sábado, 30 de outubro de 2021

crônica da semana - o bom cristão

 O bom cristão

Ando revisitando alguns episódios de “Game of thrones”. Durante o recolhimento da pandemia, me resolvendo com a insônia, crises nervosas e muita tensão, desanuviei acompanhando as oito temporadas da série.

Agora, expandindo as atenções, mas não descartando um jeito de desviar das pressões diárias, tô salteando uns episódios e remendando impressões sobre detalhes, triscas da realidade nem tão fantástica representada em cada episódio.

Tenho cravado certo nas mais emblemáticas passagens. Para mim, uma sequência caprichosa, quando se quer entender como é realmente estúpido o poder, é aquela em que a rainha má, em colóquio denso com um dos ambiciosos vassalos dá um sinal de como a força e a obediência bruta se sobrepõem à astúcia e à erudição quando o riscado é dominar, fazer e acontecer. Diante da afirmação presunçosa do vassalo de que a sutileza e outros elementos pautados na arte política são suportes eficazes para se exercer o poder, ela em dois ou três lances mostra que pode ser de outro jeito. Aciona um pequeno pelotão da guarda, dá comandos aleatórios, inconseqüentes, sem fins ou regramentos; e sem uma resistência sequer, vê todas as suas determinações serem cumpridas. Inclusive aquela para intimidar e constranger o interlocutor. Saiu, a rainha, de lado com ar triunfante e deixou a cena com uma mensagem clara. Não precisa de inteligência para subjugar alguém. Basta um enfileirado com espadas afiadas em punho e a ausência total de discernimento dos comandados.

(E qualquer semelhança percebida com um país tropical abençoado por Deus, inspira reflexão e ação, urgentemente).

Outra sequência que tô revendo agora, choca, faz a gente chorar e é de toda sorte revoltante porque atinge a alma, provoca dor íntima, reflete e invoca sub-humanidade, traz das profundezas lodosas do ser, todo o emaranhado de crueldades e perversões. Ocorre quando um príncipe é capturado por um inimigo e feito prisioneiro. Nos primeiros momentos é torturado, mutilado, sofre os horrores do calabouço. Ocorre, porém, neste núcleo da trama, a inserção de um elemento mais abominável ainda no domínio do homem sobre outro. O príncipe passa por uma sucessão de ataques psicológicos. Vê-se reduzido moralmente, humilhado, tem seus valores subtraídos e a carga é sempre mais forte sobre ele, até o momento d’ele não se reconhecer mais como indivíduo único e livre. Passa na história a ser um pacote humano servil. Submetido pelo seu raptor à perda total da razão. Vive ao largo no castelo como se fosse um animalzinho de mando fácil. Sem alma, sem memória, sem sentimentos. Cenas fortes que nós, pessoas comuns, de meras éticas, e voltadas para os costumes do vulgo, nos pegamos a repugnar, mesmo porque, coisa que o bom cristão, em solidariedade ao Senhor Jesus imolado não tolera, é a tortura.

Aí me ocorre uma ocasião de muita chuva em Belém e aquele trecho da Presidente Vargas, logo ao pegado da Enasa, alagado. A água veio na canela. Estava no caminho de casa e vi que meu ônibus tinha parado no sinal bem na dobra. Tirei as botas, chapinhei na água. A chuva ainda caindo forte. Fiz sinal e pedi para o motorista abrir a porta. A chuva dando no meu lombo. Os pés mergulhados na lagoa. Pouco movimento na rua. Ali não era a parada eu sei. Mas a chuva, o alagado da rua. Ele me lançou um olhar de desprezo e entendi a mensagem. Tinha o estúpido poder. Humilhado, lembrei da rainha má e do pobre príncipe. Subi no detrás. O motora do outro ônibus, o bom cristão, que nem era do meu itinerário se apiedou, abriu a porta pra mim e me deu livramento daquele pampeiro, daquela água dando na canela.

sábado, 23 de outubro de 2021

crônica da semana - mosqueiro-belém

 Belém-Mosqueiro-Belém

Vou te contar, olha. O camarada vai passar o domingo em mosqueiro? Vai. Mas... Chove o dia todo que Deus dá.

E foi um acontecimento, uma extravagância que a bom os anos passando e eu não fazia. Contando na ponta do lápis, tinha cravado 25 anos que não ia à Bucólica. Difícil de acreditar, né. E quando o camarada vai... me chove!

Entretantos e tempos, houve de eu tirar umas esticadas encarreiradas pra lá. Era na época de igrejeiro, jovem militante das causas salesianas. Bem sim, bem não, pegávamos a estrada no Fiat com o Padre Lourenço ou no ônibus guiado pelo Nino, para um retiro, um carnaval diferente, um mutirão na casa dos padres, que se localizava nos escaninhos da Baía do Sol. Embora contabilizada com aquela freqüência, a viagem por estrada não chega perto do caminho que fiz até a ilha, pelo rio. Primeiro, quando eu era bem molequinho, a bordo do Presidente Vargas e, muitos anos depois, aos sábados, na linha que cruzava a baía a 50 centavos, numa invencionice simpática do poder público.

Esta visita de agora que digo, foi de carro. Pela ponte.

Rolou uma emoção (sentida só por mim. Ninguém com quem partilhava a viagem deu ibope às historinhas, às reminiscências que narrei enquanto vencíamos os 1.457,35m de travessia em cima da ponte Sebastião R. de Oliveira). Cantei até a música famosa na época da inauguração: “Belém-Mosqueiro-Belém/Eu vou e volto num segundo/ A ponte Belém-Mosqueiro-Belém/É a coisa melhor do mundo” (peço todas as vênias por não citar o autor dessa música, e tanto que busquei aqui nos sites de informação. Achei um isto, um aquilo, mas nada que assegurasse ser o dito e o certo da composição. Quem souber, por favor, me dê aquele help).

Como a audiência para os meus causos foi baixa, voltei-me à paisagem e aos detalhes do furo das Marinhas. E não é que de prima dei com uma ilha se formando embaixo da ponte, ali pelo meio do trajeto. Muito firme de apreciar... Tornei à turma que estava no carro com uma informação pra lá de empolgante. “Sabia que na época da inauguração aquela ilha não existia?” O gancho não empolgou ninguém.

Mas eu insisto: é um fenômeno cheio de riquezas e detalhes geológicos. E muito comum nos rios da Amazônia. Rios de planície. Ali do outro lado da ilha das Onças, indo pra Barcarena, tem uma outra muito no jeito se formando. Se não me fogem os apontamentos escolares, essas ilhas são elementos fluviais conhecidos como barras e são geradas, mais comumente por presença de obstáculo. É o caso da ponte que se meteu no caminho das areinhas que circulam por ali. Até pesquisei num site de notícias que deu trela pro surgimento da ilha. Ficou em a ver. Diz no texto que iria pedir a opinião de especialistas e tal e coisa, mas não mostrou o resultado da consulta. Já que ninguém explicou, explicado está por mim, se eu estiver errado, lascou-se. Vai todo mundo pra debaixo da ponte do conhecimento comigo.

Passamos da ponte. Éramos convidados para um batizado na Baía do Sol. Antes da cerimônia, o primeiro chuvisco. Dei um mergulho, almocei e fomos aos ritos. Foi só o bebê receber as nossas energias e a bênção da baía, o pampeiro arriou de vez. Nós, ó, pra trás.

No caminho de volta, aos cruzarmos a ponte tentei de novo uma prosa sobre a ilha lá embaixo, cantei a música, trouxe histórias do padre Lourenço. Sem audiência... E a água caindo do céu. Quando varamos na BR, nenhum sinal de chuva. Asfalto seco, seco.

 

 

 

sábado, 16 de outubro de 2021

crônica da semana - colação de grau

 Colação de grau

Uma foi tirar plantões em São Miguel, outra se meteu no meio do pitiú do Veropa, a cuidar dos esquecidos; este internou-se no Barros Barreto, aquela, no Hangar. Nos acudiram e contaram como contas preciosas no Rosário do qual nos valemos, nos momentos mais dramáticos da pandemia.

Neste Círio, não tive como olhar para essa galerinha que até um dia desses era a petizada aqui do nosso quintal, com os mesmos olhos...

Em janeiro de 2020, fomos convidados. Lá me bati de novo com o aluguel de paletó que nunca cabe diretinho em mim, me vi na resignada severidade apertada de um bico fino que uso só para essas ocasiões e, com muito garbo, ostentei aquela postura de pai, de amigo, de parente orgulhoso, porque, de todo coração, vejo motivos muitos para ficar todo metidão, quando alguém de nosso convívio consegue superar os reveses e põe a mão no canudo de um curso superior. E esta colação foi muito especial. Estava lá, parte da petizada que frequentava os nossos saraus do quintal. Moças e rapazes entusiasmados, verdinhos na vida, ansiosos da lida; dançando, comemorando em divertido folguedo, sob luzes e sons de uma cerimônia de formatura do curso de Medicina realizada no Hangar. Uma noite decisiva, reveladora. Uma previdente catarse. Parece uma coisa! Uma anunciação. Um acúmulo de animada energia para um futuro próximo de desafios jamais imaginados.

Dali a dois, três meses, estariam na linha de frente no combate à pandemia provocada pelo vírus maldito Corona e seus aliados negacionistas.

Muitas quedas, muitas dúvidas e desesperanças depois, tive um reencontro com esta turma, agora pelo Círio. Todos já cheios de histórias. Tantos atendimentos de palmo em cima com o vírus. Mudanças radicais. A decisão drástica de cair em campo e considerar não voltar pra casa, procurar um canto pra se isolar, por causa do risco de contaminar familiares, pais, mães. O dia a dia tenso, enfrentando inconformismos, dores da perda sem cura, e, até indefensáveis solicitações por medicamentos ineficazes, feitas com arrogância ou mesmo ativadas pelo desespero.

Para mim, são merecedores e merecedoras de todo respeito, objetos da minha admiração e alvo da minha gratidão. Do meu carinho, do meu encantamento (em especial, a petizada que mora no meu coração). Representam uma legião verdinha na lida que foi lançada no front de uma luta inglória.

A cidade ferve por esses dias. A ruma de gente movida pela fé incita Belém a emanar calor humano, desejo de um mundo melhor. Eu me bato com meus conflitos. Procuro entender esta convulsão, esta vibração que a cidade exibe e partilha com a gente. Em minhas convicções agnósticas nem tão convictas, quero crer. Busco justificar milhões de coisas, a história do Plácido, o comportamento da minha gente, a caminhada de joelhos pelo asfalto inclemente, os pratos típicos do almoço do Círio; a harmonia das cores, a estética inocente dos brinquedos de miriti; o contentamento simples de se abalar dos bairros distantes, só pra ver a passagem da Santa no largo do Redondo. A corda e suas dores. São caminhos que percorro pelos escondidos da minha alma e o que encontro a cada ano, é sempre a resposta em forma de agradecimento. Esta é a minha fé e este ano com meu Rosário de contas preciosas nas mãos, dedico minhas orações àquela turma de Medicina que colou grau no início de janeiro 2020 e que dali a dois, três meses, já estava no plantão de São Miguel, no meio do pitiú cuidando dos esquecidos...

sábado, 9 de outubro de 2021

crônica da semana - círio 200

 Círio 200

Na edição do Círio 200, ganhei uma bolada.

Houve comemoração, programação especial, regressão ao primeiro caminhar no limiar do século 18, em romaria tímida pelos ermos da Campina. Autoridades civis e eclesiásticas nas cerimônias oficiais. E teve o bingo.

Quando vi minha cartela sorteada, quis logo descalçar os pés e caminhar o estirão até a Basílica, como agradecimento por ser abençoado com aquela bolada. Deu pra comprar umas coisinhas, ajudar a titia, a petizada da família e ainda sobrou uns carocinhos pra abrir uma poupança que me é de valência até hoje. Decidi acompanhar a procissão porque quis mesmo. Não foi paga de promessa nem nada. Não houve troca. Nada de toma lá/dá cá. Na época todo mundo comprou uma cartela do bingo, era uma forma de participar da festa, não havia o interesse na premiação. Era tudo movido pelo clima do Círio. A gente fica mesmo mais aberto às boas ações em outubro. O que se deu é que a idéia de acompanhar a procissão sem promissória surgiu assim, no calor da hora. Ainda bem, porque olha, fiquei em a ver com a Santinha.

De acompanhar o Círio mesmo, do início ao fim, só me foi possível uma vez. Aconteceu quando do regresso de um encontro de jovens, da pastoral Salesiana, em que firmamos alguns compromissos para mudar o mundo. Outubro estava em cima, e a primeira missão foi empurrar a Barca com Remos, no grande cortejo. Era uma ação articulada pelos organizadores e, por isso viemos na boa todo trajeto e tivemos a entrada no CAN garantida. Agora, mais recentemente, esta tarefa é dada aos alunos do ensino médio e pela natureza da causa, acompanhei minha filha nas campanhas em que ela participou. Entramos, mas saímos logo do CAN, e também o trajeto dos carros hoje não cobre toda a caminhada. Inicia na presidente Vargas. Não dá pra dizer que acompanhamos a multidão de lá a cá.

Em outra tentativa, fiz quase todo o percurso ostentando uma faixa com dizeres bíblicos e antes da Generalíssimo, fomos interceptados por indelicados agentes da polícia e outros aliados que dispersaram nosso grupo quando nos manifestávamos em defesa do padres franceses Aristides Camio e Francois Gouriou, presos por causa de um apostolado ao lado dos posseiros do Araguaia, isso no início dos anos 80.

O que se tira é que só uma vez tive a oportunidade de fazer a caminhada da Sé a Nazaré completa.

Esta vaga me levou ensejar mais uma tentativa, no Círio 200. Seria um romeiro fiel, gentil caminheiro. Leve e livre. Só não contava com aquele esmigalhamento na dobra do Manoel Pinto. Éraste! Me vi aperreado. Tive que me pegar de todo meu coração, com a Santa pra sair inteiro dali.

Até que tudo estava uma maravilha. Eu cantava, rezava, agradecia a minha bolada, olhava por céu azul e vislumbrava a paz. Até que meu céu foi estreitando, virando só um quadradinho anil, o espaço foi se contraindo, meu corpo foi elevado do chão. Pregões ansiosos anunciavam: Lá vem ela. Era a corda. Não vi mais nada. O povo se fechou sobre mim, não vi mais céu, não achei mais meus pés. Senti a cabeça rodar. Um rodopio alucinado comandou meu destino. O ar ficou raro. O mundo avermelhou-se em meus olhos de fogo e depois se apagou. Quando tornei, estava do outro lado da praça, na Assis de Vasconcelos. Uma calmaria suspeita era sinal de que a Santa havia passado. Uma gota de suor frio escorreu da minha fronte e me avisou que eu não tinha mais pegada pra continuar. Não entrei no CAN. Fiquei em a ver mais uma vez. Quando tudo isso passar, vou tentar de novo.

sábado, 2 de outubro de 2021

crônica da semana - traga o litro

 Traga o litro, traga o litro!

Mamãe tinha dois sonhos, dois anseios mundanos. Um era ter uma TV colorida. O outro era comprar um prosdócimo.

A televisão, consegui atender com os proventos de uma indenização que recebi nos primeiros anos de Barcarena. Já o prosdócimo ficou em a ver, perdido nos enredados da metonímia.

Os sonhos se diluíram na poeira do tempo, já o discurso que desafia a semântica, até um dia desses se concretizava pelas ruas de Belém. E se avivava no pregão: “traga o litro, traga o litro”. O chamamento era para que as pessoas aparecessem com um recipiente para adquirir, a preços bem populares, um tipo de água sanitária caseira, porém, anunciada como a mais famosa, aquela que era a boa da época. Pelo uso, pela exclusividade, o costume, a tradição, e pela disputa ainda acanhada entre os produtos industrializados, antigamente era comum a gente ligar a marca do produto, ao próprio produto. A este fenômeno recorrente na língua dá-se o nome de metonímia.

E é só lembrar da sétima série que a gente topa com um encarreirado de exemplos, quando se substitui a parte pelo todo, o autor pela obra, o continente pelo conteúdo, e no caso do Prosdócimo, o inventor pelo invento. Trata-se, no caso dos anseios da mamãe, de uma geladeira onde tudo é congelador (hoje conhecida como freezer). E que muito a ajudaria nas vendas que realizava para nos garantir a todos, o sustento.

Eu, aqui-ali, faço uso da metonímia. De fato, não conheço outro artefato capaz de me barbear, que não uma delgada e amoladinha gilé.

E não precisa ter boa cabeça (olha, olha!) para buscar umas quantas substituições que fazemos no passar dos dias. Cada qual tem a metonímia da hora para chamar de sua. Eu, por exemplo, sou um tipo que chama o sono na companhia de Machado de Assis e acorda com o Chico Buarque alarmando um ser tomado de preguicinha  para o corre do dia.

Calhou d’eu, agora na batida da campa das minhas lidas de operário, pensando seriamente em pendurar o capacete e o par de botas, catar aqui, acolá, uma ocupação para me aviar no futuro de aposentado. Longe de mim, a pretensão, mas pensei em garimpar entre os meus herdados da mamãe, um tiquinho do talento dela para o negócio da venda (e para a arte de prover ardorosamente um lar).

Analisando o mercado, o entorno e os vãos da Pedreira, me vi avizinhado de um portentoso condomínio. Especulo que se fizer uma boa propaganda, pedir pra deixar na janela meus prospectos listando e descrevendo os produtos da minha lavra, posso ter sucesso. Meu povo merece comodidade. No pé do meu panfleto, ainda vou ratificar “faz-se entrega em domicílio”. Era assim que funcionava quando, certa vez morei num condomínio popular, lá na Augusto Montenegro. Todo dia tinha uns reclames impressos debaixo da minha porta. Se me fosse do agrado, nem saía da Nova Belém, tudo o que eu precisava vinha ao pé da minha rede. Era só discar pro número do papelzinho. E eu podia ficar só no embalo, só na caté, final de semana só charlando no recreio. Ninguém tá a fim de sair nesse solão que vira chuva forte em Belém de uma hora pra outra, em tempo de pegar uma constipação, só pra comprar um isso, um aquilo farto e fácil. Ah, sim, vou diversificar meus produtos. Meu empreendimento vai ser tipo um armarinho das antigas. Vai ter da agulha ao pão de batata.

De vez em quando vou alugar uma bike-som e sair ao largo, alardeando. “traga o litro, traga o litro”.

Não vou ter um Prosdócimo. Vou ficar em a ver. A marca foi extinta.