segunda-feira, 5 de março de 2012

crônica remix- Elenira

Elenira
Elenira trabalha no centro. Há anos suporta o gênio azedo do português proprietário da padaria. Já se acostumou com ele. Às vezes estoura a paciência com tanta encheção de saco do galego e acaba afogando suas mágoas num cantinho qualquer perto dos grandes fornos entre fôrmas e massas disformes e úmidas.  
Esta, porém, não é a regra. Na maioria das vezes, resigna-se por ali mesmo. Engole o choro e continua a aviar pedidos, a passar troco, a emitir tíquetes fiscais e a ouvir sua AM preferida.
Não aceita Vale Refeição: ordem do dono.
Apega-se sem pudores a um comportamento lívido, líquido, leso...serenamente louco.
Mora nos arrabaldes mal iluminados e violentos durante a madrugada. Evita sair à noite. Teme a luz artificial e os movimentos mórbidos de notívagos.
Não é religiosa. Mas anda a procura de um Deus.
Acha atraente o discurso caloroso, convicto, apaixonado de determinadas igrejas. Quer um Deus. No entanto, abandona as possibilidades de conversão quando começa a novela das oito. É fã de Tarcísio e Glória.
Quer um Deus e não crê nos homens.
Casou tarde, com um guarda de segurança gordo, comilão. Divorciado. Casou só no civil. Não queria perder o próximo capítulo da novela e nem o padre aceitou celebrar o casamento de um divorciado.
Não faz mal, Não espera tanta coisa na vida. Quis um Deus, casou-se.
Ao fim do dia, após o capítulo inédito, senta-se à beira da cama e abandona os chinelos (com pinos magnetizados, última salvação para um velho problema de coluna) sobre o tapete de retalhos coloridos, tecido por ela mesma. Volta-se para o marido sonolento e o convida para o amor. Ele aceita numa complacência caduca. É o seu. Impassível, preguiçoso, mas só seu.
Elenira é uma pessoa recatada. Não se expõe. Além dos parentes próximos, poucos participam do seu mundo: uns vizinhos, uma comadre e, por forças das circunstâncias, o português. Não se enleva. Às vezes parece ser sombria, sóbria demais. O seu mundo parece estar reduzido às percepções mais primárias. É mulher e gosta de amar. Faz amor – diz sempre assim “fazer amor” – todos os dias com o marido à beira da degenerescência. A sua austeridade não compreende nenhum dia sem ele.
Abandona os recatos quando o momento é de amor. Não faz sexo. Acha o termo pecaminoso, ruidoso. A vida não se resume a sexo. Não gosta de sexo nem das derivações. Detesta a palavra.
Fazer amor. Amar, amor, gosta assim. Amar, amor. E morre de felicidade todas as noites sob um teto sem luz.
Tem todos os discos do Roberto Carlos, mas gosta mais daquelas músicas de antes. No Natal, junta-se à família e faz a festa ao som do novo lançamento do rei. É um instante em que ela se mostra mais. Natal. Toma vinho branco e dança com os sobrinhos pequenos. Não tem filhos. Para quê? Por que tê-los?
O Natal é o dia em que ela se permite sair à noite e ficar até tarde na rua. Assume o clima de festa, controla o medo e tolera a hipocrisia natalina.
...Elenira, a outra, morre crivada de balas às margens de um igarapé amazônico. A lenda diz que foi partida ao meio por uma rajada de metralhadora após derrubar o adversário com um certeiro tiro na testa. Elenira, a outra, é estrela que ilumina as noites esperançosas e sedentas de justiça. Elenira, a outra, não teve tempo de receber os nossos galanteios e nem de amar. Amar, amor.
Elenira, a outra, gosta também. Amar, amor. Eleniras são mulheres, são mães, são filhas e irmãs delicadas. Amam e ouvem a música do ‘Reiberto’.
Eleniras morrem na luta...Mas não se conhecem.

Nenhum comentário:

Postar um comentário