segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Crônica remix - juraci

Culpa do Juraci
Mas, ô coisa pra dar certo!
Depois de uma semana e pouco com uma virose que me pegou pelo gasgo, cortou e arou o meu ânimo, e me pôs às quedas, me vem o alívio. Tava mofino, mesmo. Pródigo em chiliquitos enfadonhos, hios e chios insolentes, devastadoras angústias, espirros e constipações.
Era só a noite chegar que um gogo violento me atacava, uma tosse irritante me vencia. Era um tuco-tuco de estremecer as paredes. Uma desinquietação, uma desesperança. E haja exercício fonoaudiológico: nunca na história deste país, a palavra otorrinolaringologia foi pronunciada, por mim, com tanta desenvoltura, quanto nesses dias passados, de tanto que a garganta ardia.
Ainda bem que passou. Umas furadas na poupança e umas ‘piulas’ deste tamanho me ergueram. Ah, e ainda uma trova que recebi do meu amigo poeta Antônio Juraci Siqueira. E que diz assim: “Se a mão de Deus te conduz/pouco importa aonde te leva/quem anda junto da luz/não há de temer a treva”.
É por isso que eu digo: ô, coisa pra dar certo. Palavras amigas que chegam, assim, como coincidência, feito previdência, no instantinho certo que a gente tá precisando. Uma trova que fala de luz, de certezas e confiança na estrada da vida. Não foi intencional (Juraci nem sabia que eu tava dodói). Por isso tem um valor maior. Expressa uma emanação de energia positiva facultada, um bem arbitrário. Elevou-me a moral, o poema. Foi, sem errada, um caribé de versos bem chegados que me deram sustância e me abriram a janela (e os brônquios) para o dia.
Tô na convalescença. Ainda me recuperando com cuidado e zelo. Fugindo de qualquer respingo, da mais branda friagem, mas agora com o aditivo das palavras a me estimular. Vou tornar à luz. Culpa de fármacos caríssimos e do Juraci (que me veio sem ônus).
Aí, volto com o Juraci no tempo e o encontro nos varais de poesia, no Centur; nos corredores da pensão da Cotinha; nos circuitos de fotografia, na praça Ferro de Engomar e na minha silenciosa tietagem. Era fã do cara. Acompanhava as andanças dele, mas ficava sempre de longe. Naqueles tempos, já o considerava um mito, de parelha em mistérios e encantos, com o boto.
Mas daí, houve a Feira do Livro de 1999. Foi o ano do lançamento do meu primeiro livro “O Operário em Verso e Prosa”, em parceria com o poeta José Miguel Alves. Éramos calouros na função. Acanhados. No estande dos escritores paraenses, as estrelas mais reluzentes da nossa literatura. Dentre elas, o Juraci. Nessa ocasião, descobrimos (eu e o Miguel), a face mais detalhadamente humana do boto. A acolhida que Juraci nos deu, àquele meio ilustrado, foi de todas as maneiras, generosa. Nos tratou como gente grande. Nos intervalos das programações, sempre se achegava, batia uma bolinha com a gente. Não dava tempo para nos sentirmos deslocados, eclipsados por tantos brilhos que dali irradiavam. Ele já era o Juraci, uma das pedras angulares da Malta de Poetas folhas e Ervas, e nós não éramos ninguém. Para ele, porém, éramos colegas de ofício. Fomos abonados e ganhamos um naipe literário na Feira daquele ano. Culpa do Juraci.
Tempos depois, aproveitei um Arrastão do Pavulagem, catei o Jura da multidão e entreguei a ele uma pacotão datilografado com os originais do meu segundo livro “O Dia Mais feliz...”. O poeta fez a apresentação do livro em um texto grandioso, de uma nobreza, de uma elegância... Enriqueceu o meu livro, falou coisas tão legais que eu fiquei até meio metidão, enquanto durou a edição.

Agora, no início da semana, ele me trouxe a luz. Tô na convalescença ainda, mas com a ajuda de tão cintilantes versos, com certeza varo. Culpa do Juraci.

sábado, 26 de outubro de 2013

crônica da semana - amar e (subversão)

Amar e outros medos (a subversão)

Em 1977, eu trabalhava de caixeiro numa taberna, o Geisel não generalizava quando se falava em Abertura Política, minha professora Cleide Nascimento se entronizava no meu reino acudindo-me na arte da “Comunicação Oral e Escrita”, O Batista ganhava posição de volante na seleção canarinho, eu estava na sétima série e meu melhor amigo era o Eduardo Figueira de Farias Neto. 
Tinha 14 anos e me dedicava no trampo. Aviava os fregueses na caté, cumpria horário...Mas no sábado, dava nó. O glorioso Internacional da Mauriti me mundiava. Dizia pro meu patrão, pra mamãe, que tinha aula de Educação Física, mergulhava por detrás do muro da vizinha pra ninguém me ver, e ficava na bicora até completar nossa onzena. Com o time formado, boiava na rua, corria para pegar o Nova Marambaia- Telégrafo e ganhava o rumo do campo da granja Novo Livramento, na  Augusto Montenegro. 
Tinha o Eduardo como um ídolo. Era um garoto da minha idade, bem mais alto, esguio, um moreno jeitoso. Me contava das aventuras dele com as garotas (aventuras  bem mais avançadas que as minhas). Dizia que depois ...depois de tórridos momentos, atracado com as pequenas, num daqueles escurinhos do muro do Bosque, bom mesmo era tomar uma Coca-cola bem gelada... Mas não era garoto de viver só de amor. Foi não foi, tirava a cisma com um menino da sétima A, na saída da escola. Eu ali, de parceiro, segurava a camisa dele, os cadernos. Eduardo dava umas bicudas, pegava uns transpescos e quando a coisa esquentava, a turma do deixa-disso atuava. Passava, passava...e com uns dias, os dois se trançavam no pau de novo. Era uma eterna disputa, mas o Eduardo era o meu líder. O meu ídolo. Eu era assessor e torcedor dele. 
A Ditadura agonizava, mas nem tanto. As bombas ainda estouravam esperanças em bancas de revistas e tínhamos um professor de Moral e Cívica que era fã dos militares. Pelo que se torna e pelo que se deixa, ele era um entusiasmado com o conservadorismo. Com um calor de lascar, na cidade, ia dar aula todo empacotado, até de paletó ele ia. Se empinava todo porque era convidado a fazer parte de júris populares em julgamentos concorridos. Mas o que mais o animava era elencar os ministros do governo militar. Até hoje lembro. Tínhamos que decorar: Agricultura, Alysson Paulinelli; Educação, Ney Braga; Interior, Rangel Reis; Minas e Energia, ShigeakiUeki...No Exército, o insurgente Sylvio Frota. E assim por em adiante. E ai de mim que não soubesse. O homi era linha duríssima. Uma falhazinha assim de memória e ele reprovava mesmo. Tinha medo dele. 
Não tive medo de amar em 1977...Ela aparecia toda manhã na taberna ornada com o charme de uma remelinha pregada no canto do olho. Daí que eu me assanhei. Imaginei ‘tórridos momentos’. Propus. Havia uma casa desocupada na Rua Nova com a Estrela. Dispunha-se sobre um terreno úmido e era tomada lateralmente por touceiras enormes de capim. Nosso ninho. Setembro quente. O mesmo horário da aula. Dei nó. Às favas os ministros do governo Geisel e o meu professor sem pescoço. Às favas os escrúpulos com a concordância verbal. Eu queria amar ela. Eu queria ter ela. Às favas as dores na consciência e as penitências. Queria ser feliz. Encontrar pela primeira vez os jardins floridos em meio ao capinzal da Rua Nova; queria ouvir ela sussurrando no meu ouvido “pão e meio, pão e meio, e dez de manteiga”. Absurdamente excitante. Deliciosamente provocante. Ai, ai, a cara que o Eduardo fez quando contei os detalhes...   
Ah, sim, cumpri o rito: depois do caso passado, tomei uma Coca-cola bem gelada na padaria da Pedro Miranda com a Mauriti. 

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Crônica remix - som e fúria

To be or not to be
A gente até pode fazer caretinhas, soltar uns venenos críticos despeitados. Mas quando se trata de minisséries, há de se ter cuidado com os juízos. Nessas horas, a galera do plimplim capricha.
Neste formato, a Globo acumula um feixe admirável de competentes produções que, pelo hio ou pelo chio (para lembrar a memorável montagem de “Grande Sertão:Veredas”) ilustraram a história da imponente dramaturgia da emissora.
A minha preferida é “Agosto”, baseada no Romance de Rubem Fonseca e exibida em 1993. Posso explicar esta minha queda pela série porque acho que ela foi montada de forma a realçar a qualidade dos atores. Zé Mayer, a partir dali fez o nome comigo (e olha que naquele tempo ele nem era o tiozinho ‘lindo, tesão, bonito e gostosão’ preferido de dez entre dez moçoilas assanhadas).
E foi na direção do palco, mas disparando luz, luxúria, loucura, som e fúria para todos os lados, que a Globo apostou as fichas para preservar a gloriosa tradição das minisséries.
Baseada na produção canadense " Slings and Arrows” a minissérie “Som e Fúria” mira nas peculiaridades do mundo artístico. Assim, a série renova uma experiência da emissora que, na novela Espelho Mágico, de Lauro César Muniz, tentava mostrar o dia-a-dia de atores famosos.
Condensada numa metanarrativa acelerada, “Som e Furia” explora a porção humana dos atores, o ‘dark side’ da fama. Aquela faceta próxima a todos nós mortais que compete, que corrompe, que tem dívidas, que tem ambições e por vezes, atropela a ética para conseguir os objetivos (o ‘barzinho logo mais à noite’ é o cenário para vapores, baratos e papos-cabeça mas também, para articulações, ciumeiras e rasteiras desleais).
Por outro lado, as mumunhas que rolam em alto relevo no meio cultural são também contempladas. A história envolve um respeitável aparato teatral (com uma estrutura administrativa; um prédio grandiloqüente; um quadro estável e competente de atores e um severíssimo critério de seleção de pauta almejando sempre os clássicos) sob total ingerência do Estado. Suscetível, portanto aos vícios da corrupção, do clientelismo e das armadilhas do marketing de vanguarda (no caso, do estranhíssimo Santoro). Este perfil meticulosamente organizado, a ligação com o Estado e uma (não explícita, mas dedutível) preferência de público, dão uma descabida tonalidade elitista ao fazer teatral (e pelo caráter promíscuo na relação com o poder e, ainda, pelo status permitido ao alto clero da produção cultural, enseja uma narrativa que desmascara a utilização pragmática da arte como identificou, destemidamente, Klaus Mann em “Mefisto”).
Além da sobriedade temática, a produção se destaca pela forma. Para modelar o recado, a Globo pescou do cinema o premiadíssimo Fernando Meirelles. O diretor surpreende vestindo a narrativa de cores neutras e trazendo para a telinha uma imagem áspera, de textura porosa, dispersa e ponteada de intrigantes vazios (é como se em cada cena houvesse uma mensagem criptografada, um obscuro segredo. Uma simbologia alertando que há algo de podre no reino da ‘Vila da Barca’).
“Som e Fúria” traz a sofisticação do drama Shakespeareano num discurso metalingüístico em que a insanidade recorre a um fantasma para acudir-se dos conflitos do ser e do não ser. Volve à luz os valores que salvaguardam a nobre missão de interpretar, cristaliza e aproxima da gente a alma múltipla, santa e pecadora do ator.
Mas o melhor da série é que ela resgatou das profundezas da coxia, o esforçado Felipe Camargo e, para a minha indisfarçável felicidade, a Zelda Scott, minha eterna musa, no papel de Andréa Beltrão. Amei.


segunda-feira, 21 de outubro de 2013

crônica remix- carrusser

Meu Reino por Uma Rudada no Carusser
Há um tempão venho garantindo uma agenda estável para a quadra Nazarena. Uma programação retilínea que começava na sexta-feira com o Auto do Círio (e que numa ocasião coincidiu com a apresentação emocionada do insuperável Milton Nascimento) e culminava com uma volta no largo, no domingo de tardezinha (e desta prenda, em particular, reflito aflito, não dá para desobrigar-se. Todo ano tenho porque tenho de tirar um tempo pra’gente apreciar a iluminação da Basílica, se lambuzar de algodão doce, morrer de medo com a fuga da Monga e sair zonzo de uma ‘rudada no carusser’).
Na pauta, também, a aquisição dos brinquedos da época e nem só dos brinquedos tradicionais, mas também dos circunstantes. O roque-roque (agora também chamado de corró-corró, lá no calor do Arrastão do Pavulagem), aquele pássaro de madeira que, tec-tec, bate as asas e o indefectível barco de miriti são sempre objetos dos meus desejos.
Na outra ponta, os de plástico: a bolona colorida, um carrinho que faz um ronc ronc nas rodas quando friccionado na calçada, um barquinho descolorido e de superfícies fechadas, querendo ser uma lancha, sem graça que só ele (e quanto mais sem graça, melhor!) e uma boneca com o plastiquinho dos olhos azuis descolando, estes têm lugar certo na minha bagagem, contanto que sejam adquiridos nas exposições espalhadas pelo chão do arraial (atualmente conhecidas como comércio informal, mas que existem sem apelido, desde muito, muito tempo).
Há um bom tempo venho mantendo esta programação. Emoções e prazeres atualizados em cada dia:
A estética ribeirinha no Auto do Círio, o encontro sazonal no bar do Gilson, na sexta; os sentimentos indecifráveis na chegada da procissão fluvial, a alegria em alta temperatura do Arrastão do Pavulagem; o peixe frito com açaí, no Ver-O-Peso...Os imprescindíveis valores profanos na Festa da Chiquita, tudo no sábado; e no domingo, a remissão, a fé, a Corda ( a inquietante dúvida do corta, não corta), o rio de gente, na grande procissão; o almoço na casa do poeta José Miguel Alves e a alegria desbragada das crianças por entre os ecos pregoeiros do arraial.
Há tempos cumpro esta agenda, mas este ano, necas! Nem pro Círio deu para eu ir. Fiquei pegado no trabalho durante o final de semana do Círio, depois veio a antipática combinação falta de numerário/falta de tempo, e olha lá, já estamos indo pro final da quadra e nada.
Mas vou me virar para, antes da última noite do arraial (porque na noite do ‘fogos’, não tem combate!) dar um jeito para uma voltinha, com a mulher e os meninos, no largo...uma rudada no carusser...um algodão doce...Tenho fé.

sábado, 19 de outubro de 2013

crônica da semana - johnny

Johnny Vai à Guerra

Hoje amanheci sem nariz. O mundo se realiza a distâncias sem me dar conta de seus odores. Eu só tenho língua e sonhos. Língua para perceber poucos sabores. Sabores poucos. Sonhos muitos. 
(Nos meus devaneios, lembro os tempos em que ficava gripado e não sentia gosto nas coisas que comia, me enfastiava e mamãe ralhava pra eu comer mais um tiquinho. Vem à lembrança, também, aquele início dos anos 80, quando minha amiga Leila Paixão fez porque fez para que eu assistisse “Johnny Vai à Guerra”. Era o grande filme do momento. A trama girava em torno de um soldado americano atingido por um morteiro, na 1ª guerra mundial. Perde o nariz, a boca, os olhos, as pernas, os braços. Não morre. É mantido no hospital como objeto de pesquisa. Algo de aprendizado a ciência deveria obter daquele corpo subtraído de peças, largado sobre a cama. Apenas a consciência se anima sobre o leito estanque daquele hospital. O soldado não pode se comunicar a não ser com ele mesmo, com o oco de si...) 
Ficar sem nariz é ruim. A gente fica embotado. Perde-se nas lembranças. É como ficar sozinho. Cheio de buraquinhos permeados de ausências. É como se nos tornássemos um pulverizado opaco vagando ao vento, inerte, mas aquecido, abrasador. Então a gente se engole inteiro e vai pra dentro do eu, fuçar saudades (sem o nariz). 
No domingo do Círio, volvi meus pensamentos para meus amigos distantes, sem narizes pra cheirar os cheiros do Pará. 
Eu já me bati com esses reveses. Passei muitos Círios fora, por aí, por esses verdes amazônicos. Minha mãe, minha amiga, minha companheira sabia que eu sofria. Era conta certa. Em outubro, onde quer que eu estivesse, podia esperar pelo correio, um mimo. O mais comum deles, um roc-roc que eu ficava roc roc’ando o tempo que desse, pelos cantos com os olhos lacrimejantes até acabar o breu. Certa vez mamãe variou e mandou duas garrafas de Guaraná Garoto (só faltou o pastel folheado de queijo). Superou-se em ousadia, numa outra oportunidade, quando mandou em mãos, lá para as margens do rio Madeira em Rondônia, uma dose generosa de maniçoba. Sabia das minhas privações, minha mãe. 
Algumas joinhas do meu séquito passaram, compulsoriamente, o Círio deste ano, longe de Belém. Laila, a professora-poeta, que tanto me ensinou em desprendimento, liberdade e audácia com seus escritos, enfurna-se pelos estirões falhados do Xingu, experimentando os desafios do magistério. Rubem Neto, meu best friend do curso de Geologia e que, um dia desses me regalou (meio sem querer porque esqueceu o disco aqui em casa e aí, já sabe, já era...) com o indefectível Abbey Road em vinil, se bandeou pras bandas da Bahia a prospectar níquel, e  por lá ficou o último final de semana, só na vontade de ir na corda. Os dois muito jovens, integrantes da safra de amigos bem novinhos, bem beberes que tenho, que me honram com suas companhias e em noitadas mais animadas, partilham socialisticamente comigo, o último copo da mardita ao jambu. 
Vou buscá-los donde estiverem com minha saudade. Leila Paixão, inclusive, que fez porque fez para que eu conhecesse Johnny e depois ergueu-se na tez banhada pelo sol da Sacramenta, ajeitou os óculos redondinhos, aprumou a vista e partiu para conquistar a Holanda. 
Hoje amanheci sem o nariz, sem os olhos, sem as pernas, sem os braços. Constatei que 80% dos sabores que percebemos são captados pelo olfato. Mas hoje amanheci sem o nariz. Tô oco por fora, e por dentro só tenho os sonhos e a língua. Os sonhos e a língua. Os sonhos, a língua. 

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

crônica remix - salve rainha

Salve Rainha
Mãe de Deus, volvei para mim, teu olhar. Para mim que vivo num pé e noutro para atravessar a baía e descalçar o coração, com fé. Para mim, que não posso ouvir o teu hino que me dano a chorar, nem beijar a tua imagem na folhinha do mês, nem contemplar o teu semblante gravado na minha bolsinha de moedas, nem acariciar teu rosto desenhado na capa do livreto da novena, que o teu amor me arde, e me lacrimeja os olhos, ó mãe clemente.
És o meu auxílio, ó dadivosa, e te procuro debaixo deste sol das dez, mergulhado no fervor desta multidão, com tanta esperança, que nem importa qual promessa estou a pagar.
Se foi aquela quando te vi as pupilas agigantarem-se e descolorirem a tua íris explodindo o caleidoscópio da tua alma em mil pedaços de dor...
(E assim, lentamente, se foi para sempre a luz dos meus dias – Luzia – Foi assim, aos poucos, que o fogo provedor dos teus olhos foi se apagando, que o silêncio desbotado daquela hora foi sendo, compassadamente, transportado para além da minha compreensão. Foi então que, tragado pela escuridão, mergulhei no mar de insuportáveis sofrimentos. E foi assim que a minha fé fraquejou, cambaleou e largou-se às sarjetas frígidas da descrença - Eia, pois, advogada nossa, esses vossos olhos misericordiosos, a nós volvei... Até que um dia, te encontrei novamente nos olhos graúdos de meus filhos: esperanças e motivos para recomeçar. Encontrei novamente a vida pulsando, querendo, voltando...Pelas ruas de outubro, de Belém, de revelações. Mamãe, mamãe...Mãezinha do céu, eu reaprendi a rezar).
...Ou a promessa foi por aquela outra vez em que eu caí sobre uma lata de conserva, quando eu era bem pequenininho, lá no seringal São Miguel, na planície do rio Acre, e um talho deste tamanho quase aparta a minha perna, e haja borra de café, pra sarar. E haja providência. E haja rogos e pedidos.  
E quantas outras promessas eu devo estar pagando agora, ó piedosa mãe!
Sei apenas ó dulcíssima, que, agora, não é a certeza da morte que me dói, e sim, a dúvida do desterro, da separação, da distância, da saudade. E eu, filho exilado, te procuro na tua canção (‘Salve Rainha, mãe de Deus, és senhora nossa mãe...’), no teu coraçãozinho de prata guardadinho na caixa de sapatos, na tua fotografia tão nítida, que a luz do dia me deu. Te procuro no mal secular que eu te fiz, no pouquinho de amor que eu te dei, no muito que é o desejo de te ter perto de mim. Te procuro na tua face serena de mãe como naquela noite em que a eternidade nos visitou...Aquela noite... Aquele silêncio, aquele silêncio meticuloso, cruel, torturante...Que apagou teus olhos e  te levou para sempre.
volta para mim, ó mãe, teu olhar confiante. Que eu quero me aninhar no teu colo (como um filhinho, como um filhinho). Que a emoção me consome quando os fogos te anunciam. Que eu quero afagar tuas mãos. (E minhas lágrimas escorrem pelo rosto  e se espalham e somem, e orvalham desertos e hidratam fervores, levadas que são pela brisa amiga que vem da baía). Quero que me guardes, ó misericordiosa, pois o tempo é de conversão e te vejo chegar, pelas águas, tomada pelas dores do mundo, no meio de gente de tanta fé.
Que eu não sei quantas vezes, nem tempos, nem anos, ficaremos juntos, rezando para que a dor da saudade, esta saudade sofrida, inclemente, que consome os meus dias, passe.
E depois deste desterro mostrai-me Jesus, Para que nunca mais eu me sinta tão só.
Ora pro nobis, sancta Dei Genitrix.
O clemens, O pia, O dulcis Virgo Maria.

Amém.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Crônica remix-eu era pequeno

Eu era pequeno, nem me lembro
Só lembro que desde aquele dia e por anos e anos, a minha mãe nos levava, a todos, a uma oração, antes de dormir. Rezávamos a Ave Maria de joelhos e cheios de fé porque minha mãe dizia que a santinha havia me livrado de um encalacre federal.
Eu era bem bebê. Tinha lá uns quatro anos. Minha irmã, Ana Valéria, é um ano mais velha que eu, naquela manhã friinha, lá na planície do rio Acre, contava com pouco mais de cinco anos. Virávamos, mexíamos e pintávamos os canecos, porém, pelo terreiro amplo que margeava o barracão do seringal São Miguel (e hoje eu até dou este desconto para as peripécias que fazíamos porque imagino como é que se divertiam os garotos naqueles ermos acreanos desprovidos de ruídos e modernidades. Lembro que eu, por vezes, era jogado numa caixa de sabão vazia e dela fazia de um tudo: carrinho sem rodas, caminha, lambretinha, peniquinho, ruinhas de seringuinhas... E varava os dias me divertindo quieto e sozinho, como era bom de ser. Mas quando me soltavam...).
Ana Valéria não contente em subir nos cajueiros para catar os frutos e depois comê-los com sal, chamou os pequenos (todos afilhados de minha mãe) e comandou uma descida estabanada para o igarapé que ficava um pouquinho longe do barracão, já no meio de uma mata rala (à época, já havia, meio que instintivamente, entre os seringueiros, o conceito de mata ciliar). E quem ficou para trás? O cabeçudinho aqui, com um andar tremelicante, meio cai não cai naquele declive radical que levava às águas do Ina. Minha irmã não contou conversa. Desacelerou, me pegou no colo e continuou a carreira rumo ao vale do igarapé. Aí, rolou a tragédia...
A seringa gerava uma grana boa na época. A borracha alcançava mercados distantes. E na proporção que se exportava, também se adquiria produtos de fora. E os enlatados faziam um sucesso! Sardinha da costa portuguesa, ervilhas francesas, presuntos italianos, almôndegas dinamarquesas. O seringueiro se endividava com o patrão adquirindo aqueles produtos alienígenas (não podiam praticar a cultura de subsistência, lembro. Tinham que depender sempre dos víveres oferecidos pelo patrão), alimentando-se daquelas massas transoceânicas e, como hoje (infelizmente) largando os resíduos ao tempo. Resultado: no caminho para o igarapé minha irmã escorregou no limo verde e eu rebolei sobre uma lata de conserva.
Minha irmã chorava mais que eu. Meu pai teve que vir às carreiras lá das matas (e como a presença do meu pai me confortou. Papai, papai, papai! Aquele abraço que papai me deu... Trago comigo até hoje a absoluta certeza da segurança que se fez real naquele instante em que meu pai me tomou no colo e me cuidou).
Depois de tantos anos, não é difícil de achar a cicatriz aqui no meu joelho direito (até hoje é uma teba!). Acho que varei mesmo.
De lá do seringal até à cidade, eram seis horas no caçuá. Não havia tempo para o transporte. Minha mãe cozeu o café, colheu o mais que pôde de borra e fez uma compressa no meu golpe com tiras de um lençol que quarava no quintal. Depois chamou os vizinhos, as comadres, a família. Pôs a imagem da Virgem de Nazaré no oratório e pediu que ela nos acudisse.
Daqui a pouco quando a santinha desembarcar da romaria fluvial, vou estender minhas mãos para ela (e este ano não tenho que erguer meus meninos no tuntum para ver a santa. Já passaram de mim). Vou sentir uma saudade danada do meu pai, da minha mãe. As lágrimas vão rolar. Vou agradecer porque um dia a mãe de Deus volveu os olhos para mim. Mas vou pedir perdão também, porque depois fui crescendo e ‘fui esquecendo nossa amizade’.

sábado, 12 de outubro de 2013

crônica da semana - cinema

A Sétima Arte

Eu nuca fui a um cinema de shopping. Sou avesso. Piração minha, coisa do meu eu arredio. Talvez um descontentamento. 
O certo é que me afino mesmo é com os cinemas de rua. Sou do tempo do glamour do Olympia, da realeza do Palácio, da cumplicidade quase gêmea do Nazaré e do Iracema, da camuflagem nada camuflada do Ópera, do imbricamento harmônico dos cinemas 1, 2 ,3  e do bucolismo pedreirense do Paraíso. 
(Cheguei até a varrer o Cine Paraíso que tinha um salãozão que se media aos decâmetros só pra poder entrar de graça nas sessões. Eu bufava varrendo, mas à noite, ah, à noite, ficava ali de palmo em cima com a Ursula Andress). 
Houve um tempo em que os grandes cinemas de Belém fizeram uma promoção pai d’égua. Quem chegasse antes das três da tarde, pagava só a metade do valor do ingresso. Firme, aquela prenda. Nós estudantes, pagávamos a metade da meia. Eu era figurinha batida. Ia pra aula, quando dava duas e pouquinha, escolhia no jornal um filme bom e me mandava. Chegava no meio da sessão, acostumava a vista, arrumava um lugar, pegava o fio da meada da história e me ajeitava na poltrona. Quando acabava, esperava a outra sessão começar, assistia ao pedacinho que havia perdido e voltava pra Escola com mais de mil para assistir à última aula. 
À época, aprendi a admirar os detalhes da Sétima Arte. Convivi com especialistas, conhecedores e fui tomando gosto. Percebi que havia uma tribo integrada, íntima dos atores, dos diretores. Sabia o nome deles, a filmografia...Certa vez no escurinho de Superman alguém atrás de mim fez um comentário sobre a atuação do Gene Hackman. Era a minha colega da Escola Técnica Dedé já exercitando o talento que lhe denotaria anos mais tarde como jornalista. Prestei reparo nos discernimentos da, hoje, crítica de cinema Dedé Mesquita e, aqui acolá me arvoro também, a expressar o meu apego aos meandros das produções enfatizando conhecimento ou paixão. Quando soube, por exemplo, deste filme que o Wagner Moura fez em Hollywood desfiei o meu aprendizado: ah, é aquele filme com o Matt Damon, o menino maluquinho de “O Gênio Indomável”... A paixão, por sua vez, me trai quando percebo que filmes como Blade Runner, até hoje me entontecem. Minha mulher Edna se passa pra estas minhas presepadas, embora me segrede achar que isso são surtos de presunção do meu eu metidão. É verdade, dessegredo eu. 
Com essas penetrações profundas, no bom sentido, também me aproximei dos clássicos apimentados. Eu e minha turma da Escola Técnica fomos em peso, a uma sessão vespertina no Nazaré assistir ao primeiro filme de Saliência exibido em tela grande, no Brasil. “Coisas Eróticas” destrambelhou meus conceitos, desarranjou meus apontamentos estéticos. Me impôs calafrios indisfarçáveis naquela tarde. E a molecada, metade homem, metade mulher (as mulheres da minha turma eram muitas), na maior avacalhação.  Ainda mais diante daquele final perturbador (quem lembra?) que colocava as certezas machistas à prova. O filme é hoje cult e, pensando bem, um tanto inocentezinho ante a Cicciolinas italianas e brasileirinhas Cadillacs que se seguiram sussurrantes (yes, yes...) aquecendo o mercado cinematográfico do gênero. 
Quando estive em Madri, que é uma cidade européia moderna, no ano passado, constatei, no centro da cidade, a existência de pelo menos, três grandes cinemas de rua. Todos em fervorosas atividades. No dia que passei por lá, acontecia o lançamento de um filme com pompas e circunstâncias, inclusive com a presença de estrelas como o Mel Gibson. 
Por aqui, nossos cinemas saíram das ruas. Uma pena. Vou demorar a tornar desta dor. 

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Crônica remix os olhos de guevara

Os olhos de Guevara
Eu.”Na sina do violeiro, vivendo como estrangeiro , na terra em que nasci. Roubo versos sem rumo sem rima, de canções que nunca ouvi”. Eu vejo.  A fúria andina erguer-se com a brutalidade abissal sobre a Ameríndia sulcada por Tordesilhas : aquém, o brasilianismo pagão e as guianas transoceânicas ; além , um simpático  e silencioso alpendre a apreciar as verdes e pacificas águas Rapa Nui. Eu vejo . As gentes ossudas e piolhentas a vagar insones , a peso de chicoteios capatazianos, pelas florestas abafadas e gotejantes. Eu vejo. Os mineiros cor de cobre comendo pedras de carvão sob a batuta ardida do capitão-do-mato. Eu vejo os oficiosos guardiões a arrancar as vísceras das gentes e ofertá-las aos urubus. Eu vejo. O negro dos olhos, os cabelos escorridos de índio, os braços redentores erguidos de Simon Bolivar e Sepé Tiarajú a libertar dos servilismos, as gentes. Eu vejo o crioulo canto caribenho, acreano, portenho... A paz marajoara e as alvíssaras notícias dos pampas colorados. Eu vejo. O meio do mundo calorento e as amazonas seminuas de Macapá e Guayaquil. Eu vejo. O índio boliviano de cócoras, com o olhar perdido sobre a neve alpina, a mascar a folha reconfortante. Eu vejo. Ao norte a estátua gaulesa benzendo o mundo livre cá embaixo com salpicos de vodka e cuba libre. Eu vejo tudo. Aqui de cima, como o condor peruano eu vejo tudo: os homens desabotoarem a minha braguilha e me cortarem a honra. Os flashes disparados insistentes a me eternizarem a face. As imundícies escorrendo pelas valetas rasas da aldeia, misturadas ao meu sangue morno. Eu vejo tudo. Um homem com cara de mau a me cutucar as feridas abertas pelas balas. O meu rosto atento, o meu peito nu, os meus pés gretados de tanto andar, os meus braços largados sobre o estrado cru, as cabeças pensantes e tranqüilas, o telhado falhado e barrento, a aldeia primitiva, os cães vadios, o riacho incolor, as nuvens geladas, o céu infinito... O meu corpo asmático enterrado na América querida lá embaixo, a esperar o abraço paterno de Deus. Eu vejo tudo aqui de cima, como o condor soberano. Eu vejo tudo. Os nove nãos penetrando no fundo da minha garganta e me calando a voz na manhã de 9 de outubro em La Higuera. Eu vejo o ranger de dentes dos rangers bolivianos. Vitoriosos e tristes. Eu vejo tudo com os olhos. Camponeses, cisplatinos. Clementes e tementes pelos meus filhos favelados. Eu vejo tudo com os olhos. Com os olhos faiscando flores benfazejas à índia paraguaia. Querendo explodir a mãe de todas as guerras e o sereno noturno e meigo a me impedir. Com os olhos poderosos, messiânicos, vislumbrando horizontes felizes. Com os olhos a sentir, ao largo, as mãos fiéis a me tocar a alma endurecida pela dor, terna porém, para todo o sempre. Eu vejo tudo com os olhos vivos de Guevara. Luz a brilhar pelas noites de latino-América. Eu vejo tudo com os olhos vivos de Guevara. O corpo estendido, entregue ao estrado boliviano e os olhos renitentes, desafiadoramente acesos “a velar pelo sorriso adormecido das crianças”.

sábado, 5 de outubro de 2013

crônica da semana - liberdade

Liberdade

Eu estava esperando o ônibus que me leva para a fábrica de manhãzinha, ali na Primeiro de Dezembro. Tenho o costume de, enquanto espero, ler um livro, na parada. E me abstraía com os desconcertantes relatos sobre o tórrido ano de 1968, naquela manhã friinha de céu algodoado. 
A mão dela pousou sobre meu ombro, mas não se anunciou em peso, houve um certo assentimento inexplicável naquele contato. Surpresa, não houve, nem combina. A chegada foi assim inesperada, mas permitida, assimilável. Dispôs-se à minha frente como se já me conhecesse de tempos. Disparou a primeira pergunta. Leve. Despretensiosa. Perguntou se eu estava esperando o ônibus. Meio que induzindo um ligeiro apartamento, respondi que sim, assim, com esta única sílaba. 
Olhou para o meu livro e me desconcertou com a indagação: “é uma Bíblia?”. No repente, pensei confirmar, mas declinei e respondi que não era não. “Vermelha”, realçou a voz para identificar a cor do livro, e emendou em ritmo cadenciado, quase soletrando a frase estampada na parte superior: “Liberdade”...(o livro que estou lendo desnuda o ano de 1968 nos seus aspectos mais marcantes. Para minha surpresa, é um livro produzido pelo governo, a edição é de distribuição gratuita, de boa escrita e fidelidade histórica. Traz na capa a palavra “liberdade”, grafada em preto para dar um contraste inconteste ao idealismo do vermelho de fundo). 
Era uma mulher, já na terceira idade. Nunca a tinha visto por ali. Exibia um rosto vincado, incisivos ausentes, tez oxidada, e uma agilidade estonteante no falar. Usava um chapéu de abas dobradas era dotada de vastas curiosidades. 
Acendeu em mim, a chama. Catei cá dentro, algo que refletisse a liberdade. Queria aproveitar a deixa e traçar um papo filosófico já que senti profundidade por parte dela quando deu com a palavra pichada no livro. Se não aparece doido de serventia todo dia pra gente, ia ganhar um tempinho com uma boa prosa até meu ônibus passar. 
Mas ela era muito lúcida. Deu sinal dos alinhavos lógicos que volteavam pelo cocuruto, quando percebeu algo de batalhador no meu uniforme. Reconheceu detalhes da minha roupa e me questionou se eu era da Celpa ou Cosanpa. Neguei com a cabeça, e quando fui me adiantar sobre meu destino, ela mudou o rumo e detonou a mais desconfortante pergunta. Quis saber se eu era de alguma igreja. 
Aí eu me embananei todo. Aquele impulso matinal vislumbrando a liberdade. Ela procurando a Bíblia em vermelho, percebendo no livro a liberdade... Pouco convincente, assumi que não, que não era de nenhuma igreja. Só que ela bateu na ferida. Dias atrás havia passeado por dentro de mim, procurando alguma fé. Tenho dúvidas. 
Ela resumiu a conversa e deixou a questão no ar: “não é de nenhuma igreja, né, mas é bisbilhoteiro?” Claro que não, declarei resoluto, tentando estabelecer a lógica que ela programara para entrelaçar igreja e bisbilhotagens numa manhã de setembro. E ela nem thum pra mim. Deu de ombros e seguiu seu caminho pela calçada. Ainda acompanhei aquele andar despretensioso mirando a estampa da camisa que ela usava. Um arco à altura do ombro com o nome “Roberto Carlos”. Eu cantarolei baixinho “quando eu estou aqui/vivendo este momento lindo”. Só depois, é que reparei que se tratava do jogador, aquele do meião, e não do cantor. 
Dei um sorriso e me cobrei porque, por muito tempo, achei que ter liberdade era poder sair por aí de ‘percata’. Liberdade pra mim era não precisar calçar sapatos fechados, me agoniar com dedos espremidos. E nem era. Liberdade talvez sejam breves aconteceres, vulgares bisbilhotices nas manhãs. Encontros, despedidas. Quem sabe?