sábado, 16 de outubro de 2021

crônica da semana - colação de grau

 Colação de grau

Uma foi tirar plantões em São Miguel, outra se meteu no meio do pitiú do Veropa, a cuidar dos esquecidos; este internou-se no Barros Barreto, aquela, no Hangar. Nos acudiram e contaram como contas preciosas no Rosário do qual nos valemos, nos momentos mais dramáticos da pandemia.

Neste Círio, não tive como olhar para essa galerinha que até um dia desses era a petizada aqui do nosso quintal, com os mesmos olhos...

Em janeiro de 2020, fomos convidados. Lá me bati de novo com o aluguel de paletó que nunca cabe diretinho em mim, me vi na resignada severidade apertada de um bico fino que uso só para essas ocasiões e, com muito garbo, ostentei aquela postura de pai, de amigo, de parente orgulhoso, porque, de todo coração, vejo motivos muitos para ficar todo metidão, quando alguém de nosso convívio consegue superar os reveses e põe a mão no canudo de um curso superior. E esta colação foi muito especial. Estava lá, parte da petizada que frequentava os nossos saraus do quintal. Moças e rapazes entusiasmados, verdinhos na vida, ansiosos da lida; dançando, comemorando em divertido folguedo, sob luzes e sons de uma cerimônia de formatura do curso de Medicina realizada no Hangar. Uma noite decisiva, reveladora. Uma previdente catarse. Parece uma coisa! Uma anunciação. Um acúmulo de animada energia para um futuro próximo de desafios jamais imaginados.

Dali a dois, três meses, estariam na linha de frente no combate à pandemia provocada pelo vírus maldito Corona e seus aliados negacionistas.

Muitas quedas, muitas dúvidas e desesperanças depois, tive um reencontro com esta turma, agora pelo Círio. Todos já cheios de histórias. Tantos atendimentos de palmo em cima com o vírus. Mudanças radicais. A decisão drástica de cair em campo e considerar não voltar pra casa, procurar um canto pra se isolar, por causa do risco de contaminar familiares, pais, mães. O dia a dia tenso, enfrentando inconformismos, dores da perda sem cura, e, até indefensáveis solicitações por medicamentos ineficazes, feitas com arrogância ou mesmo ativadas pelo desespero.

Para mim, são merecedores e merecedoras de todo respeito, objetos da minha admiração e alvo da minha gratidão. Do meu carinho, do meu encantamento (em especial, a petizada que mora no meu coração). Representam uma legião verdinha na lida que foi lançada no front de uma luta inglória.

A cidade ferve por esses dias. A ruma de gente movida pela fé incita Belém a emanar calor humano, desejo de um mundo melhor. Eu me bato com meus conflitos. Procuro entender esta convulsão, esta vibração que a cidade exibe e partilha com a gente. Em minhas convicções agnósticas nem tão convictas, quero crer. Busco justificar milhões de coisas, a história do Plácido, o comportamento da minha gente, a caminhada de joelhos pelo asfalto inclemente, os pratos típicos do almoço do Círio; a harmonia das cores, a estética inocente dos brinquedos de miriti; o contentamento simples de se abalar dos bairros distantes, só pra ver a passagem da Santa no largo do Redondo. A corda e suas dores. São caminhos que percorro pelos escondidos da minha alma e o que encontro a cada ano, é sempre a resposta em forma de agradecimento. Esta é a minha fé e este ano com meu Rosário de contas preciosas nas mãos, dedico minhas orações àquela turma de Medicina que colou grau no início de janeiro 2020 e que dali a dois, três meses, já estava no plantão de São Miguel, no meio do pitiú cuidando dos esquecidos...

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