sábado, 31 de março de 2012

crônica da semana- o homem nu

O homem nu
“Vê-se por inteiro...é passarinho no ovo. Não quer quebrar a casca. Não. Não quer nascer”.
Talvez o autor destes versos nem se lembre deles. Ou se lembre, nem  malde que eu alterei  uma ou outra estrofe. “O homem nu no espelho. Vê-se por inteiro”.
Tomei para mim este poema, que, a bem da verdade lembro só um trechinho, e durante esta semana o reproduzi em pensamentos como se houvesse ser ele, um estribilho subliminar inquietante. Um canto de desassossego.
É que fui provocado, por esses dias, a falar de mim. Mas não falar como faço aqui, com esta minha humilde pretensão literária, mentindo dores que deveras sinto. A provocação me requeria de cara limpa. Verdadeiro.
Aí pegou. De repente me vi sem ter nada pra dizer. Não me senti apto a quebrar a casca. A postar-me frente ao espelho e olhar-me por inteiro. Verbalizar. Articular meu eu na fala, sem combate. Eu gelo.
Por outra, não tencionei fugir da raia, não. A mim me ocorreu, como estratégia de auto-descobrimento, a possibilidade de uma realidade burocrática. Uma descrição de carteira de identidade: Metro e meio. Neguinho do Xapuri. Sangue O-positivo, torcedor do bicola. Pedreirense da baixa. Vergando a Tordesilhas dos quarenta. Sem pai e sem mãe.
O certo é que tenho muito pouquinha coisa de tais ou quetais, de mais ou demais. Surpresa, nenhuma. Diante do espelho, sou mesmo este prontuário de RG. Com um adendo: a barriguinha. A cintura de bolo que nos últimos anos vem me impondo um alto relevo abdominal e me apertando as braguilhas.
Acho que eu daria um trabalhão aos psicólogos caso precisasse de uma terapia. Ia travar. Comer abiu. Ficar num acanhamento só na hora. Eu não iria me ajudar. Psicólogo quer saber de coisas que o espelho não mostra. Para isso tem que sair da casca e nascer. Mas dessas coisas, de certo, não sei falar.
Quando quero nascer, escrevo.
É o que tenho feito aqui na coluna, nesses 6 anos. Mostrando-me por inteiro, além do espelho. (Comecei a escrever para o Magazine em março de 2006 - o caderno chamava-se Cartaz, à época- Olha como o tempo passa, né. Nem eu imaginava que teria pique pra segurar sábado sim, outro também os 3.500 toques que a coluna exige. Eis, então que varei. E desse mesmo jeitinho. Simplesinho, mas limpinho, ajeitadinho. Galgando os diminutivos).
Os analistas, os críticos literários quando falam da crônica, a situam como um gênero bem próximo ao cotidiano, mas ao mesmo tempo ao pegado do coração. A crônica é a vida erguida com pedra e cimento, mas também com fantasia e sentimento. Fiquei com isso pra mim. Tento penetrar no mundo das ilusões, que são mundos feitos de objetos perceptíveis, no entanto, deformados, alterados ao sabor da inspiração (que não raras vezes argumenta-se em um bom destilado) e tornar dele com uma boa nova. Com um escrevinhado sem luxo, “rés-o-chão” (como admitiu o crítico Antônio Cândido), porém, estratosfericamente amigo da vida.
(Os leitores que me acompanham aqui no jornal, sabem como sou molão, manteiga derretida. Entendem que quando cismo de fingir dores, me traio. As sinto deveras, de vera. Sabem que me bato com saudade. E justo neste sábado, mais ainda. Dia 31 de março foi o dia que perdi meu papaizinho. Há tantos anos, meu Deus. Meus leitores sabem que não tenho vergonha de dizer a falta que aquele adorável seringueiro lá do Xapuri faz, até hoje, na minha vida. Têm conhecimento do quanto eu peno que é uma coisa,  com a falta de pai neste sábado).  
“O homem nu no espelho/Vê-se por inteiro/é passarinho no ovo/ Não quer quebrar a casca...”.
Quando quero nascer, escrevo. Nasci hoje de novo.

quarta-feira, 28 de março de 2012

crônica remix-preguinho

Treze de Dezembro


Em 1980, eu era um misto de deslumbrado militante igrejeiro, esforçado estudante secundarista e temido centro-avante do glorioso Internacional da Mauriti. Era engajado nas lutas, tateava aqui e ali no Movimento Estudantil, encarava as passeatas, mas sabia que quando o pau comia, não tinha pra ninguém. Era pernas-pra-que-te-quero.
Eis que numa dessas, a estudantada tava na ira, com todo gás, numa manifestação em favor da meia-passagem, na frente da casa do Governador, na José Malcher (antiga Independência). Negocia pra cá, negocia pra lá (muita gente do alto clero da política atual estava ali, naquela noite, afinando a retórica nas confabulações com os policiais), mas não teve acordo e a coisa desandou quando alguém acertou uma pedra na vidraça de um audacioso (ora quem!) Jurunas Conceição que procurava furar o bloqueio a todo custo. Pra quê... Era Pastor Alemão na cola de estudante, soldado de cacetete em riste, cavaleiros atropelando os contendores. Naquela hora, o vigor estudantil transfigurou-se numa vuca atarantada a dissolver-se pelos escaninhos de São Braz.
Desgraçadamente, por aqueles dias, eu havia usado um artifício para segurar o salto do sapato que eu tinha comprado na Hermes e que já estava meio baqueado. Um reparo tão ordinário que resultou num preguinho persistente a me furar o calcanhar. Estávamos, porém, íntimos eu e este preguinho e ele, no ir e vir da Escola, não me incomodava. Mas na hora em que tive que correr da cavalaria foi-que-foi. O preguinho ganhou energia, penetrou mais fundo que o de costume e aí o meu calcanhar começou a doer.
E o cavalo pocotó, pocotó atrás de mim, pela 14 de Abril, e a dor a me consumir, e eu com mais de mil beirando o meio-fio, e os meus sonhos de liberdade, e a sociedade igualitária e o mundo novo indo pras cucuias por causa daquele maldito preguinho infiltrado a me trairar, a me lançar aos braços da repressão.
Livrei-me dos homi. Varei na Gentil sem ninguém a me encher o saco, peguei um ônibus e fui para casa são, mas nem tão salvo. Assombra-me, ainda hoje, a lembrança de um preguinho a empastelar a minha Revolução .
No início dos anos 80 a sociedade brasileira acompanhava, apreensiva, os estertores de um governo militar que fora potencializado pelo AI-5.
Em 80, o Lula já havia feito as suas traquinagens lá pelo ABC e setores democráticos da política nacional mobilizavam-se por uma Anistia Ampla, Geral e Irrestrita.
Mas a realidade forçava os movimentos populares a se equilibrarem na corda bamba da Abertura Segura, Lenta e Gradual.
Em 1980 eu achava que podia consertar sapatos.



Olha, mano,
já faz uns bons dias que a minha amiga irmã Vera Paoloni
me manda as tuas crônicas pelo gmail...
e eu fico sempre encantada e digo pra ela: lindo isso... dá emoção... o cara é bom...
(não que eu saiba fazer uma leitura, digamos, técnica, mas é que sempre me toca o coração...) Mas diante deste texto que lembra aquela passeata na José Malcher, olha, mano, agora eu tenho que dizer: muito grata!
Aqueles foram momentos inesquecíveis na minha vida...
eu tava lá, naquela noite e em outras mais...
eu tava na direção do DCE/UFPA, na direção daquele movimento,
na direção daquela passeata... e lembro bem que era das que
tiravam as pessoas dos ônibus antes de apedrejarmos...
tinha que ter autoridade pra se fazer respeitar pelos motoristas,
cobradores e pelos passageiros, apavorados...
lembro de uma senhora com uma criancinha no colo...
ela tremia de medo... abracei a ela e a criança e as tirei quase carregadas...
nós tínhamos aquele pingo de poder naquela hora...
a cidade toda parava pra saber dos quebras da estudantada...
(outro dia minha mãe comentava comigo o pavor que ela sentia
em saber que eu estava ali...) e o melhor: abalávamos os poderosos
capitalistas do sistema de transportes municipal...
os famigerados empresários de ônibus...
era muito revolucionário!
Hoje vejo que loucuras fomos capazes de fazer...
mas quando ando de ônibus e olho estas catracas eletrônicas
me pergunto se o avanço das tecnologias por si só teria garantido
a conquista da meia-passagem, sem que tivéssemos ido pra rua...
é claro que a meia-passagem era nosso grande trunfo,
mas o que queríamos mesmo era abalar... mostrar força...
criar fato... fazer a diferença... eram tempos de uma esquerda juvenil...
cheia de crenças e sonhos...
É... aquilo passou, a esquerda passou, o tempo passou...
Até aquele barzinho de canto em S. Braz,
por trás da Almirante Barroso, que nem me lembro mais o nome,
fechou... era lá que tudo acabava, depois que os cavalos iam embora...
era lá que a gente ria, tomava umas cervejas 
e comentava os detalhes super heróicos da façanha do dia
e ainda começava a combinar o próximo quebra-quebra...

e saber que tudo passa... é passado...
Mas, Sodré, muito obrigada por recontar esta história
de forma tão engraçada e por me fazer pensar
que eu nunca poderia imaginar que em meio
aquela confusão toda havia um garoto correndo
com um preguinho no pé...
a ti, toda minha solidariedade, com décadas de atraso...
feito Drumond e Cecília Meireles (pavulagem minha... eh...)

terça-feira, 27 de março de 2012

crônica remix-emilinha

Uma homenagem às mulheres neste mês dedicado a elas. Por enquanto, mãe, esposa, filha, parentes próximas e professora de matemática, não vale, fique claro. Outras mulheres. Aquelas que passaram pelas nossas vidas um dia e deixaram uma marquinha (ou que passam ainda, agora, nos encantando, nos surpreendendo).
As que passaram:
A minha, sempre presente, professora Lurdes. É batata! Quando dou de escrever reminiscências de estudante, lá s’está ela a me inspirar lembranças. E olha que ela data de tanto tempo, mas tanto tempo (foi minha professora de aula particular lá pelos idos da década de 70 do século passado) que pelo comum era para tê-la apagado da memória. Mas quite, ela está sempre a me enriquecer os causos.
Outras professoras: Maria de Jesus Miranda, minha professora do primário, na Aparecida (que funciona na igreja de N. Sra. Aparecida, Pedreira) e que deixou em mim a primeira impressão sobre um estilo: usava uns modelitos prafrentex. Era uma bela d’uma mulher e esbanjava charme com aqueles shorts-saia psicodélicos (confesso: aquilo que sentia quando atinava para a minha professora era o afloramento da libido, o que é comum, dizem os especialistas. Foi a minha primeira paixão por professora, outras viriam a seguir); professora Ana Lúcia, lá pela quinta, sexta série. Marcou por ser bem novinha (uma novidade para um tempo em que as professoras eram bem maduras), de cabelos escorridos, voz definitivamente devastadora quando pronunciava 'locução verbal' com uma certa arrogância. Quando dizia, a plenos pulmões, que tais palavras formavam uma 'locução verbal', não tinha pra ninguém; e a professora Laura Nobre de Souza, que não conheci. Não deu aula pra mim. Tomei emprestada para as minhas memórias, do meu compadre, que, tanto que falou dela pra mim, que ela acabou ganhando o meu coração, atiçando o meu fascínio.
Outras mulheres passaram e acabaram se transformando em ídolos insubstituíveis. Foi o caso da luzidia Emilinha Borba.
Na década de 1940, absoluta, com Marlene, a queridinha do Brasil das marchinhas dos bons carnavais ('tomara que chova três dias sem parar'). Desbravou o cinema ao lado de Oscarito e Grande Otelo e apareceu para mim assim, nos filmes da vesperal na TV Marajoara, canal 2. À época, minha avó revivia, na TV, o glamour da fase áurea do rádio e minha mãe me revelava Emilinha cantando 10 anos: 'Assim, se passaram dez anos...Sem beijar teus lábios assim...Foi tão grande a pena que sentiu minha alma/ ao recordar que tu foste meu primeiro amor'.
Era quase da família, por causa da empatia. Minha avó dizia: 'Vigi, eu era menina e a Emilinha já cantava'. Parecia uma vizinha que por um motivo ou outro insistia em se manter jovem. A eternidade vibrando na nossa casa. E hoje eu dedilho '10 anos' pros meus meninos inspirado por minha mãe, minha avó, e digo 'vigi, eu era menino, e a Emilinha já cantava'.
Os filmes da Atlântida sumiram da TV, o estúdio da Vera Cruz pegou fogo, a TV Marajoara canal 2 fechou, o cinema nacional se perdeu - e demorou um tantão pra se reencontrar - e eu me afirmei como fã incondicional de Emilinha Borba.
No dia 3 de outubro de 2005 passei uma mensagem ao meu compadre: 'perdemos Emilinha!'.
Por isso a homenagem àquelas que nos moldaram a personalidade ou que, na lida diária, nos enriqueceram um tantinho aqui, outro ali. Àquelas que no dia-a-dia nos encantam e seduzem: minha mulher, minha filha, amigas queridas, parentes próximas que brilham soberanas sobre qualquer coisa (e sim, a ela, a professora de matemática, pois que para mim o domínio de tão elaborada arte, a dos números, é, no mínimo, sinal inconteste da divindade que a mulher carrega em si).
E a Emilinha, a eterna.


sexta-feira, 23 de março de 2012

crônica da semana-dark side

O outro lado


Já me perguntei onde é o horizonte. Por que de maio a dezembro chove menos do que de janeiro a abril; por que não faz frio em Belém; Por que o Nazismo ascendeu na Alemanha; por que Getúlio suicidou-se; por que se fala mais da Antártica do que no Ártico; por que não sou rico; por que o céu é azul, o mar é azul, o leão é azul; por que os pequenos ouvem música no celular sem fone de ouvido; por que se mata, por que se morre, por que se vive... 

Uma coisa que aprendi, e que tenho pra mim como ganho na vida, é esta impulsão a perguntar. Esforço-me para que as coisas não se acomodem na indecisão, não vagueiem na escuridão, não permeiem o absoluto cego. Como dizia meu professor Werner Truckenbrodt,. mais importante que o fato, é o processo. É a busca pelo encadeamento de causas, Isso é fascinante. 
Vivo fuçando, querendo aprender, querendo me convencer da ordem das coisas, dos feitios e dos nexos. 
Considero importante a apreensão coerente de traços da realidade porque nos protegemos do ilusionismo, da enganação. Nos amparamos em informações científicas, em observações e até mesmo em sensações (por que não), para nos desviarmos dos maus e dos perigos que nos rondam travestidos de crenças, de promessas e de encantos. 
Algumas questões dessas, macros, universais, pra mim descartam o uso de óculos para enxergá-las. Por exemplo, a mim é muito clara a afirmativa de que todos os astros no universo giram em torno de si (e integrados a um sistema também). Pode até ser que um asteroidezinho lá nos cafundós do sistema solar não gire. Seja um bestalhão cósmico que não aproveita a graça do movimento. Mas ele tá errado. Não vou me levantar para apanhar algumas bibliografias que comprovam o movimento do universo. Vamos admitir que sim. A Terra, tenho certeza (e deste movimento nos vem o dia e a noite). A lua gira. Todo o universo gira. Por quê? 
Sempre que há o ensejo e o interlocutor me permite, faço essa pergunta (Argelzinho, meu filho, tadinho, sofre com a minha sabatina). E a faço, não porque sou metidão ou porque quero criar cizânia. Faço porque a acho intrigante. A vejo como uma pergunta chave para esclarecer nossa existência e uma carrada de realidade que presenciamos. E a faço esperando aquela resposta mais pertinente e normalésima: “não sei”. “Sei lá”. “Porque sim”. 
Mas outro dia, recebi uma resposta inesperada. Um amigo negou a dança dos astros e justificou afirmando que a Lua não gira. Baseou-se no fato de a gente ver somente uma face da lua, aqui da Terra. Isso é bronca. E mais ainda, porque a partir desse entendimento ele começou a discorrer sobre uma mítica astrológica baseada nessa patetice da Lua. Definiu personalidades, corroborou previsões (inclusive esta do fim do mundo agora pra 2012), certificou cenários políticos, perfis emocionais, a partir desta certeza de a Lua ser imóvel. Mas olha só como são as coisas. Meu amigo estava inebriado por este discurso. Dominado. Na hora eu dei um sacolejo nele. A Lua gira, amigo. Vemos somente um lado da lua (o outro é o famoso Dark Side of the Moon magnificamente sonorizado pelo Pink Floyd) porque após o período de iluminação plena (lua Cheia), o outro lado, que nos chegaria por causa da rotação da Lua, é eclipsado. O envolvimento total do lado oposto, pela sombra da terra, ocorre na Lua Nova. Tentei convencer o meu amigo do equívoco em que ele estava metido. Alguns dias depois ele me enviou uma mensagem dizendo que eu estava certo. A Lua gira mesmo em torno de si. Mas não me falou se a crença dele, por cauda desse novo jeito de ver a vida, alteraria aquele presságio sobre o fim do mundo. 


terça-feira, 20 de março de 2012

crônica remix- água

Saudade da água
Toda escola tem (antes tinha, não sei hoje) um hino (“nossa escola, Jarbas Passarinho que educa com orgulho e prazer/ vem agora cantar com carinho laraiá, laraiá, laraiá...”). Um clube de futebol tem (embora às vezes constituam mais um preciosismo cromático: “uma listra branca/outra listra azul...”; “atletas azulinos somos nós...”). As nações têm um hino (mesmo que os dizeres sejam abstrações inalcançáveis e o sujeito da oração, irreconhecível: “ouviram do Ipiranga as margens plácidas/de um povo heróico, o brado retumbante”).
Acho que o planeta também deveria ter um hino. Vou lançar aqui, o meu preferido. Proponho a canção “Planeta água” de Guilherme Arantes para representar os sentimentos de nosostros, seres de Gaia.
A música apareceu em 1981, e de lá pra cá arrebatou apaixonados fãs. Não foi a vencedora do Festival Shell daquele ano, ficou em segundo lugar. Mas para mim resiste como imperiosa mensagem ao longo do tempo.
É uma bela canção, meio hino ecológico, meio paixão desbragada; meio idílio árcade, meio contrato racionalista; meio excitação, meio embotamento; meio espera, meio solidão.
Tá bom, estou sendo passional. Tem a coisa do contexto. Tudo bem. Naquele ano, eu assisti àquela final apurpurinada, acompanhado de pessoas brilhantes sem as quais não vivo e nem viverei, como o meu padrinho Altair Rocha, ou o, hoje reverendo, Acir Conceição e com as aulas do Cláudio Barradas fervilhando incessantemente no meu cocuruto e aí, cabe a explicação da sugestão, do convencimento. Pode ser. Mas, talvez, nem tanto. Sei lá.
Naqueles tempos, nos postávamos diante da televisão com uma cartilha draconianamente revolucionária e os festivais funcionavam como válvula de escape. Deveriam traduzir inquietações. Quanto mais conflito, melhor.
Mas o mundo já estava mudando. Outros conceitos, que não entendíamos muito bem, instauravam-se. O próprio Walter Franco, que dois anos antes, agredira a hipocrisia formal e se desnudara em ‘uma dor canalha’, dessa vez, nos surpreendia com a intenção de ‘manter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranquilo”.
‘Planeta água’ dali em diante, me serviu para um tudo. Eu estudava na Escola Técnica. No curso, havia umas cadeiras de Geologia, de Topografia, de Mineralogia. De modos que, para todos os trabalhos de escola a mim requeridos, eu fazia questão de incluir os versos do Guilherme Arantes. Embora a letra da canção atente mais para as influências da água nas nossas vidas, não escapa de ser um traçado evolutivo, de sobrevivência, incorporando indiretamente, todos os elementos da formação e manutenção dos sistemas que fazem a Terra girar sem parar.
Na época, o que chamava a atenção também, além dos versos compenetrados, era aquela melodia. Algo de dramático havia no arranjo musical. Acho que o Guilherme Arantes teve um insight, uma iluminação naqueles dias e anteviu as dificuldades que teríamos em tratar com o precioso líquido. Daí, a melodia ser um tanto triste  e ter um quê de saudade, de nostalgia, de vontade de estar perto.
Em Belém, a água das torneiras contradiz a formalidade conceitual: tem cheiro (algo parecido com cocô de galinha), tem gosto (indegustável, por sinal) e tem cor (amarelo-vergonha). E, ainda por cima, nos falta. Inconformidades que nos alertam para o tom dramático dos riscos que envolvem nosso planeta (que tem 2/3 da superfície ocupados por água).
Baixei um vídeo com “Planeta água”, depois daqueles dois dias de aridez em Belém. Todo dia assisto a um pedacinho para me purgar e para me inspirar um jeito que dê jeito neste mundo de contradições e saudades singularmente absurdas.

sexta-feira, 16 de março de 2012

crônica da semana - quem duvida

Quem duvida...

Eu pegava no braço dela. Ia avançando as mãos. Um pouco mais em cima. Explorava a pele com a ponta dos dedos. Topava uma covinha aqui, uma dobrinha ali. A pequena voando. Sem entender aquele fuçado. Até que dava um chega pra lá. Com um sorrisinho de reprovação perguntava o que significava aquilo. Eu respondia que não era nada. Gosto de pegar em braços macios, só isso. 
Mentira minha. Procurava, até aonde a nossa amizade permitia, e nas partes a mim concedidas ao tato, uma casquinha de ferida. Precisava encontrar um arranhãozinho, um golpinho cicatrizado, uma queimadura sarada, no corpo da menina, que eu pudesse sacar. Um nodulozinho coagulado que eu pudesse destacar uma lasquinha. Era uma missão, a mim delegada por um grande amigo que morria de amores por esta minha vizinha e colega da Escola Técnica. 
Quem duvida perde a vida, come casca de ferida. 
Ocorre que o meu amigo tava muito a fim da ‘guel’ como ele carinhosamente a tratava. Mas o clima não rolava. Tentara de tudo. Quer dizer, o tudo dele compreendia duas opções manjadas. Uma era convidar a pretendente para um domingo entregue às belezuras de Outeiro. A opção da praia não animou a moça.
A outra, era uma alternativa gastronômica. Tentou conquistar a menina pela boca e a convidou para uma pizza com guaraná, no China da Pedreira. A garota dispensou o programa dizendo que o point era contramão. Ela morava em Canudos, já na fronteira com a Terra Firme. A verdade é que a jovem não tinha um isso assim de interesse pelo meu amigo. Na escola, ela o evitava. Quando a galera se reunia para um violãozinho, embaixo do pé de buriti, ela passava o braço pela cintura de um felizardo, fazia caras e bocas cantando “olha a lua mansa a se derramar...me leva amor” e quando chegava na parte “quero ser seu par”, dava um selinho no acompanhante da hora. Só pra fazer o mal. Ele pirava com a mina. Surtava com aquela provocação. Mas ficava na dele. Curtia a desdita com a dramaticidade latente e o espírito romântico que o caso exigia. Morria por dentro. 
Um dia chegou com uma presepada. Eu, que era vizinho, deveria conseguir uma peça íntima dela. Era fácil. Era só atravessar a cerca e me oferecer para tirar a roupa do varal na hora da chuva. Ninguém recusa uma ajuda dessas. Ainda mais na hora do almoço. E lá fui eu. Consegui uma meia “Dancin’Days” igualzinha a que a Lídia Brondi usava na novela. Perguntei o que ele ia fazer. Limitou-se a dizer que, por amor, ele faria tudo (havia rumores que ali pra’s matas do agronômico havia uma mulher que ajeitava as coisas em tudo em quanto. Meu amigo mesmo já tinha me falado que fizera umas consultas por lá. Era certo que ele estava aprontando). 
Fosse que fosse a desobriga, falhou. O efeito foi contrário. A bela acabou se apaixonando por outro e vivia de flozô pelos escurinhos da Estrela. Meu amigo se abalou de novo pras bandas do agronômico. 
Saímos de férias. A ‘guel’ pegou o ‘Fé em Deus IV’ e passou julho inteirinho com o namorado em Óbidos (o tal Eduardo que tocava violão sob o miritizeiro e que, por causa da novela, reivindicava ser chamado de Eduardo Days). 
Quando retornamos, meu amigo voltou animado. Contou que dessa vez, ia dar certo. A Dona disse que se uma peça íntima não resolve, o jeito é apelar para a essência, mesmo que caraquenta. Daí a busca pela casca de ferida. 
Quem duvida perde a vida. Come casca de ferida. Não consegui a encomenda. Meu amigo formou-se em Edificações e nunca mais o vi. Soube dia desses, que minha vizinha, que nunca arriscou ir pra escola com um raladinho sequer no braço, casou com ele. E dizque, vivem felizes. 

quinta-feira, 15 de março de 2012

Crônica remix- zelda

No tempo da Zelda Scott
Nos tempos da Zelda Scott os aviões davam vôos rasantes sobre a grande baía afogando Ludugeros, risos e gaiatices. As meninas nasciam Ludmilas e lindas. As revistas eram as da Luluzinha. E os sambas tratavam de coisas doces e simples como a luz do sol ou as flores vermelhas.
Bons tempos os da Zelda. Os sonhos eram permeados de futuro. A realidade era recheada de passado e carros pretos e fortes. Os homens maus andavam de óculos escuros e eram lobos bobos perdidos no presente esperançoso das horas.
Tempos idos aqueles. O poder tinha a cara de velhos marinheiros e ninguém tinha medo. Nas ruas trafegavam carroças medievais rebocando corpos mártires e felizes. As águas do mar avançavam sobre a praia num evento holocênico e fértil. Os arrabaldes eram iluminados e solitários de amores. E os amores emanavam da penumbra sensual.
Nos tempos da Zelda as imagens eram meras idéias e as idéias eram quase nada na frente da TV. Aí a gente sofria um tanto. Por esses dias não existiam ainda os super-homens e a gente só tinha vizinhos e amigos legais e clandestinos; namoradas donzelas, recatadas e empoadas; mães tradicionais e jovens; pais introspectivos e infelizes desconhecidos. Irmãos abandonados e pálidos e um país verde e amarelo independente, doente, dolente, demente, vivendo da sorte meu povo feliz.
Bons tempos os da Zelda. A gente olhava mas não via e a vida corria nas veias pulsante, severina, vermelha de cabeça grande e corroída, nordestina, salvadora. Sem rir, sem falar, com as mãos ou sem elas. Ser ou não ser. Serececê. Eu por cima. Eu por baixo, nos tempos idos da Zelda Scott.
Naqueles tempos andava por aí um homem distribuindo bombons para as crianças das ruas. Fazia milagres o homem: multiplicava as guloseimas. Era bem visto aos olhos de Deus, o homem. O brilho nos olhos das crianças era faiscante, convincente. Mas ninguém percebia o bem na face do bom homem. Pedras, paus, gritos, pavor. O homem no chão, no céu, perdido no universo imenso. Por aí, vagando e sorrindo largo.
Nos tempos de Zelda Scott os meus olhos não marejavam com tamanho volume ou com tal freqüência como hoje. Os aviões ainda nos trazem desilusões, os homens são maus, ainda; o super-homem já era e ninguém distribui a doce vida às criancinhas. O que dirá, lá de longe, a sorridente Zelda Scott?  
(Em dezembro, a Globo exibiu Aline, uma comédia inspirada na personagem do cartunista Adão Iturrusgarai. O enredo trazia uma menina moderninha que dividia o coração entre dois namorados e por causa disso - e de outras e simpáticas cositas más- a mim, o programa, lembrou o espírito da juventude oitentista expresso na série Armação Ilimitada.
A série arrasou nos anos oitenta. Trazia o humor e a irreverência, valores que se sobrepunham decididos, às rabugices herdadas dos anos de governo militar. Inaugurava uma linguagem nova na televisão brasileira, com seqüências rápidas e inusitadas, mas descomplicadas, fáceis de entender; apresentava recortes de cenas harmonizados por uma sintaxe colorida, espontânea, liberta; sonorizados, sem temores, pelos ecos da luxúria urbana.
Ação e movimento nas lidas de Lula & Juba, Bacana, Ronalda, d’o Chefe e de uma impensada apresentadora vinda do clã dos Gil, temperavam os episódios. Toda a turma guiada pelas mãos mágicas do diretor Guel Arraes (depois dele, só o gaúcho Jorge Furtado de “O homem que copiava” e “Ilha das flores”, no cinema, se arvoraria a traçados tão acrobáticos com as imagens). E tinha a Zelda, que tinha dois namorados, que tinha um chefe completamente bilé e que esperançava sempre, bons tempos...). 

quarta-feira, 14 de março de 2012

Salve 14 de março

Para a vida ser repleta
de sonhos e poesia,
seja o "Dia do Poeta",
em verdade, todo dia!

O Poeta é o sal da terra
e seu canto pertinaz
é fonte de amor que encerra
promessas de amor e paz!

Canta, Poeta! Teu canto,
alvissareiro e fecundo,
é uma canção de acalanto
ninando as mágoas do mundo!!!

(Antônio Juraci Siqueira)

segunda-feira, 12 de março de 2012

crônica remix- equinócio

Mar e Lua
Quem passou pelo Ver-o-Peso, agora por esses dias, viu. A maré tava têi-têi. Tava em tempo de entornar para a Boulevard.
Era a força da lua Cheia animando as águas da Guajará. Uma força que vai se repetir, ainda no meio do mês, na lua Nova, quando de tão alvoroçada, a maré vai reinar em subir as margens aterradas do Piry.
Mas acho que o Veropa não vai alagar neste mês, não. Agora em fevereiro, a maré vai ficar na biqueira, mas não vai molhar a canela de quem charla pelos sortidos armarinhos da beira. Para o mês é que é...
Em março, a maré vem alta. A lua Nova, que ocorre no dia 18, vem trazendo a exuberante maré de Equinócio. Por esses dias de março, pode arregaçar a barra da calça, que a água vai a meio metro até nos melhores magazines da João Alfredo. Se estiver chovendo, então...
Quem tiver tempo e desejar grandes emoções pode até ir se agendando que é nessa época, também, que a pororoca ruge pelas reentrâncias amazônicas.
É claro que para estar fazendo esta prosa, tô aqui pegado nas consultas. Esclareço, então, que Equinócio é o momento do ano em que o Sol passa de um hemisfério para o outro. Agora, o sol caminha para o norte e vai deixando, aqui para as plagas do sul, as portas abertas para o inverno (que não quer dizer, exatamente, esta nossa chuvinha diária, não).
Durante esta passagem há um dia em que o sol cruza o equador. Nessa data, o dia tem a mesma duração que a noite. É o Equinócio.
O mesmo ocorre em setembro, quando o sol se abala de volta para o hemisfério sul, trazendo o colorido das flores.
Ocorre, também, que nessa passagem, de baixo pra cima, como agora ou de cima pra baixo, como em setembro, o sol se apruma com a lua aumentando a atração sobre as massas de água. Daí a maré cresce. É como se a Guajará quisesse saltar para fora da Terra, é como se a baía ficasse na ira de dar um passeiozinho por além do nosso cocuruto.
Tô falando sobre a maré, porque sou cliente dela. Me arvoro diariamente sobre os caminhos de água que envolvem Belém. Sou caboclo da beira. Programo a vida a partir da maré.
Por esses dias, percebi o nível da maré bem acima do normal. Corri, então, para o meu material de pesquisa.
Busquei me convencer de que a água grande deste mês é um evento natural. Deve-se a aproximação do Equinócio e das marés altas produzidas por este evento.
E de aqui por diante, vai ser assim. Dou uma observada ao redor e logo corro atrás de verificar o grau de normalidade...
Eu, heim! Depois que os cientistas anunciaram os efeitos do Aquecimento Global, tô de olho.
  

sexta-feira, 9 de março de 2012

crônica da semana- mãos dadas

Mãos dadas
Bem que tentamos. Fizemos a combina. Um domingo na praça juntos. Almoço ali por perto. Encontro com os amigos. Fotos in family para o ‘feice’. Uma pizza gigante não estava descartada. Atrativos. Tentações. Mas quite! Os meninos nem thum pra gente. Declinaram do convite. O pequeno valorizou um almoço previamente agendado. A menina ia acordar tarde e tinha umas coisinhas inadiáveis para resolver (não sei exatamente o que). Programações acertadas, pendências urgentes, Filminhos imperdíveis na TV e até trabalhinhos de escola (ora, veja). Os filhos lançam mão de um arsenal de justificativas para não sair mais com a gente (e mais tarde, numa conversa com meu compadre Quelemém, confidenciei a ele a minha inquietação com o desdém dos pequenos. Meu compadre me acalmou. Fez-me lembrar que quando da idade deles, também não gostávamos mais de sair com nossos pais. É a fase. Das descobertas. Das experimentações. Da ratificação do espírito responsável. Dos exercícios de livre arbítrio. Estão na era de escolhas das -melhores- amizades. Mergulham em outros interesses. Em prazeres diversos. Impulsos adolescentes, coisas e loisas de quem está com os hormônios por acolá. Acontece com meu compadre igualzinho. Que nem que nem). 
Tenho que reconhecer isso. É o fenômeno da desatracação. Estamos nos desatarraxando. Meu compadre Quelemém, há muito tempo, rotulou este estado de coisas de “uma distância perto”. Os meninos saem debaixo das asas, mas deixam o cheiro, o dengo, o chamego, no ninho.
Se por um lado a debandada dos nossos bebês nos deixou um isso de vazio. Por outro, nos vimos a sós. De uma forma sutil, a folga nos colocou como há muito não. Objetivamente, nos posicionou desimpedidos para o domingão. Oba! Sem encheção de saco de menino. Sem ‘pai, quero isso’; ‘mãe, quero aquilo’ e principalmente, apartados daquela cantilena cáustica ‘borimbora pra casa’.
Alforriados por esta lei do ventre livre às avessas, eu e minha Edninha aproveitamos. Nos aprumamos e nos divertimos a valer, guiados por um roteiro que dominamos (passeio de mãos dadas, roda de viola, fugidas inesperadas para ir bem ali, olhares cúmplices, beijos públicos, carícias clandestinas, carinhos permitidos, charminhos e declarações, prazer no encontro, encanto no tato, afagos febris, juras e confissões). E o que mais pudemos recuperar de alguns anos submetidos a ausências (amizades partilhadas, copo de cerveja partilhado, cachorro-quente na esquina, ursinho de pelúcia com gravatinha de presente na feirinha de artesanato, um poema ao vento, anel de noivado de tucum, bar do parque, chuva fina).
Cantarolamos juntos, uma canção para ensejar essa nossa nova fase de namorados: “Você é tudo e muito mais/o que sou capaz/é muito pouco eu sei/você faz tudo muito bem...Então faça de mim o seu bem-me-quer”. Versos simples que são o jeito, a tez, o tom e o modo da minha pequena, desde antes.
O dia colaborou. Teve jazz na praça com as feras de Belém e nobilíssimas participações internacionais. Nublou mas não choveu e quando o sol deu uma saidinha mais poderosa, a mangueira amiga amainou o calor.
De tardezinha, descemos para apreciar o pôr do sol. Escolhemos uma mesa escondida, mas os passarinhos nos descobriram à beira da baía do Guajará (olhares cúmplices...). Tomamos sorvete de bacuri.
A noite foi chegando, os meninos, enjoados do dia free, começaram a ligar Reclamaram presença. Pediram que levássemos alguma coisa gostosa pra comer. Anunciou-se o cheiro das crias. A lua crescente no céu. Tornamos ao lar. Cerimoniosos. De mãos dadas.

quinta-feira, 8 de março de 2012

crônica remix- amazonas

Na beira do Amazonas
O Amazonas é o maior rio do mundo. Em tudo. Em volume d’água (a vazão média, considerando a contribuição alternada dos afluentes, é de 200 mil metros cúbicos por segundo); em extensão (a última medição, utilizando a mais avançada tecnologia, levou a nascente do Amazonas até os paredões do nevado de Mismi, no Peru,   tecendo assim, uma tirazinha de lonjura a mais que o dadivoso Nilo); É grande também em encantos, descobertas, alegrias. Decisões.
Em Macapá, o rio Amazonas é majestoso. Desenha ao norte um braço que acaricia, pacifica, afaga os dias e as noites da Fazendinha, mas que também se agita em marés irrequietas e implacáveis lançantes.
Foi num final de tarde. De vento forte, ondas indomáveis, areinha saltitando aos olhos...sol se pondo lá longe...às margens mágicas do Amazonas, foi:
Os olhos da minha companheira algo oblíquos, como os de Capitu, fitavam um ponto no horizonte, ali pros lados doirados donde se punha o sol. Era um olhar distante e ao mesmo tempo perto. Um olhar que se perdia, ao léu, que se perguntava, que mergulhava nas profundezas da dúvida. Mas, logo se achava em certezas, se encontrava em futuros e me iluminava com aquela cintilação âmbar, com aquele fulgor rigoroso e comovente. Naquela tarde, tecíamos os delicados fios da nossa história.  Ponderações foram exercitadas. Estávamos no calor da juventude, cheios de desejos, ávidos por liberdade, apressados e irresolutos. Animados com uma fita K7 que tínhamos da Janis Joplin e que curtíamos, insanamente, entre quatro paredes; satisfeitos com a norma diária de não formalizar contas a ninguém e seguros de nos termos intensamente um ao outro.
Mas tínhamos a história, a tecer. Eu era ‘amamãezado’. E isso era um problema. Tinha um chamego com minha mãe. Era um grude, uma devoção. Minha companheira sabia que o compromisso assumido, provado e apregoado, iria impactar diretamente nesta relação, como de fato, ocorreu: minha mãe ficou enciumada que só ela.
Outros fatos nos aperreavam a alma. A idéia de constituir família, a formação de um lar, a lida diária para prover o sustento. Estes detalhes eram coisas longínquas para nós que, à época, éramos felizes com uma rede e um toca-disco, bens computados, exclusivamente, como as nossas mais estimadas posses. As coisas teriam que mudar.
Havia, porém, decisão naquele olhar que vagava mapeando os contornos do horizonte e desafiava o mosaico prateado do arrebol. Quando volvia a mim aquele olhar, depois de uma viagem por aquele lugar incerto onde o céu engole o rio-mar; quando minha companheira voltava para mim, aqueles olhos cor de mel, ela inundava meu coração com uma mensagem de carinho (e este doce olhar me vale até hoje, mais do que a pedra mais aquilatada que se possa lapidar).
Nosso primeiro filho começou a nascer naquele dia. A revolução das águas, a mística do meio do mundo, os grãozinhos de areia irritando os olhos e fazendo minha companheira chorar (pelo menos foi esta explicação que ela deu para as lágrimas que, aqui e ali, lhe caíam à face). Naquele tempo, não se usava dizer “discutir a relação”, de qualquer forma, estávamos às margens do extraordinário rio Amazonas, decidindo a nossa vida. Teríamos um bebê, nos apresentaríamos de fato e de direito à sociedade, contornaríamos uma ou outra cena de ciúme da mamãe, criaríamos vergonha e começaríamos a comprar umas coisinhas para o nosso lar. Isso foi há 18 anos.
(Neste 8 de março). Pensei num presente. Resolvi dar (à minha companheira), a lembrança daquela tarde maravilhosa.
O Amazonas é o maior rio do mundo. Em tudo.

segunda-feira, 5 de março de 2012

crônica remix- Elenira

Elenira
Elenira trabalha no centro. Há anos suporta o gênio azedo do português proprietário da padaria. Já se acostumou com ele. Às vezes estoura a paciência com tanta encheção de saco do galego e acaba afogando suas mágoas num cantinho qualquer perto dos grandes fornos entre fôrmas e massas disformes e úmidas.  
Esta, porém, não é a regra. Na maioria das vezes, resigna-se por ali mesmo. Engole o choro e continua a aviar pedidos, a passar troco, a emitir tíquetes fiscais e a ouvir sua AM preferida.
Não aceita Vale Refeição: ordem do dono.
Apega-se sem pudores a um comportamento lívido, líquido, leso...serenamente louco.
Mora nos arrabaldes mal iluminados e violentos durante a madrugada. Evita sair à noite. Teme a luz artificial e os movimentos mórbidos de notívagos.
Não é religiosa. Mas anda a procura de um Deus.
Acha atraente o discurso caloroso, convicto, apaixonado de determinadas igrejas. Quer um Deus. No entanto, abandona as possibilidades de conversão quando começa a novela das oito. É fã de Tarcísio e Glória.
Quer um Deus e não crê nos homens.
Casou tarde, com um guarda de segurança gordo, comilão. Divorciado. Casou só no civil. Não queria perder o próximo capítulo da novela e nem o padre aceitou celebrar o casamento de um divorciado.
Não faz mal, Não espera tanta coisa na vida. Quis um Deus, casou-se.
Ao fim do dia, após o capítulo inédito, senta-se à beira da cama e abandona os chinelos (com pinos magnetizados, última salvação para um velho problema de coluna) sobre o tapete de retalhos coloridos, tecido por ela mesma. Volta-se para o marido sonolento e o convida para o amor. Ele aceita numa complacência caduca. É o seu. Impassível, preguiçoso, mas só seu.
Elenira é uma pessoa recatada. Não se expõe. Além dos parentes próximos, poucos participam do seu mundo: uns vizinhos, uma comadre e, por forças das circunstâncias, o português. Não se enleva. Às vezes parece ser sombria, sóbria demais. O seu mundo parece estar reduzido às percepções mais primárias. É mulher e gosta de amar. Faz amor – diz sempre assim “fazer amor” – todos os dias com o marido à beira da degenerescência. A sua austeridade não compreende nenhum dia sem ele.
Abandona os recatos quando o momento é de amor. Não faz sexo. Acha o termo pecaminoso, ruidoso. A vida não se resume a sexo. Não gosta de sexo nem das derivações. Detesta a palavra.
Fazer amor. Amar, amor, gosta assim. Amar, amor. E morre de felicidade todas as noites sob um teto sem luz.
Tem todos os discos do Roberto Carlos, mas gosta mais daquelas músicas de antes. No Natal, junta-se à família e faz a festa ao som do novo lançamento do rei. É um instante em que ela se mostra mais. Natal. Toma vinho branco e dança com os sobrinhos pequenos. Não tem filhos. Para quê? Por que tê-los?
O Natal é o dia em que ela se permite sair à noite e ficar até tarde na rua. Assume o clima de festa, controla o medo e tolera a hipocrisia natalina.
...Elenira, a outra, morre crivada de balas às margens de um igarapé amazônico. A lenda diz que foi partida ao meio por uma rajada de metralhadora após derrubar o adversário com um certeiro tiro na testa. Elenira, a outra, é estrela que ilumina as noites esperançosas e sedentas de justiça. Elenira, a outra, não teve tempo de receber os nossos galanteios e nem de amar. Amar, amor.
Elenira, a outra, gosta também. Amar, amor. Eleniras são mulheres, são mães, são filhas e irmãs delicadas. Amam e ouvem a música do ‘Reiberto’.
Eleniras morrem na luta...Mas não se conhecem.

sexta-feira, 2 de março de 2012

crônica da semana- feriadão

Ora, quem diria!
Depois, depois! Depois vão dizer que Coalhada é isso, que Coalhada é aquilo...
Mas v’umbora ver se não é pra tirar do sério.
Quatro dias em Algodoal só contemplando. Tudo na maior tranquilidade, na mais perfeita quietação de espírito.
Agora na hora de pegar o beco...
Éramos seis. Pra suportar essa galera, só um carrão. Embarcamos, então, na primeira van da quarta-feira de cinzas. Foi a conta. Toda a paz do feriadão, a partir daquele instante, perigou escorrer pelo asfalto. Logo de prima, tivemos que nos bater (literalmente) com o acervo de carapanãs do veículo. Um mundaréu de mosquitos. Foi uma luta. O sofrimento só acabou quando estávamos adiante de Marapanim, já com o sol alto.
Quando pensamos em dar um soninho, foi que reparamos no condutor. Sem querer maldar. A primeira coisa que chamou a atenção foi a envergadura do cidadão. Nada contra os cheinhos, não fosse o fato d’ele exceder em muito o espaço a ele destinado na singela cadeira de motorista. Nada contra, a não ser o fato do ‘jarrão’, no (já torturante) trajeto entre Marapanim e Belém ter subvertido todas as leis de trânsito e atropelado o bom senso.
Comodidade, só a dele. Minha cunhada, coitada, que havia dedicado a noite anterior a conhecer os segredos do bar do Varela, teve que ficar de olhos bem arregalados voltados para o grandãozão. Quem disse que dormiu. O sonzinho dele não deixou. Até pediu que ele baixasse o volume, mas largou mão porque uma outra preocupação lhe perturbava. O dito Dom Bolinha não usava o cinto de segurança. Aqui, acolá, quando avistava uma barreira, atravessava o cinto, mas quando varava lá adiante, largava o bichinho ao esquecimento. E haja minha cunhada espetar-lhe, mas pela altura do som e pela reação apática aos reclamos, suspeito que além de espaçoso, era surdo. Isso ainda diz pouco do que ele era capaz. Faixa contínua, acostamento, lombadas não eram empecilhos para ultrapassagem.
Eu até que queria dar um soninho também, mas o que gosto mesmo das viagens é a aventura, a surpresa. Investigo tudo, observo. Encontrei na tagarelice de minha filha, Amaranta Maria, a parceira perfeita para uma viagem divertida e cheia de descobertas. Conversamos, inventamos histórias sobre os lugares que passamos, comemos bolacha Maria com suco. A última coisa que eu queria era me estressar. Mas quando ofereci um pouco de suco para a minha cunhada e ela me voltou com um olhar de fogo, percebi a tensão que nos envolvia. O sujeito rodou metade de Castanhal falando ao telefone. Não teve quem o fizesse desligar.
A gota d’água foi quando subiu uma garota na saída de Castanhal e começou uma prosa animada com o fofão (aí percebi que ele não era surdo. Ainda bem. Já pensou se precisasse se comunicar  em Libras?). Nessas alturas do campeonato a van que não poderia levar ninguém em pé, já estava com o corredor apinhado de gente que ele pegou na estrada (outro tilte da minha cunhada). Daí em diante, fiquei inquieto. Estava ali toda a minha família. Minha mulher, meus dois filhos, além de uma sobrinha e minha cunhada. Estávamos nas mãos de um irresponsável robusto que não estava nem aí pra ele (não usava cinto) que dirá pra gente. Faltou pouco para o meu coração satânico, aquele que bate destrambelhado e me transforma o ânimo, revoltar-se.
Contou para a manutenção da paz, a minha fase zen, do amor e da compreensão e, sobretudo, um engarrafamento monstruoso que a gente pegou no trevo de Mosqueiro e que reduziu velocidades, desacelerou corações, sufocou instintos e aplacou emburrações. Ora, quem diria, um engarrafamento do bem!