quarta-feira, 28 de março de 2012

crônica remix-preguinho

Treze de Dezembro


Em 1980, eu era um misto de deslumbrado militante igrejeiro, esforçado estudante secundarista e temido centro-avante do glorioso Internacional da Mauriti. Era engajado nas lutas, tateava aqui e ali no Movimento Estudantil, encarava as passeatas, mas sabia que quando o pau comia, não tinha pra ninguém. Era pernas-pra-que-te-quero.
Eis que numa dessas, a estudantada tava na ira, com todo gás, numa manifestação em favor da meia-passagem, na frente da casa do Governador, na José Malcher (antiga Independência). Negocia pra cá, negocia pra lá (muita gente do alto clero da política atual estava ali, naquela noite, afinando a retórica nas confabulações com os policiais), mas não teve acordo e a coisa desandou quando alguém acertou uma pedra na vidraça de um audacioso (ora quem!) Jurunas Conceição que procurava furar o bloqueio a todo custo. Pra quê... Era Pastor Alemão na cola de estudante, soldado de cacetete em riste, cavaleiros atropelando os contendores. Naquela hora, o vigor estudantil transfigurou-se numa vuca atarantada a dissolver-se pelos escaninhos de São Braz.
Desgraçadamente, por aqueles dias, eu havia usado um artifício para segurar o salto do sapato que eu tinha comprado na Hermes e que já estava meio baqueado. Um reparo tão ordinário que resultou num preguinho persistente a me furar o calcanhar. Estávamos, porém, íntimos eu e este preguinho e ele, no ir e vir da Escola, não me incomodava. Mas na hora em que tive que correr da cavalaria foi-que-foi. O preguinho ganhou energia, penetrou mais fundo que o de costume e aí o meu calcanhar começou a doer.
E o cavalo pocotó, pocotó atrás de mim, pela 14 de Abril, e a dor a me consumir, e eu com mais de mil beirando o meio-fio, e os meus sonhos de liberdade, e a sociedade igualitária e o mundo novo indo pras cucuias por causa daquele maldito preguinho infiltrado a me trairar, a me lançar aos braços da repressão.
Livrei-me dos homi. Varei na Gentil sem ninguém a me encher o saco, peguei um ônibus e fui para casa são, mas nem tão salvo. Assombra-me, ainda hoje, a lembrança de um preguinho a empastelar a minha Revolução .
No início dos anos 80 a sociedade brasileira acompanhava, apreensiva, os estertores de um governo militar que fora potencializado pelo AI-5.
Em 80, o Lula já havia feito as suas traquinagens lá pelo ABC e setores democráticos da política nacional mobilizavam-se por uma Anistia Ampla, Geral e Irrestrita.
Mas a realidade forçava os movimentos populares a se equilibrarem na corda bamba da Abertura Segura, Lenta e Gradual.
Em 1980 eu achava que podia consertar sapatos.



Olha, mano,
já faz uns bons dias que a minha amiga irmã Vera Paoloni
me manda as tuas crônicas pelo gmail...
e eu fico sempre encantada e digo pra ela: lindo isso... dá emoção... o cara é bom...
(não que eu saiba fazer uma leitura, digamos, técnica, mas é que sempre me toca o coração...) Mas diante deste texto que lembra aquela passeata na José Malcher, olha, mano, agora eu tenho que dizer: muito grata!
Aqueles foram momentos inesquecíveis na minha vida...
eu tava lá, naquela noite e em outras mais...
eu tava na direção do DCE/UFPA, na direção daquele movimento,
na direção daquela passeata... e lembro bem que era das que
tiravam as pessoas dos ônibus antes de apedrejarmos...
tinha que ter autoridade pra se fazer respeitar pelos motoristas,
cobradores e pelos passageiros, apavorados...
lembro de uma senhora com uma criancinha no colo...
ela tremia de medo... abracei a ela e a criança e as tirei quase carregadas...
nós tínhamos aquele pingo de poder naquela hora...
a cidade toda parava pra saber dos quebras da estudantada...
(outro dia minha mãe comentava comigo o pavor que ela sentia
em saber que eu estava ali...) e o melhor: abalávamos os poderosos
capitalistas do sistema de transportes municipal...
os famigerados empresários de ônibus...
era muito revolucionário!
Hoje vejo que loucuras fomos capazes de fazer...
mas quando ando de ônibus e olho estas catracas eletrônicas
me pergunto se o avanço das tecnologias por si só teria garantido
a conquista da meia-passagem, sem que tivéssemos ido pra rua...
é claro que a meia-passagem era nosso grande trunfo,
mas o que queríamos mesmo era abalar... mostrar força...
criar fato... fazer a diferença... eram tempos de uma esquerda juvenil...
cheia de crenças e sonhos...
É... aquilo passou, a esquerda passou, o tempo passou...
Até aquele barzinho de canto em S. Braz,
por trás da Almirante Barroso, que nem me lembro mais o nome,
fechou... era lá que tudo acabava, depois que os cavalos iam embora...
era lá que a gente ria, tomava umas cervejas 
e comentava os detalhes super heróicos da façanha do dia
e ainda começava a combinar o próximo quebra-quebra...

e saber que tudo passa... é passado...
Mas, Sodré, muito obrigada por recontar esta história
de forma tão engraçada e por me fazer pensar
que eu nunca poderia imaginar que em meio
aquela confusão toda havia um garoto correndo
com um preguinho no pé...
a ti, toda minha solidariedade, com décadas de atraso...
feito Drumond e Cecília Meireles (pavulagem minha... eh...)

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