sábado, 29 de setembro de 2018

crônica da semana - Flores


Pra não dizer que não falei de flores
Procurei flores/No teu olhar/Flores/Mas tua íris/Virou adaga afiada/De golpes certeiros/A me separar órgãos/Almas/Lábios/A me apartar sonhos/Flores, procurei/Mas teu olhar/De fogo/Sem piedade/Dizimou minha paixão/Chama fulminante/Sem poesia/Fez cinzas/Do meu coração.
Há muitos anos, queria ser poeta. Um poeta às escuras. A ser tateado. Vivia em conflito. Achava minha poesia de uma brotação sofrida. Sério! Cheia de nãopalavras, de nãoencontros, de sinsnãos. Aí veio o tempo do desencanto e me quedei à prosa. Nunca mais tentei uma quadrinha e nem dei trela paras as criações de antes. Até que, olha só, chegamos nessa doideira que é 2018.
Uma oportunidade de reatar com minha poesia, ainda sem a pretensão de criar cantos novos, porque hoje me sinto oco de líricas, rimas, ou sintaxes do coração (o mundo é cru e cotidiano demais para as livres abstrações dos meus versos). Uma chance, porém, de reanimar impressões antigas. Revelar o real valor das flores.
Quando fiz esse poema lá de cima, logo de prima, foi tido e havido como romântico, tecido sob o emaranhado indomável do amor negado. A quem mostrava, logo me voltava com o olhar marejado, insinuando o peito tangido pelo fogo imenso da paixão não correspondida. Quem lia, estabelecia a empatia, formulava conivências, solidariedade, referências íntimas de sofrimentos e perdas.
Na época deste poema, era dirigente sindical, lutava por uma causa pra lá de difícil de ser conquistada. Formava numa rodada de negociação e, me empenhava em ostentar flores ante o time que se alinhavam do outro lado da mesa (nem sempre fui a tão decantada brutalidade diante dos meus contendores. Fui useiro e vezeiro do meu charme, do meu conhecimento, e das minhas habilidades, de forma a negociar sempre bons resultados para a minha categoria. Quando emperrava é que a barca virava. Era só triscar que eu acendia. Virava um zezeu por uma causa justa, por necessidade e fé na missão). Na ocasião, eu estava que era um amor. E tão confiante, e tão seguro que, pelo andar da carruagem, já dava o atendimento à nossa reivindicação como garantido. Até que negações certeiras vindas de várias direções me separaram órgãos, almas, lábios. Como diz a galera, hoje em dia: fiquei arrasado. As flores não venceram. E escrevi o poema que fazia menção de ser romântico.
A única pessoa a quem revelei o verdadeiro sentido dos versos livres, foi o Doutor Geraldo, nosso advogado e companheiro dedicadíssimo de bancada.
Ao me perceber desmilinguido, naquele poema, me ralhou e mandou que eu tomasse jeito, criasse termo e tornasse à luta.
No fim, tudo deu certo. Doutor Geraldo, animado com as flores da vitória, pediu que eu reproduzisse o poema em uma moldura. Levaria a lembrança para lugar de destaque no seu escritório. Não deu tempo. Nos deixou e levou com ele meu carinho, minha admiração. Minha gratidão.
Precisava falar de flores. Hoje o Brasil necessita afinar o coração. Sinto Doutor João José Geraldo no calor desta hora, me triscando a tornar à luta pelo bem. Vou acender de novo. Depois, emolduro um poema.

sábado, 22 de setembro de 2018

crônica da semana - pira sisconde


Pira s’sconde no céu
A crônica é quase uma fotografia. Só não é de fato o registro do real, porque se dá no campo mágico da literatura. Aí, se permite um floreado, uma peripécia de estilo, ou como dizem os teóricos, se deixa levar pela dita transcendência.
Contando por este lado do retrato, esta semana eu me vi doidinho de marré. Tenho um blog. Semanalmente posto crônicas antigas, correspondentes ao período do ano que estamos vivendo. O repeteco tem essa intenção mesmo de comparar fatos, cenários, pensamentos oportunos.
Na semana passada, publiquei um texto em que descrevo a trajetória da sombra do poste, desde o início do ano até o mês de setembro de 2014. Quem pega ônibus no mesmo ponto todo dia sabe o quanto é importante a gente saber o lugar certinho para se esconder do sol. Mais com pouco, emboloado nesse cenário astral, menciono no texto, o encanto da alta madrugada com os planetas Vênus e Júpiter reinando ali pras matas do agronômico, minutos antes do sol nascer. Epa! Per’unstante. Aí é que o caldo entorna e achinela emborca!
Não é que agora, este ano, eu que sou dado a essas paradas, tô de olho no céu e, surpreso, presencio este mesmo encontro, só que no início da noite! Até 9 horas da noite ainda dá pra ver os dois planetas brilhando que só eles, descambando sobre a Ilha das Onças.
Isso mexeu comigo. É que algumas certezas no universo são irretocáveis. Imutáveis. O céu que os antigos viam há cinco mil anos era o mesmo de hoje. O movimento dos astros, aquela mesma caminhada: nasce num canto, morre no outro. A Coincidência de o mesmo astro, no mesmo período despontar no horizonte naquela mesma horinha, gerou nosso calendário moderno, ajudou a criar e sistematizar a agricultura, a prever chuvas ou tempo seco.
Uns anos atrás, li um livro sobre Vênus. Somente sobre ele. Cercava a história do planeta pelo lado da astronomia, do misticismo, da astrologia, da mitologia. Um livro vasto, bom pacas. E que me ensinou que, ao contrário de todos os astros, Vênus jamais pode ser visto por nós, no meio do céu. Pode reparar. Considerando a folhinha do ano, e claro, a alternância dia e noite (porque o sol conta, e ele é o maior exemplo quando plena-meio-dia arde bem em cima do nosso cocuruto), todos os corpos celestes, uma horinha ou outra, cruzam o meio do céu. Vênus não. Aprendi como consegue essa mágica, mas não vou contar pra vocês não. Posso me enrolar. É difícil pacas a explicação. O que acontece então é que só podemos ver aquele que aparenta ser o maior e mais brilhante ponto do céu, ao amanhecer ou ao anoitecer.
O motivo d’eu ter ficado bestinha da silva é que nessa história de universo imutável, pensava que em setembro, encontraria Vênus naquele mesmo horário de 2014. De madrugada. Ledo engano. Este ano, ao cair da noite, volto meu olhar para a estrela Dalva. Com o passar das horas ela vai desaparecendo, cada dia mais baixa no horizonte, até sair da noite de vez para tornar de manhãzinha e lá pros lados do agronômico. Mas aí não vai ser mais setembro. Acho que entendi e me aprazo em participar dessa brincadeira de pira s’sconde no céu.


sábado, 15 de setembro de 2018

crônica da semana - pingo do i


Pingo do i
Mamãe é que falava assim quando eu me mostrava traquina, atentado que só, mas um pingo de gente. Menor. Bem menor que as outras crianças que dividiam uma caixa de sabão comigo, fazendo de conta que aquela armação em madeira era o jipe do tio Rui ganhando os estirões que cortavam os seringais do Acre.
Não falava por mal, mamãe. Ao contrário. Havia carinho, afeto, quando deixava escapar. Tinha, codificados naquelas palavras, minha mãe, um compromisso, um zelo. Reconhecia o zinho que eu era, percebia meu futuro e firmava proteção, elaborava orientações e defesas.
Mais tarde, quando fui estudar na Aparecida, já nesta Belém que nos acolheu, ante a cisma da molecada ao me perguntarem por que eu era tão pequenininho, dava a resposta ensaiada, por anos, com a mamãe: “porque Deus quis”. E fim de papo.
Antes que se multiplicassem esses espelhos grandes nas colunas dos shoppings e dos magazines; ou antes que as fachadas espelhadas, dessas que a gente se vê e se compara com outras pessoas em atitudes espairecidas virassem arte da arquitetura urbana, eu nem percebia que era tão baixola, tão pingo do i. Agora, já na batida da campa é que de repente, comparo as escalas. Estes traçados modernos me dão noção de estatura que eu nem maldava. Porque a gente, os nossos olhos são para o mundo, e não para a gente mesmo. Não me percebia e isso nem me interessava. Cuidei sempre para me expressar em ser pra fora. Para o mundo. Um ser útil, sem moldura de madeira, feito a menção de jipe do tio Rui, tamanho ela que fosse.
Encaro os espelhos da cidade na boa e agora, ora veja, vou me comparando. Como proteção, sou obrigado a olhar pra dentro de mim, o que raramente faço, e em outras épocas nem atinava, pois via nisso sinal de presunção.
Para fora de mim, pelo comum, é que as visões me atraem. Descubro gentes. Traços únicos nas pessoas. Formulo impressões. Guardo e gravo desvios, cacoetes, simulações. Cinismos. Reconheço, como reconhecia em mamãe, carinho e afetos. Para o bem ou para o mal, meus olhos preferem medir o mundo sem pingos nos is como referência. Prefiro as notas absolutas de personalidade e caráter assim, mirando de palmo em cima.
Mas quando me vejo estimulado a olhar pra dentro de mim, não titubeio em reconhecer a minha grandeza. Vôo nas altas altitudes.
Dia desses, fui abordado por uma pessoa com quem divido meus dias no trabalho. Não costumo confundir as coisas. Na fábrica sou peão. Na lagoa, de cócoras com os sapos. Aí, por um motivo qualquer, foi mencionada a minha condição de escritor. Sem disfarçar, meu interlocutor vilipendiou, fez pouco caso, caçoou do fato d’eu, um peão de fábrica, escrever no jornal, crônicas que, segundo ele, ninguém que conheça lê. Ameaçou fazer a bacanagem de comprar o jornal no sábado desde que eu dedicasse umas linhas a ele. Como meus olhos miram o externo, o lado de fora, havia uma possibilidade. Mas no meio do caminho, resolvi falar do baixolinha aqui. Optei voltar meus olhos para a minha história, para o interior da minha alma e medir-lhes a envergadura. Não vou falar dele não. Decidi ser presunçoso.

sábado, 8 de setembro de 2018

crônica da semana- Museu Nacional


Passeio completo
O Rio de Janeiro continua lindo. Quem viaja pra lá, já vai todo na combina de conhecer os encantos da cidade maravilhosa. O visitante fica tão encegueirado pelas fartas paisagens e fantasias que não percebe detalhes ao rés do chão. Passa batido na rica história das almas e do solo onde pisa. Uma temporada no Rio é, pelo comum, montada sobre um oba-oba clássico e plenamente justificado.
Aconteceu comigo da primeira vez que fui pra lá.
Até o momento em que fui estimulado a variar. Um casal muito simpático se aproximou do nosso grupo, na Cinelândia, atraído pela camisa do Paysandu que eu estava usando. Gentis, puxaram conversa e falaram de uma temporada que passaram em Belém. Depois das trocas de gentilezas e empatias (o Paysandu), nos convidaram para dois passeios fora do script. Um era para o Centro de Tradições Nordestinas; o outro foi para conhecer o Museu Nacional. Marcamos para a noite o forró em São Cristóvão e o Museu para o dia seguinte. Ninguém escapa impune a uma buchada de bode. Daí que afrontados, no outro dia, ficamos devendo o Museu.
Aí, passou, passou, e numa outra oportunidade, fuçamos promoções de passagens, o tempo era bom pra pobre viajar, podíamos levar mala grande. Fomos bater no Rio de novo. Demos a forra. Fizemos tudo diferente. A única agenda que permaneceu a mesma foi a da Lapa. O resto foi tudo novidade. Conhecemos a outra face do Rio de Janeiro. Um dia muito especial se deu na visita aos vários museus da cidade. Foi quando conhecemos o Museu Nacional.
Já éramos apresentados assim, de longe, eu e o Museu. Durante o 45º Congresso Brasileiro de Geologia realizado em Belém, no ano de 2010, era presença constante no estande da instituição. Na oportunidade, ganhei um souvenir representando o maior meteorito encontrado no Brasil, o Bendegó, que foi resgatado por D. Pedro II e fazia parte do acervo de Ciências Naturais.
Minha linha de interesse se deu por aí. Dessa vez, quando fui ao Rio, não furei o script, procurei o Museu por causa do meteorito.
Mas o Museu era muito mais. Um ambiente fascinante, de incontáveis saberes. Durante a minha permanência lá, percebi que o Museu recebia muitos estudantes das escolas públicas para visitas monitoradas.
Encontrei com uma turma na sala dos dinossauros. Era indisfarçável o encanto da meninada ao se deparar com os fósseis gigantes. O instrutor, numa sacada genial, reservou uma surpresa. Após apresentar as espécies montadas à nossa frente, pediu que fechássemos os olhos e erguêssemos a cabeça. Quando mandou abrir, nos vimos sendo observados por um enorme Pterodáctilo (o esqueleto do réptil voador estava montado no teto). Um dos garotos exclamou: “puxa vida! Por que não vi isso antiins” (e tento, na escrita, reproduzir a fonética nervosa e ao mesmo tempo deslumbrada do garoto. Porque é assim que o prazer do conhecimento se realiza na gente. Chacoalhando a alma, subvertendo os sons ordinários, transcendendo a monotonia vil do obscurantismo. E faço uso dela, desta fonética nervosa, também, para expressar tristeza e indignação: por que não cuidamos do Museu Nacional antiins!