hora do dia. Mas era só a chuvinha da tarde cair que a galera desentocava com a bola. Havia um líder. Um moleque que saía assobiando na frente das casas. Era a senha pra montar os times.
Sob protestos da mãe, já saíamos aquecendo, dando aqueles saltitos desengonçados às margens do meio-fio. Os mais práticos acudiam-se aos, raros, terrenos in natura da área, de lá sacavam as touceiras de capim e as lançavam aos pares sobre o asfalto demarcando as travinhas e ao mesmo tempo iam nominando as equipes.
O certo tanto de lá, o tanto certo de cá, a galera da grade saltitando inconformada na beirada da rua, as regras definidas: dez minutos ou um gol;  em caso de empate, cara ou coroa;  não se para pra carro).
Parece meio loucura relatar uma partida de futebol de travinha no leito áspero e duro da Mauriti, se arriscando entre os carros. Mas esta cena era comum, lá pelo final da década de 70, início da década de 80. Aproveitávamos qualquer chuvinha. Era respingar e a gente armava o campo. O trânsito reduzia, os carros passavam devagar aquaplanando (a rua era asfaltada, mas não plenamente saneada).
Quando a chuva ia parando, o asfalto secando, a coisa ficava perigosa. Os carros ressurgiam velozes e furiosos, o Nova Marambaia-Telégrafo varava feito um bólido, sempre atrasado, e as bicicletas surpreendiam pelo acostamento. Mas a regra era clara. Não se parava pra carro. Até dar de noitinha, a gente ainda insistia. Dez minutos ou um gol.
Se o trânsito aumentava e não era possível mais operar os lançamentos em profundidade e a penetração pelo meio, recorríamos às jogadas pelas laterais.
Intuitiva ou oportunamente, concentrávamos nossas jogadas naquela região do campo em que mais ideologias e elucubrações táticas são empregadas. Sempre defendidas, pouco entendidas, as laterais do gramado já foram o prazer e a dor de muitos técnicos. Hoje, chamamos os que ali militam, de ala. Antigamente era lateral diretito ou esquerdo. A posição era conservadora, defensiva. Mas com o aumento do fluxo de carros depois da chuva e com a determinação cartesiana do Claudio Coutinho, virou opção ofensiva. Projetou-se o ponto futuro, o overlap, aprimorou-se a tabela curta, o cruzamento e...o gol.

O problema eram as bicicletas. Numa das minhas infiltrações rés a calçada, tabelando com o pneu do Sacramenta Humaitá, na horinha do cruzamento medidinho, fui surpreendido por uma magrela. Me pegou por trás. Ela caiu prum lado, eu pra dita lateral da rua. A regra era clara. Em caso de atropelamento, chama a mãe. Peguei um carão, passei uns dias no estaleiro, todo encalombado, só ouvindo os assobios na hora da chuva.

sábado, 9 de dezembro de 2017

                               Fecundada ao sol do Equador

cronica da semana - embuá

Calor de correr doido
Desci a calha do igarapé um bom estirão até chegar no pé do barranco. Nem sinal de água. Lugar mais seco. Caminhei outro pedaço à montante. Lugar mais limpo. Voltei e aprumei para baixo. Depois de uma caminhada rápida à jusante, um açaizal com viço tímido aqui, uma discreta umidade no solo, mais adiante, eram bons sinais. Quem diria. Quando estivemos no mesmo local, pelo início do ano, a água cobria um homem taludo todinho e ainda sobrava.
A turma ficou lá em cima, no terreiro arborizado do sítio, ajeitando local para armar os barracos, que não fosse muito longe da linha-base, e que ainda ficasse numa ponta de mata, mais abrigado do sol e mais fresquinho, porque o calor tava de correr doido.
Voltei já com o local definido para cavarmos um poço. O colono até tinha água, mas o poço dele era no alto, de grande profundidade e com a água pouca certa para a casa. Minha equipe contava com mais de 10 pessoas, precisávamos cozinhar, tomar banho, lavar a louça... a demanda era alta. A experiência e algum conhecimento básico me adiantavam que teríamos melhor oferta de água se abríssemos poços na parte mais baixa no leito do igarapé, no talvegue, como diriam os iniciados.
Com as estratégias armadas, a turma tratou de correr atrás. Quem era da montagem do barraco, ganhou o mato atrás de varas linheiras, palha para a cobertura e enviras para as amarrações. Os prospectores de água saíram a abrir caminho mais curto para o igarapé, munidos de pá, chibanca, baldes e corda. Eu me ajeitei ali pela varanda do colono, armei a parafernália do rádio e procurei contato com minha base para dar o resultado da campanha naquele dia. O dono da terra me acolheu com simpatia. Enquanto trocávamos uma prosa explicando o meu objetivo ali, dei a reparar naquela família. Não eram daqui. Eram galegos, aloirados, grandalhões. Contei duas mocinhas, já formadas, olhos verdes, caladas e reclusas. A mãe, dava voltas pela casa e falava baixinho, parece que sozinha, mas alguém da família sempre ouvia o que ela dizia e devolvia uma palavra de volta. Na porta da frente do casebre, um molecote sardento, vermelhinho de sol, sentado no batente, torturava um embuá retirando dele as perninhas, a punhados. Tive a impressão que também apartava o bichinho e comia os pedacinhos mastigando só com os dentes da frente, com ineficaz discrição. O pai, aparentava ser mais velho que verdadeiramente era. Contou que chegara à Transamazônica no final da década de 70, vindo de muita necessidade e regime de quase escravidão nas terras que dividem Paraná e São Paulo. Tinha mais dois homens, que já tinham mulher e filhos, e moravam afastados. Ajudavam tomando conta da plantação de cacau e do pequeno rebanho de nelores.
Viviam sem apoio nenhum do governo. Abrimos um ramal e eles retiravam a produção, aproveitando nossa carona. Antes, tiravam a colheita no lombo de burro. A família era o retrato da política rural implantada pela ditadura na Amazônia. Era novembro. Mês menos chuvoso do ano. E se para nós, o calor era de correr doido, avalie pro menino vermelhinho que comia embuá.


segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

                                super lua sobre a Aldeia Cabana

crônica remix - cheia do amazonas

A cheia do Amazonas
Não sou um especialista em redes hidrográficas, em regimes de cheias, nem nada, mas vivendo assim cercado de água por todos os lados, penso ser de bom termo, prover-me de notas e definições sobre os sobressaltos circunstantes.
Diante, então, das notícias que nos chegam sobre as inundações na calha do grande rio. Ante a impressionantes cenários alagados em pleno centro de Manaus; a desmedidas dimensões não tão estreitas do Estreito de Óbidos; Frente às chocantes imagens de barracas submersas em Alter do Chão (expondo-se ao sol somente em cumeeiras), corri para o Google Earth e fui-me certificar de umas notas que venho fazendo desde a enchente do rio Acre, esse ano mesmo, lá por fevereiro.
Tá tudo anotadinho. Naquele período, o rio Acre, que é tributário do Solimões (não sei se vocês lembram... Tá, tá legal, poucas pessoas lembram de fatos que acontecem no Acre. Um número minguado de cidadãos, tirando os emigrados acreanos, sabe que existe uma terra prometida a oeste do Brasil conquistada pelos seringueiros. Não é culpa nossa, não. É o pensamento que é assim, neste país, meio penso, meio bambo), Pois é, o rio Acre tava têi têi. Por acolá. Água dando no telhado das casas. O Solimões, fiz o registro no meu mapinha em março, a mesma coisa. Saltando às margens. Por aqueles dias, não marquei nada no rio Negro (por desinformação minha ou porque o rio Negro não se asseverava no volume assim que demandasse cuidado das mídias).
Eis que agora em maio, o rio Negro entra em cena tomando as ruas de Manaus e atingindo a marca de trinta metros (não entendo, sinceramente esta medida. Aqui no estuário, estamos acostumados com a referência do nível do mar. “Tal coisa está tantos metros além do nível do mar”, aí a gente vai lá no Ver-o-Peso, na lançante, e entende o que quer dizer isso, mas lá em Manaus... O que quer dizer trinta metros na régua?). Tirando essa inquietação na escala, temos a nítida noção do aperreio dos irmãos manauaras.  Fui lá na imagem do Google e grafei: “cheia no Amazonas”.
É a partir do encontro das águas do rio Negro com o rio Solimões, que o grande rio ganha o nome de Amazonas. E é neste ponto, exatamente que minhas anotações (no meu mapinha) ganham algum sentido. Acompanhei o traçado dos dois rios. Demarquei com aquele alfinetinho amarelinho do Google Earth, as deflexões e o estirões de cada um deles. Ficou claro, no desenho, o apartamento entre os rios. Um nasce ao norte, e o outro, ao sul da bacia do Amazonas. E aí, o que tem a ver o azul das calças com a enchente que ora se vive?
Eu colei esta conclusão de algum texto que li sobre o tema, mas olhando a imagem que retrata as origens polarizadas dos rios, a gente pode até intuir que eles pertencem a ambientes distintos. Sofrem influências alternadas dos mesmos eventos astronômicos que impõem chuvas ou estiagem (como o solstício que ocorre agora em junho, por exemplo).
Lembram que falei do rio Acre? (façam um esforço. Eu sei, ninguém lembra do Acre, mas vamos lá...). Ele está no lado sul da bacia e anunciava que neste lado, as águas seriam grandes, este ano. Quando o rio Negro, que ocupa a parte norte começou a encher (ali, próximo do Equinócio de março), foi fatal uma somatória de águas (tanto é que de Manaus pra baixo, o leito do Amazonas não tá respeitando ribanceira que dê eira).
Não sei se esta minha reflexão ajuda a entender melhor o nosso mundo de água amazônico. Eu sei que esta é umas das maiores cheias já registradas na região (pode estar anunciando, ao mesmo tempo, uma grande seca?). E merece nota. Meio subjetiva, porém, preocupada, solidária.


domingo, 3 de dezembro de 2017

                               Belém que te queria luz

sábado, 2 de dezembro de 2017

crônica das semana- eternas ondas

Eternas Ondas
Coincidências, encontros fortuitos, Robertinho do Recife, Stephen Hawking, uma única medida para tudo, Fagner. Numa breve história do tempo.
Que teve seu começo lá nos primeiros anos da década de 80 do século passado.
Uma sala no pavilhão administrativo da Escola Salesiana do Trabalho. Tarde de sábado. Fazíamos a redação de “O Caminho”. Era o jornalzinho do nosso grupo de jovens. As máquinas de datilografia da secretaria da Escola estavam aquecidas. Escrita preciosa como a do futuro jornalista Edir Gaya, marcava aquela edição. Os temas, cristãos, eram mimetizados a casos circunstantes. As comunidades unidas, as conquistas diárias, os verbos de novos e democráticos tempos eram conjugados nas páginas de “O Caminho”, naquela tarde de sábado. No cantinho da sala, uma vitrola dava o tom da nossa prosa. “A Canção Brasileira”, de Raimundo Fagner, chegava, enfim, até nós, com o fim de um longo e esturricado verão.  Um “Vento Forte” nos marcava em sulcos profundos, e se era do vento ou sei lá, um trinado audacioso, de guitarra, rompia artérias, desconectava ligamentos, incendiava neurônios, desfazia monotonias sensoriais. Arranjos modernos, um jeito de cantar atrevido, meio gritado, letras românticas subscritas no enigma revolucionário, ainda enterrado em anos de ditadura. Era o disco “Eternas Ondas” nos encantando. Aqui, ali, alguém tirava a agulha da faixa da hora, buscava um violão. Nós, então, dávamos um tempo na arquitetura dos textos e nos lançávamos em animado coro no “Reizado” ritmado do senhor dono da casa que iluminava nossos corações.
O tempo, como uma mágica quântica dá saltos. E eis que sábado passado, amanheci numa cuíra danada de tocar as músicas daquele disco. Afinei meu violão pelo aplicativo do celular, aproveitei que a Pirajá anunciava uma incomum manhã de silêncio, me aprumei no cantinho ali da sala. Toquei, e cantei com indisfarçável paixão.
E não é que horas depois, soube de um show que o Fagner vai fazer aqui em Belém! Logo me assanhei. Comentei na minha página na internet. Me voltaram falando cobras e lagartos do cantor cearense.
O final do filme “A Teoria de Tudo”, que conta a vida de Stephen Hawking, faz uma provocação, roda as cenas no sentido contrário. Do fim para o início. Aquece a discussão Física de uma alteração no tempo.
Antes de julgar o Fagner pelas posições políticas atuais dele, voltei no tempo. Fui lá no disco “Eternas Ondas”, revisitei a redação do jornalzinho de nosso grupo, reposicionei a agulha na faixa de “Reizado”, e considerei pensar mais pra frente sobre esta única medida que temos para tudo. Se houver frente, se houver um adiante que chamamos de futuro, se eu me convencer que não estamos numa bolha instável que pode voltar para trás todas as conquistas abstratas e concretas daquela turma que datilografava nas Olivettis da secretaria da Escola Salesiana o imbricamento de temas cristãos com a baixada alagada da Sacramenta, asseguro que vou procurar relevar a melancolia de uma única equação que defina fim e começo. Vaca Estrela e Boi Fubá. Tarde de sábado lá, manhã de sábado cá. 

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

                     Pipoqueiro

sábado, 25 de novembro de 2017

crônica da semana - consciência humana

O meu amigo aqui (ou: o dia da consciência humana)
Arte que me deixa piririca da vida é quando a pessoa esquece o nome da gente. Nem de todo mundo, óbvio, tenho zanga. Entendo que seja comum, nomes serem esquecidos quando não são constantes, presentes. Eu mesmo sou fanchão de esquecer. Convivo ali, na rapidola, desapego, passa um ano, passa outro. Uma chuva de abril, outra de dezembro e quando a figura reaparece, confesso: é um custo lembrar o nome. Dou o desconto. O tempo torna rarefeitos os arquivos, esvazia o tino, desnorteia certeza e precisões.
A minha teima é com aquele um que se diz amigo. Que divide tarefas no trabalho, ou por outra te sonda, te rodeia. Tenho pra mim, que este desatino vem nutrido, olha, olha, pelo desprezo. Traz embutido um preconceito latente.
Aconteceu uma vez, em Rondônia, de doer e não esquecer. Camarada trabalhava comigo, ali, ao pegado. Todas as noites, estávamos ombreados na resistência contra a solidão, naquele ermo, entornando umas rodadas do bom birinaite, batendo uma viola, ouvindo uns vinis, falando de trabalho, ainda com as botas enlameadas do dia. Morávamos num alojamento de parede-meia. Éramos, por assim dizer, próximos.
Certa vez a namorada veio fazer-lhe uma visita. A pequena era de São Paulo. Passou uns quinze dias com a gente, na mina, vivendo aquela rotinha de viola, de birinaite, de ermo, de calcanhares enlameados.
Deixa estar que passado um tempo e tendo a digníssima voltado para São Paulo, presenciei o contato do camarada por telefone, com ela. Em dado momento, esbanjando simpatia, disse que eu estava presente, o amigo, ali ao lado. Ao perceber que ela não estava lembrando de mim, ele refrescou-lhe a memória: “aquele negrinho que tocava violão comigo”. Agora mire e veja. Agora mire e veja se não dá pra ficar de banda com um sujeito desse.
De outra maneira, o sujeito lança mão desse expediente para te dar aquele gelo. Te ocultar.
Em Barcarena, durante algum tempo, fui dirigente sindical. Era difícil alguém não me conhecer na fábrica. Eram incontáveis as vezes que eu empunhava o microfone e conversava com a categoria em assembleias e mobilizações.
Deixa estar de novo, que eu era um sindicalista atentado e por isso, tinha lá meus desafetos, na esfera de comando da empresa. Todo mundo da outra parte, queria tirar uma casquinha de mim. Houvesse a chance, davam um trisca.
Pois calhou d’eu fazer um treinamento com um camarada que era tido e havido como um grande pelego. Enquanto palestrava aquela sensaboria institucional, quando queria referenciar alguma doutrinação, virava pra mim e buscava cumplicidade: “não é, meu amigo?” Ou virava para a turma e me envolvia na questão; “faz de conta que o meu amigo aqui...” Era nítida a intenção de ocultar meu nome, e ao mesmo tempo, de tentar credenciar o discurso dele com a minha presença.
E eu que não creio, dou benza a Deus pela paciência que me outorgou naquele dia.
O tempo torna rarefeitos os arquivos. Mas intenções nocivas, o exercício da degradação, o preconceito, humilhações e lampejos clássicos da consciência humana, essas coisas a gente não esquece.



sábado, 18 de novembro de 2017

crônica da semana - negoço

A palavra reanima (“e tem aquele negoço”)
Se tem uma moléstia que pode ser também da mulesta, era com essa combinação que eu me batia na terça-feira próxima passada: Com uma gripe da mulesta. Que me pegou, me bateu, me rebateu, me sacudiu e me jogou em pedacinhos, na cama, pleno feriado da República.
Antes, tive que chegar em casa.
Vinha do trabalho que não conseguia enxergar nada na minha frente. A impressão que tinha era que a maçã do rosto estava do tamanho de uma bola de basquete de tanta constipação. Cada espirro era um sacolejo da caixa torácica que se assemelhava a um trator passando aquelas pastilhas metálicas poderosas, em cima da gente. O mundo era um burburinho intenso no ouvido, mas longe, oco, ressonante e úmido.
Até que me aquietei naquela cadeira alta, no final do ônibus e as coisas foram se ajeitando. Minha casinha, meu sossego, meu repouso necessário, meu chá salvador de limão com alho estavam dali a quarenta e poucos minutos de mim.
Tinha até um dinheirinho, e havia me programado para quando chegasse de Barcarena, pegaria um táxi, para que minha agonia fosse mais breve. Mas tem aquele ‘negoço’ da ação automática, do ritmo cotidiano. Some-se ainda, o meu estado de estuporamento  avançado. Deu-se, então, que quando s’spantei lá estava eu na cadeira alta do ônibus.
Mais calmo, tornei. Abri as janelas do coletivo, destaquei do bolso os lencinhos absorventes para atuar na coriza ou mesmo num espirro explosivo. Nessa hora senti falta do meu celular para ouvir um sonzinho. Ficou pelo caminho, perdido na minha memória. Irrecuperável, desapareceu escondido no meu transe, no meu entorpecimento gripal. Paciência.
Mais na frente da viagem,  sentou um rapazinho ao meu lado e dali em diante, viveríamos o estresse dos engarrafamentos de boca da noite, que paralisam a cidade.
Teve uma hora que ele fez uma ligação e ficou um tempão, a bom expressar detalhes daquele momento. Falava para alguém que a aula começa às 6 e quinze. Que ele reconhece o inferno que se transforma o trânsito nesse horário de pico. Admite que daquele jeito não vai chegar nunca no horário. Traçou pontos críticos. Na frente do Santa Rosa. Naquela dobra do Shopping, na Doca. Mas já estava chegando. Perderia a primeira aula. Mas estava chegando.
Percebi, pela sequência da conversa, que a pessoa do outro lado da linha, apelando para obviedade, perguntou por que ele não saía de casa mais cedo, já que conhecia as travas do caminho. Nesse momento ele foi fatal. Cravou em verso, estilo, vivência e contundência. Respondeu dizendo que até poderia sair mais cedo de casa (e arrematou na maior caté), “mas tem aquele negoço: chove”.
Eu ali, precisado, carente de um descanso, de um chazinho e um colinho provedor. Diante de uma declamação desprovida de qualquer remorso, e ao mesmo tempo nutrida de uma composição estilística genial, por uns instantes declinei de dar trela às dores do trânsito e à gripe. A gente tá pê da vida, né, teve um dia horroroso, não teve? Mas tem aquele negoço: a palavra franca e inusitada reanima.


sábado, 11 de novembro de 2017

crônica da semana-grandezas

Grandezas e pequenezas
Éraste! Estava com uma idéia na ponta dos dedos, para a crônica da semana passada, mas quando comecei a digitar a maré mudou e saiu uma história diversa daquela pensada no início.
Queria me retratar sobre um furo daqueles, ó, que cometi no meu último livro. Um erro (até perdoável), mas, não isento de uma autocrítica. Um deslize que veio varando, se arrastando ao longo dos tempos e das mídias.
Tirando um pelo outro, o texto para o livro deveria estar todo nos conformes. Por isso, antes de mandar rodar, faço correções. Contrato gente, peço para parentes próximos capricharem na leitura. Passar um pente fino. A missão é garimpar desvios na grafia, na acentuação, na separação silábica, essas coisas, que derrubam a gente de quando em vez.
E não é que dia desses, depois do caso passado e repassado, meu amigo César Corecha, na viagem para Barcarena, lendo “Janeiros”, meu mais recente lançamento, veio comigo checar uma notação que fiz na página 46. A passagem relata a minha estatura (o dito erro). Deveria dizer que tenho um metro e cinquenta de altura, mas como não se trata de papeleta de exame biométrico, resolvi provocar o leitor fornecendo a informação em outra escala de grandeza (no meu caso, de pequeneza), não exatamente aquela do uso comum.
Corri a vírgula para a direita de 1,50m, o que significa multiplicar a grandeza por 10, e busquei uma notação em decímetro, que acho, ninguém, em momento nenhum da vida ousou usar (era uma crônica, certo? E crônica não é necessariamente a lógica curta e pronta. Um floreado, cai bem). Usamos metro, centímetros, milímetros, mas, decímetros, não temos o costume (temos padrões. Alguém de vós já se referiu a uma distância em hectômetro ou a uma medida em hectolitro? Uma famosa miss já perdeu o título mundial por causa de seus 0,00005 quilômetros a mais de cintura? Ou um corredor já percorreu 42 milhões e 197 mil milímetros de uma maratona?).
Disse, no texto, que minha altura era 150 milímetros. Errei feio. 150 milímetros não é a mesma coisa que um metro e meio. Bem feito, quem mandou florear sem o devido cuidado. O certo seria 15 decímetros. Ou, 1.500 milímetros. Em tudo por tudo, errei.
E o pior. O texto foi assim pro jornal, assim pro blog, foi desse jeitinho para a edição do meu livro e, de quebra, foi para a orelha de “Janeiros”. Uma mancada das grandes.
Não vai dar para chamar todo mundo que adquiriu o livro, para um recall. Rogo, porém, pelo perdão dos meus leitores. Foi um erro de cronista presepeiro, que ousa praticar o diferente. Faltou zelo, atenção em todas as fases e trajetórias dessa crônica, o que é motivo suficiente, não para que eu deixe de arriscar novas formas na minha escrita, mas para que eu exercite com mais apuro, a percepção (agora sim, nua e crua) do que escrevo, tanto em grandeza, quanto em pequeneza.

Era pra escrever sobre esta mancada, sábado passado, escrevi sobre a prova dos nove. E por falar nisso, 15 decímetros, novesfora, é 6. E a única vez que vi uma medida em hectolitro, foi no comércio de castanha. Uma medida injusta, aliás, imposta ao homem da floresta.

terça-feira, 7 de novembro de 2017

crônica remix - cobra sofia

Aí, aí...Quem conta outra?
Era uma vez um caçador que varava as noites à espera de uma boa caça. Na lua nova, localizava a comidia só com a raquítica luz de sua lanterna. Quando lá chegava, subia no mutá e ficava em silêncio, sem mexer um dedinho sequer, nem quando as suvelas lhe consumiam o sangue em sucessivas e doloridas ferroadas.
Certo dia, o caçador resolveu armar o mutá na lua cheia mesmo. A casa estava abastecida de carne de tudo quanto é tipo de bicho, mas o caçador agora, queria pegar um gato, pra tirar o couro e vender pr’aquele doutor que acabara de chegar na cidade.
Chegou no barreiro, ouviu o fuçado perto, e quando o primeiro porco apareceu, disparou. Sangrou o bicho, espalhou o sangue por um longo caminho e jogou o porco-do-mato dentro de um alçapão. Subiu na árvore e assuntou.
Quando a lua estava bem no meio do céu, os mistérios da meia-noite começaram a inquietar a alma do caçador. A mata silenciou e nem o zunido ameaçador das suvelas ouviu-se mais.
Foi então que ele viu, aproximando-se, entre os matos finos que se estendiam sobre a picada um hominho de cabelos vermelhos e pés pra trás. O pequenino encantado emitia um som de dor e revolta. Investiu sobre o alçapão e destruiu com poderosos golpes os feixes de gravetos entrelaçados que serviam de prisão para o porco-do-mato. O bichinho ainda respirava, mas sangrava muito. Antes de socorrer o porco nos ombros e ganhar o rumo da mata, o anãozinho achou o caçador se tremendo todo lá em cima, no mutá. Olhou para ele e...
Aí, aí... Quem conta outra?
Aí, sabe, num reino encantado, bem distante dali morava um príncipe muito bonito e muito bondoso. O príncipe tinha um primo que morava lá no alto das grandes serras, onde o céu é escuro e a noite é fria.
Este primo era muito mau e morria de inveja do príncipe porque ele era bonzinho e tinha muitos amigos e admiradores. O primo mau não tinha ninguém. Nem pai, nem mãe. Nasceu de um galho de espinheira e foi criado por um cachorro do mato e por um pavão sem cor.
Um dia ele encontrou uma bruxa que andava por ali pela floresta doida pra malinar com alguém. Então o primo mau prometeu para a bruxa que  se ela transformasse o príncipe em um urubu e, também, se ela encantasse todo o reino para que dele fosse amigo e bajulador, ele a levaria para morar no castelo e lá, ela poderia fazer as perversidades que quisesse.
Aí, sabe, a bruxa jogou o encanto, e no outro dia o príncipe apareceu no quintal bicando a lixeira e ciscando um restinho de comida aqui, outro ali. Foi então que apareceu a fada madrinha e ...
Aí, aí... Quem conta outra?
Aí, sabe, na beira do rio São Francisco, em Barcarena, morava uma família temente e devota das coisas do Senhor. Um dia, o vizinho lá do centro veio e avisou: “olha, não presta cozinhar carne de caça na semana santa, que a cobra Sofia se enfeza e vem buscar a gente”. A família não maldou. Na quinta-feira, a pesca rareou. A fieira que o pai trouxe não dava pra nada. A mulher então inteirou o comer daquele dia com um quarto de paca que ela tinha salgado dias antes. A família comeu à vontade. Empanzinaram-se de costela assada com farinha e com o caldo de peixe.
No outro dia, em jejum, o pai saiu pra pesca, com o filho mais novo. Quando cruzaram a ponte nova, sentiu o banzeiro. O pai fez ai Jesus e benzas deus e remou o mais forte que pode. Mais adiante, já quase chegando no  porto da balsa, a cobra Sofia ergueu-se das águas a quase dez braças do nível da maré e avançou sobre a canoa do caboclo. Nessa hora ele deu um grito medonho, se pegou com todos os santos e...
Aí, aí... Quem conta outra?  



sábado, 4 de novembro de 2017

crônica da semana-novesfora

Novesfora nada
Eu me diverti a valer com um vídeo que recebi outro dia pela internet. Mostrava um garoto oriental, na escola (sofrendo) de frente a um quadro, com o desafio de resolver a conta de subtração pedindo o resultado de oito menos seis. A conta no giz da lousa, o pequeno no aperreio. Tocava a lousa, contava nos dedos, fechava os olhos, efetuava mentalmente a operação, e nada. Numa última tentativa, recorreu à inocente cola. Olhou para a turma atrás dele e o olhar suplicou uma dica. Entre discrições e dissimulações, percebe-se um dos coleguinhas acenar para ele com os dedos médio e indicador em destaque. Ele disfarçou, deu um suspiro de alívio, voltou ao quadro e escreveu a letra “v”, além do sinal de igualdade.
Entendo a tensão do garoto. Quem de nós não passou por uma situação difícil assim de ir ao quadro e ser desafiado a dar uma resposta. A gente fica por acolá de nervoso. Eu mesmo, dia desses, já velhinho, quando fazia Cálculo I, na Federal, fiquei num pé e noutro quando a professora me mandou escrever um Intervalo Real no quadro. Mandei: (6,2). Não atinei que os números devem ser escritos em ordem crescente. Peguei uma super bronca de uma colega metidona que me repreendeu dizendo que por ser o mais velho da turma, deveria dar exemplo, não era pra errar uma notação besta daquelas que a gente aprende na sétima série. Toma-te. Me ferrei. Poderia ter olhado pra trás e suplicado uma cola, nera.
Aí, tá. Passou, passou. A turma toda criou uma cisma com a colega. A maioria dos jovens estudantes, além de mim, o velhinho da classe, estava reprovada mesmo (por causa também do Intervalo Real lá da sétima série) resolvemos dar um ‘até semestre que vem’ pro Cálculo I, com uma festa. Fiquei na contabilidade dos comes e bebes. Listei nomes, valor da contribuição de umas trinta pessoas e, no final, sem máquina, somei tudo na ponta do lápis. Ao final da conta, fui pedir a coleta da coleguinha. Aproveitei e pedi pra ela fazer a prova dos nove, pra ver se minha conta estava certa. Mas quando! Sabia as mais intrincadas equações, as mais enigmáticas funções. Derivadas por definição e Integral tripla. Mas se emboletou todinha pra me dar a prova dos nove da minha conta.
Dou o desconto para nossa jovem presunçosa. Essas coisas, prova real, prova dos nove, ponta do lápis, são artes de caixeiros, de prestação, de taberneiros das antigas, daqueles que vivem com um lápis atrás da orelha. Aprendi um pouquinho, com minha mãe a tirar a prova dos nove. Ela usava este artifício para garantir a certeza do que tínhamos em débito ou em haver, no final de cada dia de peleja com o crediário Santa Luzia, em perambulações, pelas ruas da Pedreira. Eram contas que iam além de uma página da caderneta de notas. Ao final, para conferir o resultado, lá íamos nós: oito e sete, quinze. Novesfora, seis. Bateu.
Este mês, já familiarizado com os limites que os intervalos da vida real nos impõem, inseri a conta de luz na coluna de débitos da casa. A conta não fechou. Calculei de novo e tirei a prova dos nove. Nove, novesfora, zero.
Bateu. Conta certa, futuro incerto.



sábado, 28 de outubro de 2017

crônica da semana - Hera de felicidade

Hera de felicidade
O Hera da Terra foi um grupo musical formado na Sacramenta por uma moçada que, ou estudava, ou orbitava a Escola Salesiana do Trabalho. O núcleo, que conheci, do grupo, era formado por Antônio Francisco e Ribamar Araújo que se dedicavam à criação das letras e por Arlindo Cruz, músico inspirado e encarregado de pôr melodia nos versos dos poetas.
Conheci a moçada meio que pela dor. Estudava na Escola Técnica.Tinha lá meu melhor amigo. Fazíamos uma reuniãozinha debaixo dos estirados buritizeiros que reinavam lá pras bandas do pavilhão de Edificações, e por ali rolava de tudo. Discussão política, recitais de poesia, partilhas estéticas e muita música. Deu então, que, o agora jornalista Edir Gaya, meu chameguinho até hoje, começou a trazer um som diferente para nossa confraria. A fonte que ele bebia ficava lá na rua Primeiro de Setembro, na Sacramenta. Acabava a aula e ele se mandava pra lá. E eu, me conformava em estar perdendo (a dita dor) meu amigo para outros e maravilhosos estilos. Até que um belo dia, nos cruzamos, eu e o Hera. Foi num festival de música na Escola Salesiana. O Hera iria para a final com a bela ‘Despertar das Lendas’.  Edir já tocava no grupo e eu coordenava aquela edição do festival. No último dia, me aproximei do Arlindo, que àquela altura estava recebendo elogios encarreirados pela maravilhosa canção da final, e entreguei-lhe um papelzinho com um poema que havia feito. Não pedi que musicasse. Fiquei com vergonha, mas, oh, oh! Era óbvia a minha intenção. Foi desse jeitinho que passei a fazer parte daquela era de felicidade.
Alguns dias passados daquele encontro com Arlindo, o grupo me convidou para participar da reunião deles. Fomos eu e Edir Gaya. Vivi uma noite inesquecível. Ali estavam todos eles, os artistas da Sacramenta. No centro de uma grande mesa, um garrafão daqueles de 5 litros, cheinho da mais aprumada e concentrada batida de limão da paróquia. Ouvi as mais lindas canções, histórias de vida (era como uma apresentação). Soube dos meninos que viajaram com o Johnny Alf e por aqueles dias, faziam sucesso nos Estados Unidos, reconheci sonhos e propósitos, no grupo. A casa era quase um centro de peregrinação, quando o Hera reunia. Todo mundo pintava por lá. Do meio pro fim, com as ‘emoções tomando conta do lugar’, o Arlindo pediu pra mostrar uma música nova. Era o meu poema. A minha era começando no Hera. Arlindo cantou uma ou duas vezes, a moçada aprendeu, depois todo mundo cantou, quem tocava, pegou o instrumento e tocou junto, e eu só chorava (éraste, chega me dá um arrepio, neste instante mesmo, quando recordo essa passagem que se vai além dos trinta anos na história).
Ainda daquele festival, o Hera herdou jovens talentos como Carlinhos, Déia Palheta, Gil Galiza, Augusto Hijo, Cristina Matos, Dimmi, e euzinho que me emboletei com os bons. Um grupo mais robusto e criativo que enriqueceu pacas a cultura da periferia.

No dia 14 próximo passado, voltamos a nos reunir em grande folguedo, depois destes bons trinta anos. E foi uma maravilha este reencontro. Desconfio que reiniciamos uma nova era.

sábado, 21 de outubro de 2017

crônica da semana - do menor para o maior

Do menor para o maior
Nunca mais tinha ido pras partes. A cidade escureceu, algo nela entristeceu e eu desanimei. Mas o show do Milton Nascimento deu uma chacoalhada na minha rotina de recluso. Economizei uma ponta, me adiantei nos ingressos, montei minha turminha e, no sábado, mal bateu a campa e eu já estava lá de palmo em cima com o Bituca. Quer dizer... quase.
Cheguei cedo, fui me ajeitando, ansioso e feliz por estar bem posicionado. Mas perdi feio para quem ia além dos meus voluntariosos metro e cinquenta de altura. Fiquei de palmo em cima, mas me valendo somente de uma brechinha, de um pescocinho mais estirado de fino, de um desabraço dos casais que se postaram à minha frente.
Há uma tendência, em Belém, de realização destes shows mais concorridos, em espaços plano-horizontais, sem desnível. Aí já viu, né, além da conformidade planar do piso, nós amazônidas que estamos ali na estatura média pouca coisa acima de um metro e sessenta, enfrentamos mais uma dificuldade pra enxergar direitinho, os artistas. Somamos a esta questão, uma luta selvagem dos espectadores na conquista de posições perto do palco. Uma luta ferrenha, na maioria das vezes velada, decidida em detalhes e que utiliza a força e a envergadura dos contendores. Para nossa indignação, os que são do tipo armário, não raro, vencem.
Nessas horas, a gente vê pessoas diferentes daquelas que encontramos na batida diária pela Pedreira. Há uns porrudos, forjados a bons e vitaminados repastos, que não estão nem aí para a partilha do espaço. Não só na vertical. Também na horizontal. Não se misturam. Não admitem um ombro ao lado, ou uma distância mínima de convivência. Impressionante! Em pleno show do Milton, um artista que canta músicas de paz, um cara que faz melodias que se harmonizam com as estrelas, a gente encontra gente devoradora, territorialista, egoísta. Até ali, nos detalhes, rola o bom combate, só que presenciei a cena de um camarada que, pela compleição física, poderia, sem prejuízo algum ao campo de visão, ficar um pouquinho mais atrás, ceder o lugar para uma petizada entusiasmada, para mim, para minha filha ou para o meu amigo Elias Pinto, bravo combatente. Mas não. Postou-se à nossa frente, feito uma muralha. E foi tal a barreira que ele fez, que, se não nos acudíssemos das brechinhas, a única visão que teríamos seria o vermelho da camisa de marca dele. E quando alguém superou aquela barricada e lançou-se à frente, alheio ao mantra das estrelas que inundava o local, o monstro aplicou-lhe uma sonora cachuleta. Seguiu-se o maior climão. Ah, mas reinei tomar as dores da categoria e mandar aquela castanheirona vermelha abaixo com os golpes certeiros que aprendi naqueles filmes de Shaolin que passavam no Paraíso. Para o bem dele, me conformei com as brechinhas.

Fica a dica para as próximas produções. Podem introduzir o sistema ‘do menor para o maior’. Montar um corredor com uma varinha horizontal daquelas que limitam a altura (dizque sistema largamente utilizado como critério de gratuidade à petizada em balneários pelo interlan). Bateu nela, pra outra fila, pra outra fila.

terça-feira, 17 de outubro de 2017

Sobrevoando as montanhas coloridas dos Andes. Cusco- Peru

sábado, 14 de outubro de 2017

crônica da semana - a bom remar jorane

A bom remar
É um jeito delicioso de falar que não se usa mais. Antigamente era comum: “dizque fulana ia me dar uma prova daquele chope de groselha docinho. E eu, a bom acreditar nela, mas quite, me enganou, a sacrista”... Só Jorane mesmo.
Uma única vez a vi de pertinho. Foi numa mobilização em favor da preservação do Casarão da Praça Ferro de Engomar. E nem foi tão de perto. Eu fiquei numa esquina, e ela noutra. Mas reparei bem o quanto ela é reconhecida como uma referência. Revela opiniões, expõe ações. Naquela época, fez peso, ali na praça, em favor da proteção do Casarão que estava sendo pilhado de peças estruturais e ornamentais de considerável valor histórico e cultural.
Sou fã da cineasta Jorane Castro. Não sou nem crítico de cinema nem nada, mas dou o maior valor na linguagem que ela usa para contar as histórias na tela. Além do talento, Jorane tem uma desenvoltura, uma facilidade na comunicação de chamar atenção. É jornalista, atua no meio acadêmico, tem obras reconhecidas internacionalmente, mas admiro muito a cineasta, também, por aquele traço ribeirinho, aquele viés pés no chão da personalidade dela.
Atinei bem na revelação destes vieses da alma, numa entrevista que ela deu à jornalista Linda Ribeiro, no programa Coxia. Um momento muito dos seus pai d’égua. Duas destacadas figuras  na arte da comunicação. Linda Ribeiro, usando da sua reconhecida competência como entrevistadora, deixou Jorane muito à vontade para uma boa conversa. E aí, ela cortou e arou. Falou dos tempos que viveu fora do Brasil, dos grandes projetos que participou, da estrutura profissional que ergueu para viabilizar o cinema na Amazônia. Éraste, e eu, vendo pela televisão e já conhecendo um pouco da trajetória da cineasta, fiquei até tonto com tantos valores, com tantas conquistas, com a envergadura do talento de Jorane. Estava, então, explicado: Me peguei como um fã platônico que jamais atravessaria a rua da praça  Ferro de Engomar para puxar uma prosa com pessoa tão famosa, mesmo que fosse para salvar o Casarão. Era uma estrela das mais inalcançáveis alturas. Das mais inatingíveis lonjuras...
Até que ela começou a falar das vezes que vinha de Paris para as férias e se quedava aos encantos ribeirinhos do interior. Nessa hora, bateu o martelo sobre aquela coisa da natureza cabocla que ela preserva. Mostrou-se rés ao chão paraense. Perto mesmo, de ao pegado da gente.
Em determinado momento, usou uma expressão que por demais me encanta. Confrontando a vida nos glamourosos recantos da Europa, com o emaranhado de furos que moldam os rios da Amazônia, revelou que, quando das férias, passava os dias no interior “a bom remar, a bom remar”, assim mesmo, de forma reiterada.
“A bom remar” É uma variação do sentimento de intensidade que vale para “a bom esperar”, “a bom andar”. Só Jorane mesmo, em entrevista perfeita, na simplicidade de todo seu brilho, para abrigar tão bem, na boa fala, uma pérola dos nossos dizeres tradicionais.
E falou com tanta naturalidade, que parecia que estava na porta da rua, numa conversa solta, de fim de tarde cametaense, a bom enfileirar causos.


segunda-feira, 9 de outubro de 2017

domingo, 8 de outubro de 2017

crônica da semana - círio psicodélico

O Círio e o povo unido
Quando entramos na praça, um tilintar psicodélico ecoou dentro de mim, uma satisfação líquida percorreu minha dorsal, ativou minhas terminações nervosas e o meu mundo transladou pela órbita letárgica de um caleidoscópio de flores lilases. Viajou entorpecida minha alma entre cantigas e bênçãos. Havíamos chegado no céu.
Mas antes, lutamos a luta de um povo unido.
Os padres franceses estavam um isso para serem expulsos do Brasil. Enquadrados na Lei de Segurança Nacional, os religiosos aguardavam julgamento presos.
O Círio era no dia seguinte. Na sede do Ipar, uma reunião, à revelia da ordem de Dom Alberto Ramos que proibia a realização de qualquer manifestação na procissão, decidia a estratégia de mobilização e protesto em apoio aos padres e aos 13 posseiros do Araguaia. Uma alemã magra, alta, com a dicção voluntariosa, fazia uma fala de certezas e crenças na liberdade. A pastora Rosa Marga iniciava um apostolado vibrante, corajoso, e solidário. Foi a grande líder do MLPA, movimento que se ergueu para lutar ao lado dos presos do Araguaia.
Tínhamos uma irmã salesiana na luta, também. Irmã Lísia era, como todas as outras freiras, digamos assim, caseira. Não se abalava para as coisas do mundo. Professava sua fé coordenando o semi-internato do Centro Social Auxilium e de lá saía apenas para a reunião com os jovens, do outro lado da rua, na Escola Salesiana do Trabalho. Foi contaminada com o bichinho do inconformismo, com a larvinha revolucionária. E acabou saindo pro mundo. Para toda reunião ou mobilização do MLPA, a gente arrastava a Queridinha, querido diminutivo pelo qual a irmã era conhecida, por causa daquele humor cearense da peste.
Vivíamos dias de transformações no início dos anos 80. A igreja retornava com as Comunidades de Base, apostava na práxis popular centrada no método “Ver, julgar e agir”. Os religiosos eram chamados a colaborar. Nossa turma operava com, o então padre, Brunys e com a Queridinha, pelas ruas estivadas da Pedreira e Sacramenta, no diapasão de Puebla.
No dia do Círio, o pau cantou feio. Dom Alberto falou. Dom Alberto avisou. Não passarão.
Até que caminhamos um bocado, mas, às proximidades da Basílica, o tempo fechou. Polícia despintada que estava no meio de nós, polícia fardada, todo mundo tirou uma casquinha. A primeira faixa a ser destruída, para mim, era a mais verdadeira. Trazia uma passagem da conversão de Paulo: “Por que me persegues?” Era simbólica. Quando ela caiu, quando se esfarelou aos pisões da repressão, nós todos nos esfarelamos. Padres, freiras, religiosos, leigos, jovens, velhos, todo mundo apanhou. Muitos foram presos com violência. Sangravam. Mas não choravam. Em meio ao ataque, ainda se entoou um canto novo de alegria, até o sufocamento total da manifestação. Eu fui varando, com pedaços de pano e uma ferpa deste tamanho sacada da estaca que emoldurava minha faixa, na mão. Pequenininho, me vi diluído naquela multidão, triturado por uma onda poderosíssima. Era a Berlinda chegando.

Quando entramos no CAN, um psicodelismo lilás acendeu dentro de mim. Havia chegado no céu.

terça-feira, 3 de outubro de 2017

crônica remix - Francisco

O Santo dos pobres
Um violão Giannini Trovador. Vinte e seis exemplares do Asterix, que representavam até então, a coleção completa dos episódios criados pelos geniais franceses René Goscinny e Albert Urdezo. Um Pau de Chuva, instrumento percussivo que arremeda o som de água caindo, originário dos Andes chilenos e que comprei, numa exposição, como sendo artesanato dos Cintas-Largas. Uma caixa com muitos quadrinhos. A linhagem inteiriçada dos cartunistas paulistanos. Revista Circo. Chiclete com Banana. Geraldão. Níquel Náusea. Piratas do Tietê; De carona, a vovozinha revista MAD, já nos estertores, fazendo o contraponto; e uma pilha de PQP que mamãe mandava pra mim, todo mês. Somando no acervo, os primeiros números de O Planeta Diário e Casseta e Planeta. Noutra caixa, as aquisições capa dura, feitas junto ao Círculo do Livro e também adquiridas na livraria da, revolucionária, Rose. Sartre. Veríssimos, muitos Veríssimos e as minhas, até hoje, iluminações literárias, Zero e Feliz Ano Velho. Na mala, uns vinis ‘emprestados’ de Mercedes Sosa, Zé Geraldo, Ana Belém, Maria Betânia...e preciosas amostras de cassiterita, columbita, topázio, quartzo-dente-de-cão, quartzo rosa, uma fagulhinha, quase invisível de diamante industrial, meus quase nada de vestir, um frasco de Contouré  e...só. Esta era a minha bagagem franciscana quando embarquei em Porto velho, de volta para Belém, num dia 4 de outubro, como o de hoje. Dia de São Francisco de Assis.
Operou um milagre, o Santo dos Pobres, naquele dia. Depois de quatro anos longe, estava difícil de voltar. Uma greve poderosíssima dos aeronautas tirou do ar uma leva de aviões. Os vôos liberados eram um aqui, outro ali. Esta situação fez com que, naquela terceira vez, eu me visse deixando Porto Velho sem ninguém para me dar um tiauzinho, antes do embarque. Estava sozinho. Mas deixei estar, não queria incomodar os Borges Guimarães, a minha família rondoniense, com mais uma tentativa. Antes, nas duas incursões, toda a galera. Lencinho branco de despedida, lembrancinhas, emoções, saudades antecipadas, e, olha só, os vôos foram cancelados. No dia 4 de outubro, havia uma chance mínima, para que a viagem desse certo. A providência, um milagrezinho tinha que acontecer. Combinei com meu povo que iria sozinho, afinal, milagres não acontecem assim, na vida da gente, quando a gente bem entende. Não botei fé.
O avião que me trouxe marcaria certinho o final da greve. Desde ele, tudo voltaria ao normal. Desembarquei em Belém, já de tardinha, com a certeza da ajuda do Santo Francisco.
Sempre fui fã de São Francisco (meu filho tem Assis no nome). Isso, se não causou conflito, gerou um desconfortozinho na minha vivência dentro da igreja. Sou ex aluno salesiano. Atuei na pastoral da Sacramenta, nas comunidades de base, nos movimentos de jovens, levando a mensagem de Dom Bosco, mas não escondia a minha inclinação franciscana.

Um ser humano admirável, Francisco. Em plena idade média, num cenário irrefreável da ascensão burguesa, rebelou-se e optou pela pobreza. Talvez essa reviravolta na vida seja, realmente, o maior atrativo na historia de Francisco. E esta visão, um tanto romanceada do santo, de prima, me arrebatou. Mas depois, conhecendo mais sobre a opção de Francisco (e ajudado pelos cenários históricos dramáticos envolvendo os Fraticelli, descritos por Umberto Eco em O Nome da Rosa), tomei pé do quanto o Santo de Assis foi sábio e corajoso para superar a suntuosidade da Igreja, a soberba do clero, a ânsia dos pobres... séculos mais tarde, a greve dos aeronautas, e operar milagres. Salve, Francisco!


sábado, 30 de setembro de 2017

crônica da semana - banzeiro

Banzeiro
Daquele dia que aportamos no galpão Mosqueiro-Soure, chegando do Acre, custei que só para navegar nas águas da Guajará de novo.
Meio tonteira isso, algo de não se entender, mas nós belemenses, temos um jeito continental de ser e de estar. Pouca trela dedicamos às nossas águas de fora (do contrário já teríamos uma linha regular de transporte público, Icoaraci-Belém).
Nos batemos há tempos pelos caminhos de terra firme, hoje mais que antes, travados, engarrafados, esburacados e perigosos. Resulta que só caí pra dentro da baía, novamente, quando regressei de uma temporada de um ano trabalhando nas minas de ouro do Amapá. E foi cheia de graça essa minha viagem. Poderia regressar de avião, o contrato que fiz com a empresa, me dava direito. Quis experimentar a aventura de quase 24 horas navegando pelos rios amazônicos. Troquei minha passagem de avião por uma de navio e zarpamos eu e minha companheira Edna. Ela, que durante a minha jornada em Macapá fez várias vezes este trajeto, não se animou muito. Mas eu... Cisquei a viagem toda. Não preguei o olho. Subia, descia os conveses, zanzava de popa a proa. Perdia o olhar durante o dia procurando o horizonte ou, pela parte da noite, admirando o brilho das estrelas. Por vezes, eu corria exaltadíssimo ao encontro de Edninha com a notícia de que as canoinhas estavam se aproximando. E ela, calejada naquela lida, me voltava com uns saquinhos plásticos já preparados contendo pequenos regalos a serem lançados para os ribeirinhos. E lá eu me abalava para a balaustrada do navio, aprumava a pontaria e...
Foi uma experiência. Uma vivência que jamais pensei, no futuro, se repetir tantas vezes.
Pouco depois de voltar de Macapá e retomar a vida continental de Belém, fui chamado para trabalhar em Barcarena. Pronto. Acabou a aridez. Findou-se a pobreza de água. Se num determinado momento da minha vida, me fiz cativo das terras emersas, nos últimos 22 anos, me realizo no leito da baía do Guajará. Começo e termino o dia navegando os humores das águas toldadas do estuário.
E esta frequência me dá um quê de proximidade com a dinâmica da baía. Conheço detalhes da travessia. Entendo o balançar do barco em cada trecho da viagem. Me permito a tensão quando cruzamos a foz do rio Guamá e navegamos meio de banda resistindo à forte correnteza guamarina. E me deixo folgar quando o sentido da corrente passa a ser único, na frente de Belém.
Um tempão ziguezagueando por este tecido líquido guajarino, garante o conhecimento sobre a ocorrência das marés e permite elaborações de agendas (na maré cheia, a viagem, normalmente é mais rápida. Isto não é uma regra, mas, pelo comum, é). O cerzido diário me concede saber respeitar a vontade dos ventos.
Dia sim, outro também, a caminhada sobre as ondas me alerta para a época do ano de grandes banzeiros. De manhanzinha, até que não, mas ao cair da tarde, agora, entre agosto e dezembro, o banzeiro é certo. É tempo de onda quebrar no Ver-o-Peso e ir lamber a calçada da ‘Casas Pernambucanas’.

Para quem se queixava ser continental, a aventura, de uns tempos pra cá, tá é boa.

terça-feira, 26 de setembro de 2017

degenerescendo

Há homens que eu aprecio
puros ou com gelo
grisalhos ou imberbes
ativos ou pacatos
doces ou amaros
sutis ou indelicados
ébrios, ébrios,ébrios
ou sóbrios e sonolentos
Há homens que eu aprecio
puros, crus, ao natural
ou com uma pitadinha de sal
pais, filhos, espíritos cantos e encantos
mas são poucos
muito poucos
e com carinho
lembro tanto deles.

sábado, 23 de setembro de 2017

crônica da semana - brisa

Super da brisa
Ontem aconteceu o equinócio. E não tem nada de oculto ou misterioso nisso. É o marco de um período que o sol se posta exatamente sobre a linha do Equador, determina também a incidência direta dos raios solares nas superfícies tropicais. Corresponde ao momento em que a Terra está mais perto do sol. Todos estes eventos, somados às particularidades do planeta, interferem na posição da zona de convergência intertropical, aquecem as água do Atlântico Norte e provocam fenômenos naturais como tempestades e furacões. Fenômenos absolutamente naturais, resultantes da dinâmica prodigiosa do nosso planeta. Não tem nada de castigo de Deus nisso.
Mesmo porque Deus é super do bem, super da brisa.
Um ensinamento que mais pininica dentro de mim, e que resultou positivamente da minha passagem pelo oratório da Escola Salesiana do Trabalho, foi a certeza que o padre Lourenço nos dava de um Deus de amor. Comparava a bondade de Deus com a vida cotidiana de um pai de família ali das baixadas da Pedreira. Dizia que o pai não quer o mal para os filhos. Ele provê, cuida, dá carinho, e só deseja que os filhos sejam felizes.
Acredito até hoje na convicção do padre Lourenço. Diante dela me é muito claro que os filhos de Deus que habitam as terras do Haiti, de Cuba, das pequenas ilhas caribenhas, do delta do Mississipi, de jeito maneira, foram atormentados por forças divinas.
Relacionar as catástrofes naturais à ira de Deus, para mim, é pecado mortal. Leva, sem maiores discussões ao fogo eterno. É alta trairagem com o pai, além de uma robusta demonstração de ignorância. Mais fácil e mais possível é que as tragédias tenham razões nas insanidades humanas.
Uma passada de vista num bom atlas geográfico daqueles das antigas, faria um bem danado no entendimento dessas catástrofes. Deixaríamos de perseguir o bom pai, e nos daria vaga a perceber soluções e proteções.
A população dessas regiões tem o conhecimento desses riscos. A eles, falta a atenção de políticas preventivas. Engenharias aplicadas. Poder de mobilização. Condutas e infraestruturas eficientes de evacuações e socorro. O que a gente vê, pelas notícias que nos chegam, é que tecnologias que se antecipam aos fenômenos ajudam bastante. Salvam vidas.
Deus é do bem. Deus é da brisa. Do amor e da felicidade. Não tem nada a ver com dores, tormentas e furacões.
Quando não entendemos um evento na natureza como pertencente ao planeta, damos vez à tragédia. Quando nos comovemos com um vendaval no litoral da Flórida e desconhecemos o avanço das águas sobre Cuba, sobre o Haiti, como se só existissem seres humanos dignos de atenção na costa leste dos Estados Unidos, nós sim, é que somos um pouco culpados por dores, tormentas e furacões.
O equinócio é um fenômeno importantíssimo na história das civilizações. Estamos aqui, porque o homem tratou este evento com racionalidade e moldou-se a ele. Aquece as águas do Atlântico Norte, atiça a circulação dos ventos, cria redemunhos enormes. Não tem nada de castigo de Deus nisso.
Equinócio quer dizer “noite igual”. E não noite eterna. Não nos fechemos na escuridão.



sábado, 16 de setembro de 2017

crônica da semana - patrimônio cultural

O patrimônio e a pamonha
Um dos resultados desse estado de coisas é o contágio. Agentes ativos e passivos sucumbirão à piração espalhada no qual pega. Agradeço ao bom pai, que eu não seja exemplo para nada, e para ninguém, mas se for tirar por mim...
Mire e veja se não é um desatino: a água geladinha, corrente e transparente, em profundidade boa para garantir um senhor dum tibum. A maravilha de um igarapé pródigo, correndo ao meu lado, me convidando para os prazeres da natureza, e eu, entre incrédulo, indignado e bestão, me pego conferindo o sujeito operar aquela aparelhagem dos infernos montada na mala do carro dele, pelo controle remoto. Avalio que aquilo só pode ser produto do mais puro e indissolúvel sadismo.
Ocorreu no final de semana próximo passado, logo na biqueira de estes monstrengos barulhentos serem indicados pela Câmara, como patrimônio cultural e imaterial de Belém.
Não bastasse o barulho grassar em cada palmo desta cidade, agora é reconhecido como um bem cultural. Égua-te, pira-paz.
Por outra,vamos à vida real. Dez, entre dez pessoas, com quem entabulo uma conversa sobre este assunto, relatam algum tipo de pendenga. Uma zanga, uma humilhação. Para tirar as provas, aproveitei apara fazer umas comparações regionais, ensejando a visita de uma amiga vinda de Manaus. Fiz aquela sabatina. Perguntei sobre o calor, o tacacá com jambu pinçado a palitinho, o transporte público, e, é óbvio, sobre o barulho. De Manaus, livrou a barra. Mas de Belém, não deu um desconto. Diz-se apavorada. Os pais moram na Sacramenta e há mais de dez anos sofrem com um vizinho que tem um patrimônio cultural na porta. O pobre do casal foi bater no juiz. Parece até uma coisa, essas pessoas só podem ter pacto com o mais graduado dos satanases. Nada os detêm. Muitos demonstram abertamente serem protegidos por gente importante. Prova é que, segundo minha amiga, mesmo depois dos trâmites na justiça, as desditas sonoras continuam. E cada vez mais ferozes.
A gente tenta fugir. Pega a estrada sem rumo em busca de sossego.  Descobre praias paradisíacas. E quem está lá, atazanando na areia? A selvageria sonora. Dá meia volta. Ganha o mundo, sobe ladeira, desce ladeira, penetra no escondido da mata, e vai dar na beira de um igarapé maravilhoso, aquele da água friínha de engilhar a ponta dos dedos, num mergulhinho mais demorado. Foi lá que o destino colocou o infeliz com o controle na mão. Fiquei em transe. Não mergulhei na água geladinha, não bebi nada, não comi nada. Fiquei teso, só observando o sujeito operando o patrimônio cultural dele. Embora várias famílias estivessem ali, era ele quem comandava. Havia uma hora de profunda agressão. Um locutor gritava desesperadamente, amparado por um pop eletrônico, dentro das poderosas caixas de som. Nessa hora ele colocava o volume do máximo. Aquilo até hoje está na minha cabeça (é a tal da piração, do trauma). Quer saber, borimbora daqui, sugeri ao meu povo, humilhado.

Na volta, paramos na estrada e compramos uma boa partida de pamonha. Ainda bem, meu Deus, ainda bem que existe pamonha, para dar algum sabor à vida.