sábado, 2 de outubro de 2021

crônica da semana - traga o litro

 Traga o litro, traga o litro!

Mamãe tinha dois sonhos, dois anseios mundanos. Um era ter uma TV colorida. O outro era comprar um prosdócimo.

A televisão, consegui atender com os proventos de uma indenização que recebi nos primeiros anos de Barcarena. Já o prosdócimo ficou em a ver, perdido nos enredados da metonímia.

Os sonhos se diluíram na poeira do tempo, já o discurso que desafia a semântica, até um dia desses se concretizava pelas ruas de Belém. E se avivava no pregão: “traga o litro, traga o litro”. O chamamento era para que as pessoas aparecessem com um recipiente para adquirir, a preços bem populares, um tipo de água sanitária caseira, porém, anunciada como a mais famosa, aquela que era a boa da época. Pelo uso, pela exclusividade, o costume, a tradição, e pela disputa ainda acanhada entre os produtos industrializados, antigamente era comum a gente ligar a marca do produto, ao próprio produto. A este fenômeno recorrente na língua dá-se o nome de metonímia.

E é só lembrar da sétima série que a gente topa com um encarreirado de exemplos, quando se substitui a parte pelo todo, o autor pela obra, o continente pelo conteúdo, e no caso do Prosdócimo, o inventor pelo invento. Trata-se, no caso dos anseios da mamãe, de uma geladeira onde tudo é congelador (hoje conhecida como freezer). E que muito a ajudaria nas vendas que realizava para nos garantir a todos, o sustento.

Eu, aqui-ali, faço uso da metonímia. De fato, não conheço outro artefato capaz de me barbear, que não uma delgada e amoladinha gilé.

E não precisa ter boa cabeça (olha, olha!) para buscar umas quantas substituições que fazemos no passar dos dias. Cada qual tem a metonímia da hora para chamar de sua. Eu, por exemplo, sou um tipo que chama o sono na companhia de Machado de Assis e acorda com o Chico Buarque alarmando um ser tomado de preguicinha  para o corre do dia.

Calhou d’eu, agora na batida da campa das minhas lidas de operário, pensando seriamente em pendurar o capacete e o par de botas, catar aqui, acolá, uma ocupação para me aviar no futuro de aposentado. Longe de mim, a pretensão, mas pensei em garimpar entre os meus herdados da mamãe, um tiquinho do talento dela para o negócio da venda (e para a arte de prover ardorosamente um lar).

Analisando o mercado, o entorno e os vãos da Pedreira, me vi avizinhado de um portentoso condomínio. Especulo que se fizer uma boa propaganda, pedir pra deixar na janela meus prospectos listando e descrevendo os produtos da minha lavra, posso ter sucesso. Meu povo merece comodidade. No pé do meu panfleto, ainda vou ratificar “faz-se entrega em domicílio”. Era assim que funcionava quando, certa vez morei num condomínio popular, lá na Augusto Montenegro. Todo dia tinha uns reclames impressos debaixo da minha porta. Se me fosse do agrado, nem saía da Nova Belém, tudo o que eu precisava vinha ao pé da minha rede. Era só discar pro número do papelzinho. E eu podia ficar só no embalo, só na caté, final de semana só charlando no recreio. Ninguém tá a fim de sair nesse solão que vira chuva forte em Belém de uma hora pra outra, em tempo de pegar uma constipação, só pra comprar um isso, um aquilo farto e fácil. Ah, sim, vou diversificar meus produtos. Meu empreendimento vai ser tipo um armarinho das antigas. Vai ter da agulha ao pão de batata.

De vez em quando vou alugar uma bike-som e sair ao largo, alardeando. “traga o litro, traga o litro”.

Não vou ter um Prosdócimo. Vou ficar em a ver. A marca foi extinta.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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