O homem nu
“Vê-se por inteiro...é passarinho no ovo. Não quer quebrar a casca. Não. Não quer nascer”.
Talvez o autor destes versos nem se lembre deles. Ou se lembre, nem  malde que eu alterei  uma ou outra estrofe. “O homem nu no espelho. Vê-se por inteiro”.
Tomei para mim este poema, que, a bem da verdade lembro só um trechinho, e durante esta semana o reproduzi em pensamentos como se houvesse ser ele, um estribilho subliminar inquietante. Um canto de desassossego.
É que fui provocado, por esses dias, a falar de mim. Mas não falar como faço aqui, com esta minha humilde pretensão literária, mentindo dores que deveras sinto. A provocação me requeria de cara limpa. Verdadeiro.
Aí pegou. De repente me vi sem ter nada pra dizer. Não me senti apto a quebrar a casca. A postar-me frente ao espelho e olhar-me por inteiro. Verbalizar. Articular meu eu na fala, sem combate. Eu gelo.
Por outra, não tencionei fugir da raia, não. A mim me ocorreu, como estratégia de auto-descobrimento, a possibilidade de uma realidade burocrática. Uma descrição de carteira de identidade: Metro e meio. Neguinho do Xapuri. Sangue O-positivo, torcedor do bicola. Pedreirense da baixa. Vergando a Tordesilhas dos quarenta. Sem pai e sem mãe.
O certo é que tenho muito pouquinha coisa de tais ou quetais, de mais ou demais. Surpresa, nenhuma. Diante do espelho, sou mesmo este prontuário de RG. Com um adendo: a barriguinha. A cintura de bolo que nos últimos anos vem me impondo um alto relevo abdominal e me apertando as braguilhas.
Acho que eu daria um trabalhão aos psicólogos caso precisasse de uma terapia. Ia travar. Comer abiu. Ficar num acanhamento só na hora. Eu não iria me ajudar. Psicólogo quer saber de coisas que o espelho não mostra. Para isso tem que sair da casca e nascer. Mas dessas coisas, de certo, não sei falar.
Quando quero nascer, escrevo.
É o que tenho feito aqui na coluna, nesses 6 anos. Mostrando-me por inteiro, além do espelho. (Comecei a escrever para o Magazine em março de 2006 - o caderno chamava-se Cartaz, à época- Olha como o tempo passa, né. Nem eu imaginava que teria pique pra segurar sábado sim, outro também os 3.500 toques que a coluna exige. Eis, então que varei. E desse mesmo jeitinho. Simplesinho, mas limpinho, ajeitadinho. Galgando os diminutivos).
Os analistas, os críticos literários quando falam da crônica, a situam como um gênero bem próximo ao cotidiano, mas ao mesmo tempo ao pegado do coração. A crônica é a vida erguida com pedra e cimento, mas também com fantasia e sentimento. Fiquei com isso pra mim. Tento penetrar no mundo das ilusões, que são mundos feitos de objetos perceptíveis, no entanto, deformados, alterados ao sabor da inspiração (que não raras vezes argumenta-se em um bom destilado) e tornar dele com uma boa nova. Com um escrevinhado sem luxo, “rés-o-chão” (como admitiu o crítico Antônio Cândido), porém, estratosfericamente amigo da vida.
(Os leitores que me acompanham aqui no jornal, sabem como sou molão, manteiga derretida. Entendem que quando cismo de fingir dores, me traio. As sinto deveras, de vera. Sabem que me bato com saudade. E justo neste sábado, mais ainda. Dia 31 de março foi o dia que perdi meu papaizinho. Há tantos anos, meu Deus. Meus leitores sabem que não tenho vergonha de dizer a falta que aquele adorável seringueiro lá do Xapuri faz, até hoje, na minha vida. Têm conhecimento do quanto eu peno que é uma coisa,  com a falta de pai neste sábado).  
“O homem nu no espelho/Vê-se por inteiro/é passarinho no ovo/ Não quer quebrar a casca...”.
Quando quero nascer, escrevo. Nasci hoje de novo.