segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Crônica da semana - coração brisa

Coração brisa


Na véspera de Natal, saímos, eu e minha filha, bem cedinho, a ‘andar Belém’. Mas foi bem cedinho mesmo, antes das seis. Pelo que os jovens nos mostram a cada dia, a alvorada não é, exatamente, um espetáculo natural da preferência deles. Pelo comum, o dia se realiza para a garotada, agora nas férias, após as 10, 11 da manhã. Mas naquele dia, a ordem foi subvertida e até com muito fervor e ânimo. Palmilhamos os canais da Pedreira, contemplamos o prateado do sol nascendo bem no declive da Itororó com a Pedro Miranda, ziguezagueamos pelo traçado triplo da grande avenida e baixamos para as docas do Ver-o-Peso, ainda com um vento friozinho do amanhecer nos tocando a pele e a alma. 
Cumprimos o rito, no Veropa. Fizemos o desjejum com um completo de salgado e suco no JR, uma tapioquinha com café na tia, corremos à pedra pra ver a chegada de uns peixões pra lá de Tebas, nos perdemos pelos corredores aromatizados das erveiras, descobrimos escondidinhos charmosos na Ocidental do Mercado, serpenteamos na escada de ferro dos talhos restaurados, nos equilibramos caminhando bem na beirinha do calçadão que limita a doca do Piry. 
Os barcos encostados, encalhados no seco da maré. 
Adiante, no largo da Sé, nos solidarizamos com as mangueiras remanescentes e prestamos uma homenagem àquelas árvores maravilhosas que não resistiram ao último vendaval e nos deixaram apenas uma cratera entulhada de lembrança. Lamentamos, ainda, a ausência do cruzeiro, na parte central da fachada da igreja, também subtraído dali, pelo temporal. Descemos para o Forte e, depois de tantos anos com essa vontade, satisfizemos a curiosidade de chegarmos bem pertinho da grande parede. Mirei de palmo em cima os encaixes das pedras e a imensidão da muralha. Naquele momento, nos fizemos bem pequeninos, simétricos demais (nós que somos tão assimétricos), diante daquela construção de pedras quinadas e descompromissadas, na gênese, de coincidências angulares. É como a edificação das gentes, pensei: sem pré-determinações fáceis, confortáveis. Há de se ter o gênio, a audácia, a oportuna oficina da natureza para que se forje a construção humana. Somos quase muro, quase parede. Quase fortaleza, quase ponte, quase correntes, quase mar, quase terra, quase canhões, quase portões, quase rochas sobrepostas, quase pólvora, quase silêncio, quase explosão. A ordem nos diz que se nos construímos robustos para conquistar, também nos construímos arrogantes, para sermos conquistados. 
A nossa volta para casa se deu pelo comércio. Resolvemos atravessar aquele mar de gente que se espalhava pela via dos Mercadores, para sentir de perto como acontece o fenômeno consumista do Natal. Não compramos nada. Não que não tenhamos nos entusiasmado com os pulsares pregoeiros. Eles são conquistadores. Dá até vontade de levar algo que a gente não precisa mesmo. Mas é que não rezamos na cartilha consumista. Resistimos, e reconhecemos que os espetáculos de convencimento do comércio são poderosíssimos. 
Meu coração brisa saiu cedinho na véspera de Natal, para celebrar. Saiu acompanhado da minha filha, que é portadora e herdeira de mim. Quis que ela percebesse como eu me entrego pra esta cidade, como sou feliz com ela. E entendesse que, se vivo mais e melhor agora, ainda ela pode me ajudar na remissão dos meus pecados, na supressão da minha pavulagem. Sei que tenho débitos. Por eles peço perdão. Sei que com o meu charme e que engolindo  uns grãozinhos de super-amendoins, posso vencer outras batalhas mesmo sem os perdões que me faltam, mas, reverentemente, rogo por eles. Para o ano, meu coração vai sair de novo ‘a andar’ Belém. Oxalá, mais leve, mais brisa. Feliz ano novo. 

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Crônica remix- incenso e mirra

Ouro, Incenso e Mirra

O céu é plúmbeo, uma simpática queda de dois graus na temperatura média anuncia o Natal. A garoinha fina (a nossa nevinha líquida equatorial) caindo a qualquer hora não interfere na normalidade das coisas, mas, sutilmente, ajuda a abrandar os espíritos, cuida de diluir a acidez cotidiana, refreia o desvario diário.
O clima produz na gente um ingovernável sentimento nostálgico. Capaz de buscar uma lembrança absurda, subversiva de um Natal distante em que, no lugar de um rutilante brinquedo, a gente ganhou de presente, uma desenxabida roupa nova.
Natal. Tempo de conversão, de apelo à amizade, de súplica pela paz. No Natal é evidente um chacoalhar gradativo de índoles: quem é muito mau, passa a ser só mau; quem é mau, verga-se a ser mais ou menos bom; quem às vezes é bom, queda-se a ser o tempo todo; quem é sempre bom, inclina-se a quase santo; e quem já é santo, vira luzinhas cintilantes a embelezar as noites.
E os sinais concretos dessas reviravoltas nos parâmetros que medem a personalidade pipocam, pelos quatro cantos, na forma de campanhas solidárias de arrecadação de brinquedos, cestas de Natal, agasalhos e roupas para os mais necessitados. E quando não têm caráter material, os esforços apelam para as concessões ou reconciliações. Rogam por resoluções urgentes para as pendências pessoais perdoáveis. Tudo em nome de um Natal feliz.
Então é Natal. Da tolerância (e cá pra nós, quanta tolerância, meu Jesus Cristinho, ao digerir a versão da Simone para os sonolentos versos de John Lennon). Mas, vá lá que seja, sem patrulhamentos estéticos ressentidos, é Natal. De blim blauns, de dingo bels, de merry christmas. De melodias harmoniosas, suaves, fluindo leves da arvorezinha montada num canto alegre da sala.
É Natal. Da compreensão. Toda a compreensão na hora da troca de presentes nas desconcertantes sessões de amigo invisível (secreto... oculto). Não raro, um presente mal dimensionado derruba o clima de tolerância vigente e acaba agendando um forçoso compromisso de reconciliação já para o Natal do próximo ano.
Então é Natal. Da imprescindível pitada de sensibilidade na hora de escolher os presentes. Principalmente, os presentes das crianças.
Para as crianças: brinquedo.
( Tá bom, tá bom, é certo que um par de sapatos da moda ou uma muda de roupa nova, são utilidades cotidianas, mas, de jeito e maneira,  substituem o apetecível brinquedo).
É Natal. Para as crianças: brinquedos. E pensando bem, pensando bem, se para sarar tristezas antigas, para os adultos também

sábado, 21 de dezembro de 2013

crônica da semana - num trisca

Num trisca, num piscar de olhos

Aconteceu aqui em casa. Tarde calorenta. Abrimos as janelas, escancaramos as portas, deitamos no frio da lajota e nos entregamos esperançosos, a família Sodré, às reconfortantes lufadas de vento que chegavam lá do igarapé do Zé. Ô, coisa boa! Chega dava um alívio. Induzia à malemolência, aquela circulação que irrompia, de quando em quando, pelo chagão e ia pegar a gente deitadinho no chão, pedindo um sono. De repente, um vuco-vuco cortou nosso barato. 
Um passarinho invadiu a casa e entrou num dos quartos. Todo mundo despertou e deram-se as manobras de resgate do bichinho. Ele tava meio atarantado, voava baixo, subia, sumia detrás do guarda-roupa, se batia por lá. Ia pro canto da parede, bem na quina mesmo, planava rés o forro. Embicava de novo para os entremeios da cama e da cômoda. A gente volteava com ele, tremulava um jornal, uma revista, como se indicando a saída, mas o passarinho, nada. Tava mundiado. Fez que fez, até que cansou. Aninhou-se ao pé da parede. Capitulou. Nós mamíferos, nutridos a proteínas e acúcares, estávamos bufando de tantos saltitos, avalie então a pequenina ave que não tem tantos aportes de energia. Não conseguia nem bater as asas. Limitava-se a um piozinho rouco. Resolvemos levá-la para o quintal, hidratá-la, dar um descanso para ela e para a gente. Minha filha ajeitou as mãos em concha e agasalhou o passarinho ali, depois, enquanto providenciávamos água e uns grãozinhos de arroz, a avezinha foi deixada sobre a mesa, deitadinha, ofegante, tornando as forças. Num trisca, num piscar de olhos, num lampejo instintivo, a gata, que por ali espiava em silenciosa atenção, lançou-se sobre ela, atracou-a entre os dentes e deu o pinote. Nova correria, agora atrás do passarinho que estava sendo devorado pela gata. Pega-não-pega, larga-não-larga, até que pressionada e submetida a enérgicos carões, a gata largou o bichinho. Tadinho. Tava só o endereço, desmilinguido, desasado, humilhado. Novamente, mãos em concha e redobrados cuidados. Um período de convalescência sob forte proteção da família e o bichinho ganhou forças, tornou animado e largou-se para a imensidão do céu, batendo as asinhas, chilreando feliz. 
Aquele livre despertar fez o clima da tarde arrefecer. Uma camada matizada de nuvens densas desmaiava o horizonte e enternecia o final do dia. A maciez da noite, a metade da lua prateada e um cintilado discreto de estrelas se anunciaram providentes ao quintal. 
Recebemos a noite com zelo e contemplação. A experiência recente nos mostrava que além dos esforços da paixão e da razão reinam sobre nossas vontades, os lampejos atávicos, o instinto ancestral. A correria e os atropelos da tarde se revelavam ali, no silêncio da noite, como exemplos de que a mediação racional, o labor altruísta, a filantropia rasa, estão subordinados a uns triscas imediatos, a instantâneos indefensáveis, a poderosos repentes. Explosões naturais. Irrefutáveis. Insondáveis. Sinal de que bondade e maldade são vizinhas nas tardes calorentas. Incompreendidas no limiar da varanda. São mixes tão naturais quanto infinitos, espreitando corredores de vento. 
E assim, com a alma mergulhada em meditações, o tempo passou e amanheceu de novo. A gata saiu do silêncio recôndito da noite e foi ter à manhã. Um passarinho, que poderia ser aquele mesmo do dia anterior, poderia ser outro de canto diferente, ou ainda de outra espécie e cor, fazia algazarra entre as folhas do jambeiro. E foi então que nos aviamos, aptos, ávidos para receber os raios de sol de um novo dia com zelo e contemplação. Humanos. Humildemente humanos. Feliz Natal. 

sábado, 14 de dezembro de 2013

Crônica da semana Pê efe

Pê-efe chique

Tenho percebido, nos últimos tempos, que há um novo modo de servirem refeições nos restaurantes. É mais ou menos o antigo pê-efe, só que metidão, quedado ao chique. Um prato único com um raminho de manjericão enfeitando o arranjo. E se tem um raminho verde, já sabe: o preço é por acolá. 
‘Disconcordo’, enfaticamente, dessa presepada de pê-efe elegante. Para mim, isso é uma ostentação besta, uma presunção reles, um desrespeito ao pão nosso (que a tantos falta). 
Tô na bronca com essa prática porque é um apelo ao desperdício. Esse negócio de fazer prato só pra um, sem a alternativa de partilhar a opção, provoca uma leva de comida jogada fora. 
Aconteceu comigo em algumas oportunidades, mas posso destacar o ocorrido em um restaurante de hotel ali pras bandas sudestes do Pará. O garçom trouxe o cardápio com as opções (todas muito caras, ressalte-se) e foi adiantando que era prato individual. Estávamos em alguns amigos e cada um pediu o seu. Tomei um susto quando a comida chegou. Eram pratos esteticamente admiráveis, fartos em rococós e cintilâncias. Tinham jeito e cor.  Um morrinho adamantino de arroz aqui; um cremezinho denso ali; um molho de um oleado amistoso, acolá. Um mimo de guarnição cuidadosamente dosada e distribuída. E, protagonizando o pedido, uma porção generosa da mistura. Carne, frango, peixe, o que fosse, vinha reluzindo em um tantão, no meio dos enfeites. Mas era, em qualquer das opções, um bom pedaço, mesmo! Tirando por alto, cada peça tinha ali seus 300 gramas, tranquilamente. A mistura mais a guarnição, devia somar no prato, pra lá de meio quilo. Esta composição, para mim, significa comida pra dois. A gente percebe que no restaurante há um mal disfarçado patrulhamento reprimindo a repartição do repasto. E os próprios comensais, seja por receio, seja por pavulagem ou esnobismo, não estão nem seu Souza para a super oferta. Fazem, aliás, a parte mais pecaminosa da encenação. Dão dois triscas de garfo no petisco, tiram uma lasquinha de carne, um fiozinho de feixe, um cubinho de frango e largam de mão a comida anunciando-se satisfeitos. Noto que esta injúria é tomada como ato de requinte, como um afeto de menininho mimado. Parece moda circunstante. Repente de novo-rico. Nas vezes em que me vi no calor dessa luta, pelejei com meu cumê até o fim. Fiquei empanzinado, empachado, com o bucho por acolá, mas não estraguei comida não. 
Eu, heim, não tô doido, não tô variando nas travessas. Sei muito bem o valor que tem um prato de comida. E nem me refiro ao valor monetário. Falo do valor fisiológico, do valor social, moral. Tenho na memória os apertos que minha mãe passava todo santo dia pra prover nossa mesa. Lançávamos mão de todas as sortes, na cozinha, para podermos varar os dias e as noites. E quantas e quantas vezes a mamãe, na ausência de outras artes, abastecia nossas canequinhas com doses alentadoras de água de arroz, argumentando que a gente tinha que se conformar porque dali é que a gente tiraria sustança e animação. 
Mas como já, que nessa altura do campeonato, vou pagar os olhos da cara, num restaurante e deixar boa parte no prato para ser jogada fora? Negatofe. 
Quero lançar aqui uma campanha. Vamos boicotar os restaurantes que usam deste expediente. Se as condições impostas não puderem ser revistas (como por exemplo, se houver apenas um restaurante aberto), vamos jejuar. Faz bem pra alma. Se por outra, as ofertas estiverem à mão, que optemos pelo bom e velho prato a La Carte para dois e umbora ser feliz dividindo a asinha de frango, o bifão, o raminho de manjericão. Assim de dois, quero ver sobrar. 

sábado, 7 de dezembro de 2013

crônica da semana- vermelho amarelo

Amarelo vermelho

Ela jogava vôlei lá em cima. A ladeira era um caminho de terra vermelho e solitário. Ligava o nosso alojamento à vila. Ligava os nossos corações. 
As lembranças chegam à mente, enevoadas, neblinadas de lonjuras e distâncias. Mitigadas pelo tempo, ainda me chegam gostosas; sublimadas pela saudade, me vêm friinhas e aconchegantes como as noites de dezembro em Rondônia. 
Era a estradinha que nos levava ao mundo. Cá embaixo, no nosso alojamento, vingavam as coisas do trabalho, registros formais, cordialidades, bem querências compulsórias, sono reparador, cumê na hora certa. A cama arrumadinha. A roupa lavada. Uma ordem perturbada aqui e ali por sessões dominicais de socialização argumentadas por muito álcool, cuidando sempre para que o decoro fosse preservado. Lá em cima, a paixão, a liberdade, o descompromisso e o desapego às normas e formalidades. Toques atrevidos, confissões indecorosas. Doces suores. Sensações permitidas. 
A ladeira ia dar na vila. Um lugar plural, um arremedo de cidade, um sítio que fazia menção de interiorzinho, com capela erguida em madeira, largo com brinquedos para criancinhas, sorveteria, discoteca para os jovens. Tinha a quadra de esportes onde a gente armava a rede de vôlei quando o pessoal do futebol-de-salão enjoava de jogar. Como era no topo de uma pequena serra, a neblina era comum ali naquela área e foi-não-foi, coincidia com o horário do nosso jogo, lá pra de noitinha. A gente cantava a jogada e a fumacinha se desenhava e volteava no ar igual aos filmes que têm neve e mocinhos agasalhados. A vila era um lugar de realizações, de fazeres densos, de escurinhos e escondidinhos cúmplices. 
Ela jogava vôlei lá em cima. 
Quando a cerração passava é que eu reparava direito naquela que mais me chamava atenção no time. Eu a procurava pelos quatro cantos da quadra. Admirava o jeito faceiro com que ela sacava; nem disfarçava em acompanhar o movimento ordenado e ligeiro que o cabelo curtinho dela fazia, quando respondia uma cortada de manchete. Aos meus olhos, ela encenava um balé sensual, em cada jogada. Nas vezes que usava vermelho, emanava vermelho. Sorria vermelho. Vibrava vermelho. Me entontecia com aquele vermelho juvenil, livre, indolente. E eu que gosto de amarelo sucumbia, absolutamente dominado, àquele encanto sem remorsos. 
A hora que eu voltava para a minha caminha arrumada, lá embaixo, as nuvens baixas já haviam se dissipado totalmente. O jogo de vôlei se encerrara há um tempo e os escurinhos da vila minavam de vontades mil a minha vida. Em silêncio, procurava no céu, agora ornado de estrelas, brilho igual ao dos olhos dela. Tentava sentir entre os odores que a mata dispersava na lateral da estrada, o frescor daqueles sussurros recitados ofegantes ao meu ouvido. Alguns cachorros latiam lá atrás por sobressaltos ou instinto. E eu sonhava acordado, imaginando pétalas de rosas ornando o meu caminho. Rosas inebriantes. Altivas. Fetiches e sedução. Voz e ilusão. Personificação. Pedaços de amores largados ao chão, perdidos ladeira acima. 
Antes de entrar para o meu quarto, debaixo de uma infindável cantoria de grilos e sapos, eu voltava o olhar lá para o alto da serrinha, para a vila, para o lugar onde morava a minha felicidade. E ficava pensando nela que jogava vôlei com tanta graça e beleza; que bordava uma excitante arte rubra naquele jeito serelepe de ser e tinha tal encanto aquela arte, que nem as artimanhas do tempo a deliram de minha retina. E, por uns instantes, me deixava compreender porque aquela ladeira, inevitavelmente, se perpetuaria como um caminho de terra vermelho e solitário. 

domingo, 1 de dezembro de 2013

livro - oito

Oséas Silva – Suécia bacana
Loló – Durval
Angelina – Icoaraci
Juliana –amar a subversão
Alê – Aquém do horizonte
Suzana : Casas pernambucanas
Walda : Na beira o amazonas
Fernando : equnócio

Oito leitores já escolheram as crônicas do meu próximo livro. Mas sei que somos bem mais que oito. Vamos lá, só faltam 18. Enviem as sugestões para rsodrexapuri@yahoo.com.br