domingo, 28 de maio de 2023

crônica da semana - girand com a Terra

Girando com a Terra

Tô na pista. Voo turbulento. Balancei mas não caí. A vista turvou, boca secou, beiço branquiçou, suor frio desceu. A mãe do corpo reagiu e quando abri os olhos, estava de palmo em cima com o Cruzeiro do Sul. A constelação que me reanimou. A injeção de luz na veia que me trouxe de volta ao mundo maravilhoso, que abriga e nos oferta coisas belas.

Pensa que não, é? Pensa que é só um punhado de estrelas no céu que ninguém nem dá as horas pra elas? Né’não. É revelação, bálsamo, Emulsão de Scott, Vitaminé, garrafada que a tia faz lá pras bandas do agronômico, cebola no prego, vai-te mal e mandinga pra lá, sebo de Holanda na bifede, rodela de batata na testa, multi-mistura da irmã, benzeção no quintal da rezadeira mais antiga do bairro, boas energias e desejo de saúde em mensagens que chegam de longe. E de longe, lá de onde nossa imaginação nem consegue chegar, a constelação do Cruzeiro do Sul é metáfora, é prosa pra dizer, é palavra viva do faz de conta, cantiga de roda sem herói perto, é esperança que a gente sente, é simbolismo de reviravolta e de volta para o futuro. Aterrei. Amerissei. Traspassei as nuvens e dei de encontra com os novos tempos. Com os pés no chão, embora, um, mais atrás.

O que aconteceu foi que no início de abril, convivi com a suspeita de um mal difícil de curar. Aí já viu, né, me entreguei e me dei, compulsoriamente, como passado pra outra e esquecido. Fiquei num banzo, numa panemice! Suspirei. Recorri à ciência, confiei, busquei resultados, diagnósticos e me aquietei quando o mal foi descartado e me aviaria apenas com os tratamentos que a idade, que avança, exige. À base de medicamentos. Mas o pobre já viu, né, quando descobre um santo... Tive uma reação tão forte quando tomei a primeira pílula, que atribuí o passamento ao remédio que deveria me livrar, ora, ora, de todos os males. Corri pra bula, acionei os universitários e veio o alento: tá no prospecto que são comuns essas reações no início, mas depois melhora. Minha rezadeira de confiança complementou o otimismo afirmando que era a mãe do corpo se impondo e ditando regras de convivência com substâncias novas no organismo. Tornei.

Credito esses sustos ao meu inferno astral. Maio é tenso. Fico impressionado com as tantas emoções e de perfis sentimentais demais intensos e próximos. Este ano então. Meu aniversário, dia 14, caiu no dias das mães, o que já ativa minhas mais íntimas reações. Some-se aí, a carga de lembrar a data da passagem de minha mãe, exatamente no dia seguinte, dia 15. E também me vem de volta a tristeza pela perda do meu companheiro Cláudio Cardoso, no dito dia 15. São entrelaçados de pirar mesmo. E ainda me aparece a mãe do corpo... Aí não tem ‘as condição’...

O que me vale? O Cruzeiro do Sul!

Uma constelação com tantas estrelas... Minha companheira, minha filha, meu filho, meu compadre Edir Gaya, doutora Brenda e a netinha Petra.

O Cruzeiro do Sul, pelos cálculos infinitesimais de consciência e dor que faço, no silêncio das minhas reflexões, é a prova mais evidente, mais concreta e ao mesmo tempo abstrata, de que a Terra gira. Desde Galileu, provar que a Terra se move, foi um grande desafio. Contaram-se quase três séculos além, até que Foucault demonstrasse a rotação da Terra com a experimentação do famoso pêndulo.

Anoitecesse Foucault, o século 20, aqui pelas bandas de Belém, e como eu, abrisse os olhos, após temores intensos e desse de palmo em cima com o Cruzeiro do Sul, o pêndulo seria desnecessário. Acompanhando o movimento da cruz, entendemos de duas formas: ou o céu todo se desloca ou apenas a Terra gira naquele período sideral. Aí vai da gente.

Eu e minhas estrelas estamos de volta para o meu futuro. Girando com a Terra.

 

sábado, 20 de maio de 2023

crônica da semana - do menor para o maior

 Do menor para o maior

A maturidade alcançada desde domingo próximo passado quando completei sessenta anos, me confirma uma cisma antiga. Entre tantas personalidades e caracteres, destacam-se em momentos estes e aqueles específicos, duas bem marcantes. Há um grupo de pessoas, como eu, até, que quando vai às partes de grande concentração de gente, tipo um show, jogo de futebol, uma celebração popular, faz questão de chegar cedo, se posicionar com tranqüilidade e esperar na boa, o início do evento. Há um outro grupo que não tá nem aí. Chega em cima da hora, vai abrindo caminho, dando cotovelada, forcejando, deslocando os incautos que chegaram cedo, como eu, e se arruma o mais perto possível do grande acontecimento. Mas olha que dou de encontro com essa gente, e não é de hoje.

Em 1980, quando o Papa João Paulo II esteve em Belém, experimentei pela primeira vez a vexação com esta onda selvagem. Ainda no escuro da madrugada, eu estava de palmo em cima com o palco montado na Primeiro de Dezembro com a Mauriti. Houvesse Papa àquela hora, estaria ele ali e eu bem aqui, de confronte. O que se deu é que lá pelas 7 da noite quando o Papa apareceu e deu início à missa, eu já me encontrava indignado e descrente da empatia cristã, a pelo menos duas quadras além do lugar onde acampei pela manhã e o Papa não passava de um ponto branco indefinível, lá no afogueado da multidão. Desencantado com a humanidade, peguei o caminho do feio e nem pro final da celebração fiquei. Inda voltei a pé para a Pedreira porque a cidade parou, naquele dia.

À época, eu era igrejeiro, coordenador do Movimento que havia na Escola Salesiana. Articulei com entusiasmados jovens, cheios de energia e ocupamos a frente do palco por volta de cinco e meia da manhã. E de lá não saímos pra nada. Pra fazer xixi, para respirar outros ares, para encontrar outras pessoas. Não. Nos fechamos nas nossas posses e carências. Lá pelas quatro da tarde já tinha gente da nossa patota desmaiando. Coisa de uma hora antes da chegada do Papa, aquele grupo que não está nem aí chegou com beira. Formou uma avalanche. Se apossou de cada palmo da Primeiro de Dezembro que havíamos conquistado. Uma horda inteiraça, pois que, durante o dia não haviam passado por privações, ao contrário de nós, os combalidos iludidos. Diante daquela fúria, capitulamos e nos dispersamos. Fui sendo empurrado, pela multidão, até lá longe. Frustrado. Com fome e sede.

Por agora, me bato com outro grupo. O dos varapaus que ficam na nossa frente nas mesmas concentrações. Cadê lei regulamentando este tipo de assédio, esta humilhação? Situação bem comum neste modelo de platéia de piso em um único plano, ao contrário dos estádios, cinemas ou teatros onde o piso sofre uma inclinação que compensa os tops diferentes das pessoas. Agora, pela passagem dos Titãs em Belém, um cidadão que se destacava na platéia por ter pelo menos 50cm a mais que qualquer  outro ser vivente em toda a calha do Amazonas, simplesmente ficou estátua diante de mim. Caraca! Tamanho pai d’eguão! Estivesse ele lá no Combu, ainda assim desfrutaria de visão privilegiada do palco. Mas quite. Me tirou pra pagode em pleno show de Rock e ficou de flozô bem na minha frente.

Sem a lei do menor para o maior, proponho aos organizadores, o procedimento adotado em alguns balneários. Trata-se de uma vara estirada na horizontal regulando a altura nos vários compartimentos da platéia. Na frente do palco, aqueles que ficassem aquém da vareta de, vá lá que seja, metro e sessenta. Caso bata na vara, volta e ocupa o trecho anterior, até a outra vara. E assim a platéia alteia pra trás. Penso que ajudaria na afirmação do biótipo amazônico. Quanto ao show do Titãs, foi ótimo. Em nome da paz, mudei de lugar.

sábado, 13 de maio de 2023

crônica da semana - reticiências

 Reticiências... eu sei... tá errado

Tão invisíveis as freqüências a girar o mundo... a realidade se define de uma forma tal que... nem maldamos. Nes’isntante, dezenas, milhares de interferências nos rodeiam e a gente nem dá verso e conta. Só do celular, recebemos pra mais de tantas e ene minas de vibrações imperceptíveis. A maioria albergando as malditas fake news. Conta na conta, também, a infinidade de ondas de rádios que passeiam ao nosso derredor em AM, em FM, além de outros perfis eletromagnéticos que escapam do nosso campo de entendimento, e não nos habilitamos apreendê-los todos.

Uma dessas ondas, assensoriais se fez notar e me abordou di’cum’força esta semana. Reza ela sobre as reticências e os dias que se sucedem aos aléns e ao adiante.

Tirando pelo rumo, o além e adiante mais perto para mim é o domingo este amanhã quando completo, pelejadíssimos, 60 anos. E que logo de prima me traz a certeza do desprestígio total da data, embora carregada de significados. Ocorre que tão emblemática efeméride, atada a estes encarreirados que os aléns me reservam, cai exato no dia das mães. E nem dou uma de esperançoso. Não sistematizo. Sequer ensaio menção. Cuido e me recolho humilde ao canto porque, com mãe não se concorre, nem em bolinho confeitado. Amanhã é tudo dela. A música já diz: “ela é a dona de tudo.../ Ela é a palavra mais doce/ que um dia o poeta escreveu/Ela é o tesouro que o pobre/Das mãos do Senhor recebeu”. Verdade maior não há. Vá lá que seja, de consolo, ano que vem, de boa. Meu níver cai numa terça (porque o ano é bissexto) toda minha.

E pros lados das palavras doces, eu sei, eu sei, não é reticiências que se fala ou escreve. O certo é reticências. Mas este tipo de marcação da gramática me vem, tal o apostrófo, como uma paródia, como uma versão apócrifa desde o ginásio. Coisa de moleque pra frente, que inventa moda e dela não se larga. Acostumei com o distanciamento canônico tanto na escrita como na fala. Daí pus no título aí em cima e me viro nos trinta para abonar e caminhar com o termo até aqui sem culpas. Mesmo porque, até me permito a licença poética: sou simpático à forma porque ela inspira um intervalo ... para pensar. Para tomar ‘ciência’, apossar-se do tempo e conhecer o bom, o tenso e belo da vida.

Então me flagro nos aléns, nos adiantes e nos entremeios de agora, quando me avio para liberar os textos, após breve correção, do meu próximo livro. Atento, me pego entre as observações e oportunidades encontradas por minha filha, que me ajuda na leitura crítica. Curiosa, me vem com umas dúvidas, inesperadas, considerando o ritmo e o tino das minhas construções textuais. Certeira, prestou reparo nas formas diferentes do tratamento que dispenso para a ocorrência de reticências (ela se referiu à pontuação de forma correta) em muitas passagens. Quis saber o formal. Depois de reticências a frase começa com minúscula ou maiúscula? A gente dá espaço, depois de reticências? E quando encerra um parágrafo? Eita que foi um aperreio. Corri aos trechos de palmo em cima e ajudei na análise. No frigir dos ovos, prevaleceu o bom senso que inclusive tem vez nos livros e sites de gramática que consultei. Depende. Tudo depende, Vai da gente e do contexto. A regra admite uma versatilidade na forma e abona a intenção. Tudo então ficou pelo dito e certo.

Como agora, com a convicção que me envolve, em saber da significância do meu além, do meu adiante que se realiza amanhã, o domingo em que completo sessentinha. Esperando, agora, de vera, das reticências da vida, mais sabedoria, inspiração, saúde, muita música, poesia, boas companhias, uns trocados, cerveja e picanha vez ou outra, pois que de ferro não sou. Tendo isto, as ondas visíveis e invisíveis, que sejam, podem vir e me provocar. Estou na área e se derrubar...

sábado, 6 de maio de 2023

crônica da semana - sereno da madrugada

 Sereno da madrugada

Reinava, por aqueles instantes, a memória da noite. Pelo comum, a rua está no maior ermo. Uma viva alma sequer. Eu e Deus na parada do ônibus. E nesta última aventura na madruga, eu, Deus e a neblina. O cenário era de filme de terror. Um breu noturno ainda, molhado ou, no caso, orvalhado. Silencioso e entregue a mistérios. Em mim a esperança nervosa de tudo acontecer na paz e nos conformes. Uma tensão indissimulada se revela em cada movimento que faço. Adiante dou aquela corridinha para o ponto. É meu ônibus que desce com beira a ladeira e se aproxima.

Por esta época do ano, o dia demora clarear. Um lampejinho só aparece depois das seis. Além do meio do ano, a alvorada se realiza mais ligeiro. Agora, por causas diversas, o sol se atrasa um pouco. Ainda na apreensão que antecede o surgimento do primeiro rasgo de luz e do primeiro ônibus do dia, procurei segurança na iluminação dos postes de rua. Mas quando! O foco era barrado, contido em grande parte por uma camada espessa de sereno. Adensando o cenário, as árvores dispostas ao longo da avenida concentravam a solidão e a frieza do momento. Éraste! Dei a corridinha, fiz o sinal e assim que o ônibus parou, pulei dentro, aliviado. No meio do caminho clareou, mas o sereno continuou certo e vasto sobre Belém.

Quando cheguei ao meu destino e me posicionei na porta para descer, o passageiro à minha frente estacionou no degrau, olhou pro céu, virou pra mim e perguntou se aquilo era sereno mesmo ou era chuva se arrumando pra arriar. De prima cravei: sereno. Não ia perder a oportunidade de resgatar do tempo, o antigo sereno da madrugada que já estrelou canções, pautou prosas de trancoso, foi enredo de ralhos e aconselhamentos sobre o potencial que tem de nos constipar e nos legar amofinamentos e febres, além de nos deixar de lembrança um pinguinho de água geladinho na ponta do nariz quando a gente, ó, nem maldando está da presença de água friinha naquela fumaça branca. Mas tem água mesmo.

Eu procurei as minhas mais objetivas palavras, corri atrás dos meus saberes, fucei em pesquisas e conceitos meteorológicos na intenção de explicar direitinho o que é, e por que, aqui, ali, aparece essa neblina (que por causa do passado e de tantos sentimentos mais, faço questão de chamar de sereno). Acontece que não é fácil. Tem a ver com atmosfera, pressão, temperatura, umidade do ar, troca de calor. É coisa tanta de embananar a minha caixola, e de me deixar sem rumo e sem prumo na intenção de descrever este fenômeno. É o caso de ficar curtindo os efeitos, o friozinho na ponta do nariz e a tez envelopada de nuvem, rés o chão, bem pertinho da gente, nos tocando a pele ao amanhecer; no lugar de nos labirintarmos em deduções levianas sobre os vieses científicos. Ou não. Ou aprumar no rumo, estudar mais, pesquisar mais, consultar os especialistas das geociências e desvendar as propriedades da baixa atmosfera, na caté. Aí vai da gente.

Rapidola respondi para o passageiro do ônibus que não era chuva, era sereno. E não usei outro termo que fosse neblina ou névoa, ou ponto de orvalho que seja, ou ainda nevinha amazônica de beira de rio, ou nevoeiro que vem da mata, ou fumacinha gris. Dou o maior valor é no sereno mesmo, porque de termo e jeito, pode até nos constipar, segundo os alertas de mamãe, mas também inspira paz de espírito, distensão dos temores do dia. Então, quando o homem da minha frente desceu do ônibus, desci atrás e segui meu caminho. Com a alma serenando, com o ânimo serenado. Procurando manter a serenidade em atos e pensamentos. O sol esquentou, dissipou um ou outro sinal de neblina remanescente na baixa atmosfera, dei uma corridinha, e pulei pra dentro do mundo real. Aquecido e iluminado.