sábado, 28 de setembro de 2019

crônica da semana - cerrem fileiras com os estudantes


Dorme e te conforma
Deu-se então que esses dias, eu observei com mais aprumo o comportamento da baía do Guajará. Um motivo guiou esta minha atenção. Agora em setembro, por causa do Equinócio, é momento de grandes marés. Maior volume de água, maior velocidade, correnteza braba. Eis, que na rotina das manhãs, não perdia aquela olhadela. As primeiras observações demonstraram realmente um movimento afoito das águas. Acontece que, após uns dias na bicora, percebi, naquele mesmo horário, exatamente o contrário, a água parada, sem aquela ligeireza, sem os ânimos do banzeiro. Logo reconheci o fenômeno. Estava diante da maré estofa.
A educação, em vários níveis e, em especial a educação universitária, mudou minha vida. Porque tive acesso à escola, é que entendi o movimento da maré nesses dias de Equinócio. Penso, muito convictamente que, entendendo os humores da baía do Guajará, reconhecendo o instante da maré estofa, nossa vida pode ser bem melhor planejada, nosso dia tem tudo para acontecer sem desvios. É a nossa rua, o rio. Precisamos de um waze para explorá-lo nos conformes e nos ‘de acordo’ com seus caprichos.
A Universidade me deu a oportunidade de interpretar determinados fenômenos. São conhecimentos que me permitem ver o amanhecer de forma peculiar, a chuva da tarde com todas as suas relações (ainda mais estas em pleno setembro), o friozinho que faz no início do ano, em nossa cáustica Belém. Saberes que estimulam o meu cocuroto a ver uma árvore, de fora a fora, em todos os seus contornos, e não tirar os olhos dela sem antes investigar a sua simetria.
Estas podem ser visões pávulas do valor que a educação tem. Aquela conotação particular, próxima do prazer. Mas posso levar a prosa para ou outro lado. A educação, além de nos oferecer a pavulagem do conhecimento, nos proporciona a sobrevivência. Nos garante varar os dias. Bota o cumê dentro de casa.
Eu fui um menino entanguido. Raquítico e parrudo. Não cresci como os outros. Tinha baixa taxa de nutrientes, proteínas, gorduras; escasseava a energia para o meu desenvolvimento. Eu era resultado de uma luta duríssima pela vida.
Sem eira nem beira, minha mãe chegou do Acre com quatros bocas para dar de comer. Não sabia fazer nada. A vida enfurnada nas matas do seringal lhe preparou pouco para a metrópole. Uma rede de generosidade e solidariedade nos ajudou. Família, amigos, vizinhos. Em tudo fomos amparados. Conseguimos, as crianças, entrar da escola, fomos alfabetizados, ganhamos um rumo. Mamãe vendia o almoço para comprar a janta buscando calar os reclamos do estômago. Às vezes não exitávamos e o jeito era dormir e se conformar, que a dor da fome passava. Era tudo, e o máximo, que ela podia nos dar. Além, não tínhamos nada.
Escrevo aqui neste espaço há treze anos, porque a escola mudou minha vida. Escola pública.
Quando recebi o primeiro salário, em Rondônia, aluguei uma casa para minha família que tinha descarga na privada. Deixaríamos, dali em diante, de encher o balde para jogar na sintina.
Passei a comer melhor, a vestir melhor, a ler melhor. Comprei livro pra caramba na livraria da Rose em Porto Velho.
Semana passada, na cerimônia de colação de grau na UFPA, ouvi inúmeros pedidos de socorro. A Universidade corre sérios riscos. O corte de verbas para a educação superior pública está, literal e simbolicamente, tirando o cumê da boca de muitos jovens. Fica aqui o meu convite para que cerremos fileiras com os estudantes. Resistamos.

sábado, 21 de setembro de 2019

crônica da semana - canudo na mão


Canudo na mão
“Meu desejo de pai é que, com o canudo na mão, meu filho procure sempre lutar pela harmonização dos saberes... Que descarte os desprezos vis, a soberba (admitindo que a Geologia possa se realizar com o mesmo zelo, pela genialidade de um Darwin ou pela intuição de um auxiliar de campo, como o Rogério). E que em tudo seja feliz nesta profissão fascinante.” 
Rogério era bateador de primeiríssima categoria. Habilidoso, cuidadoso. Manejava a batéia, um equipamento de concentração de minerais. O processo que se desenvolve na batéia é complexo. Admite as propriedades das partículas envolvidas. Tamanho, peso, angulosidade, densidade. Todas essas particularidades entre as diversas espécies de grãos, interagindo com o volume e o movimento que a água faz no interior da batéia. Encerra em si, o ato de batear, um feixe de fenômenos físicos não tão fáceis de apreender.
Rogério não sabia nada de conceitos ou teorias. Com um cigarrinho porronca no canto da boca, não abstraía tratados. Tratava de fazer os movimentos corretos, dar a inclinação certa, a quantidade suficiente de água, para, após refinar mais de 200 quilos de terra bruta no dia, fornecer em poucas gramas, a mais valiosa informação. Era um mestre. O tempo que fiquei em Rondônia, não desapreguei de Rogério. A equipe não era a mesma sem ele, por isso, de jeito algum eu o deixava sair da turma. Aprendi um pouquinho com ele. Até os dias de hoje, se me derem uma batéia, não faço feio.   E ainda esnobo, fazendo rotação ao contrário do fluxo, só na caté.
Rogério se mirava e se media. Pouco caso fazia do talento que tinha. Não imaginava a envergadura que exibia aos meus olhos. Frente a elogios, desconversava, desqualificava coquetes. Repetia que era só um peão de Humaitá, caboquinho das beiradas. Não fugia, porém, à compensação, à sublimação: “mas a minha irmã, não. A minha irmã tem profissão. É tilógrafa”. Escorregava nas palavras. Quando precisava assinar algum documento, pedia uma caneta, riscava bem riscado o verso do polegar e imprimia a digital. Rogério não sabia ler nem escrever.
O primeiro parágrafo desta crônica é o recorte de uma homenagem que fiz ao meu filho no dia em que ele passou no vestibular para Geologia. Quando escrevi, pensei em mim, nos tropeços que dei na minha caminhada profissional. Nas vezes que fui metidão, que desdenhei de trabalhos e de opiniões de pessoas mais humildes, de poucas posses intelectuais ou de acanhados pendores eruditos. Fui buscar lá atrás meus erros. Em momento oportuno, encontrei remissões, reparações. A aproximação com mestres do naipe de Rogério me regenerou a alma. Ao mesmo tempo, me fez cair na real e perceber a pouca diferença entre mim e a peãozada que me acompanhava.
Atualizando as medições de Rogério, posso dizer hoje que eu, ah, sou apenas um peão do chão de fábrica. Tenho male-male o segundo grau. Mas o meu filho, não. Meu filho é Geólogo.
Meu desejo de pai é que ele, com o canudo universitário na mão, busque sempre além. Procure valorizar o conhecimento. Refine sua percepção do mundo e reforce a humanidade que existe nos tratados e teorias. Espero que nem o mais alto salto que ele dê na carreira o lance à empáfia. E que não se esqueça dos construtores litisconsortes dessa vitória. Do Rogério, o mestre da batéia, da irmã dele, que batia máquina de escrever; de nós outros, a peãozada. Pois que, sem estas pessoas, nada seria possível.


sábado, 14 de setembro de 2019

crônica da semana. Lavadeiras.


Lavadeiras
Era descer pro igarapé, e encontrar com elas. Estavam lá todas as manhãs, sobre as tábuas de lavar roupas. Eram pranchões lisos. Sem farpas ou cantos salientes. Talhados no bruto, mas untados pelo tempo. Tinham uma película limosa de anos de uso. Um do lado do outro. E muitos, porque muitas eram as mulheres.
Desciam com as trouxas, bacias, baldes. Os meninos na barra do vestido. Enquanto batiam, esfregavam, ensaboavam as peças, a garotada ficava por ali, cangando grilo.
Mamãe também descia. Dava a precisão, ela ocupava um dos pranchões. Eu, enrabichado.
Pelo longe que minha memória alcança, não cantavam, embora exigisse este pendor, o romantismo das minhas lembranças. Falavam coisas da vida, umas intimidades sem vergonhas ou culpas desvalidas. Muitas, ao chegarem, a primeira leva que tratavam era a roupa do uso. Despiam-se, sentavam-se à beira do pranchão, mergulhavam o pé num canto de água rasa, arqueavam o corpo e desenvolviam a lavagem até que o corpo desse um aviso de cansaço ou que o piqueirão se dispusesse lavado e enxaguado. Quando a lida ia encerrando, praguejavam avulso, pelo estirão que tinham que andar de volta. Ainda mais que logo de cara, com a bacia de roupa bem torcidinha, que era pra diminuir o volume, atracada ao lado do corpo, se lançavam ao penoso esforço de subir a primeira ladeira de umas quantas.
Esta ladeira que levava ao igarapé, era a mesminha que minha irmã, comigo no colo, em desabalada carreira, tropeçou e me lançou lá longe. Saí rebolando e quando parei foi com o joelho em cima de uma lata de conserva aberta. Abriu um talho espetacular .  E tão comprido, largo e profundo foi o golpe que até hoje, pelo arrodeio que fez no joelho, e pelo tamanho da cicatriz, ainda causa espanto. Mais até, porque sarou sem ponto nenhum. Só na fé na borra de café.
Se eu fosse pintor, faria uma tela retratando as lavadeiras do seringal. Daria uma pincelada de singeleza; Comporia o quadro em tons... não, não... em semi-tons de fantasia, que era pra não desviar do realismo da beira do igarapé. Meu traço se dedicaria a deixar a cena que nem que nem. O retrato das lavadeiras teria movimento. Expressaria os corpos nus, elevando as peças de roupas, armazenando energia para o choque com a prancha lodosa. Adiante, uma outra lavadeira ventindo-se com o vestido ainda enxombrado. Além, aquelazinha mais afoita, indo embora, se adiantando nos primeiros passos ao pé da ladeira. O barranco teria aquela cor de terra fértil, de topografia contínua, revestido de rara e baixa vegetação com folhas arredondadas e grandes. Completando a cena, a meninada folgando entre as pranchas, em brincadeiras irresponsáveis com as bacias de alumínio, mergulhando no ponto mais fundo do igarapé, espreitando peixinhos arredios. Eu no meio, pescando lembranças. Ao fundo, o céu azul e o sol ocidental do Acre.
Ao fim dos trabalhos, subiam o caminho íngreme e permitiam-se recuperar o fôlego no terreiro do barracão. Mamãe servia água, um café, chá ou leite de alguma rês, que fosse. Dali partiam para as colocações. Algumas caminhavam mais de hora, para chegar. O local de moradia dos seringueiros, onde tinham um barraco e as possíveis posses, era conhecido como colocação. Espalhavam-se pelos ermos e sem-fins do seringal.
Nos meses de agosto a setembro, o igarapé secava de ficar só um fiozinho.
Nessa época, as lavadeiras lavavam as roupas com o que tinha.


sábado, 7 de setembro de 2019

crônica da semana - simplesinho conzê


Simplesinho Conzê
Eu sei traçar uma mediatriz usando somente o compasso. Sem medir com régua, sem nada. Sei também localizar a bissetriz de um ângulo sem lançar mão do transferidor, da mesma forma, só na caté, só articulando as perninhas do compasso.
Aprendi tudo num livro, antes de entrar na escola. Edição das antigas. Daquelas de lombada costurada. Livrão massudo assim. Meu tio estudou nele pra fazer os exames de Admissão ao Ginásio. Tinha que saber Desenho para entrar no Científico. Depois do caso passado, herdei o livro massudo.
Sei que para muitas pessoas, saber traçar elementos da Geometria é um conhecimento absolutamente inútil. Gente que se diz gabaritada, não faz e nem fez questão, em tempo algum, de saber o que caixas e balatas vem a ser mediatriz ou a tal de bissetriz.
A curiosidade de abrir aquele livro e aprender uma ou outra técnica do Desenho, mais adiante, me ajudou quando entrei na Escola Técnica. Lá, o compasso foi meu companheiro dileto. Em outros tempos ainda, na pira do desemprego, me vali do livro de Desenho em aulas particulares concorridas, lá pras bandas do Telégrafo (quando ainda se estudava Desenho na rede pública). E por ali, nos arredores da Rodovia Snapp, numa tarde de sábado, por um descuido, me separei daquele livro. Eu o perdi em lugar incerto. No caminho pela avenida, nos degraus do ônibus, na casa de uma aluna... Nunca mais.
Mediatriz, num repente, entendamos como o centro de um segmento de reta. A linha que divide a reta em duas partes iguais. Por exemplo, o traçado no meio de um campo de futebol é a mediatriz do gramado. Agora, se o jogador for bater o escanteio e colocar a bola exatamente no centro daquela meia luazinha no canto do gramado, a bola ocupará um ponto no eixo da bissetriz do ângulo formado por aquela curvinha. A bissetriz é a linha que divide um ângulo em duas partes iguais. No caso do corner do futebol, em dois ângulos de 45 graus.
A curiosidade é aparentada do horror. Às vezes se encontram e causam turbulência no ponto de vista do observador. Achar um livro antigo, massudo e de lombada costurada, cheio de postulados euclidianos pode resultar numa síncope e nos jogar no chão tremendo e babando verde. Por outra, pode nos ajudar ali adiante, a sobreviver.
O mesmo ocorre quando nos deparamos com um dicionário, abrimos uma página no qual pega e encontramos a palavra “paralisação”.
Nesta hora divina, caímos na real e reconhecemos o dito e certo que numa hora de precisar escrever a palavra, tascaríamos no texto a bendita com “z”. Paralização. A vocalização, a percepção do som, a queda à sedução fonética, nos empurrariam para o erro.
Assim como, de repente entender o que são os elementos geométricos mediatriz e bissetriz exige uma ação libertadora que é abrir um livro, Escrever paralisação com “s’, também exige a mesma ação.
Só há uma maneira de escrever as palavras sem o medo de mutilá-las na forma. Tornando-se íntimos delas através da leitura de várias, várias obras. Literárias, jornalísticas, técnicas, acadêmicas, religiosas, de saliência ou de trovas inocentes.
É simplesinho assim com “s”, de mesinha mesmo. Um livro nos acolhe, nos previne e nos eleva. Para uns, inspira curiosidade redentora. Para outros, o horror. Quem tem pavor dos livros, quem ataca a educação; governo que calcina a cultura nas ruas, sofre de uma paralisação moral irrecuperável. Do tipo simplesinha conzê.