sábado, 30 de novembro de 2013

crônica da semana - Belém - Brasília

Belém-Brasília


O camarada errou por muito. Fico imaginando naquela secura do cerrado brasileiro, o topógrafo tentando achar a mira para dar o rumo. Um sol espetacular. A vista atrapalhada. O nariz ardendo, a garganta seca. Miragens, efeitos da luz complicando...e o ponto. Pronto. Foi dada a partida. 
A Belém-Brasília, o nome já está dizendo, é a estrada que liga a capital federal a Belém. Está nos tratados e arrazoados. No entanto, se desconsiderarmos os considerandos (que explicam a estrada como sendo um conjunto de rodovias, incluindo a BR 316), a gente deduz que chamar de Belém-Brasília para esta BR, é uma tradição, é costume generoso, porque a estrada deveria mesmo, era se chamar Santa Maria do Pará- Brasília. 
Do ponto que o marcador visou a vante, lá em Brasília, há mais de 50 anos, ele varou bem longe do alvo. A chegada da BR está a mais de 100Km a Leste de Belém. 
Santa Maria é uma cidade simpática. Fica na confluência da 010 com a 316. Tem aquele traçado típico de beira de estrada, com o eixo desenvolvido se estendendo às margens do asfalto. Para quem é ex aluno salesiano, como eu, é de prima que a gente se identifica com a cidade. A Santa padroeira do lugar é a mesma Auxiliadora que roga por nós, os meninos de Dom Bosco. Acho que de certa forma, foi até bom o estirãozão desembocar numa cidade que tem fé. A Santa, tenho pra mim, que cuida de quem encara a rodovia indo ou vindo. 
Como dizia a minha mãe, por onde se torna e por onde se deixa, Santa Maria é Brasília chegando a Belém. Vamos dar o desconto pro topógrafo lá dos tempos do Juscelino. Naquele tempo a tecnologia não era esta a peso do GPS e da fibra ótica (em contraste temos o exemplo daquele erro famoso que ocorreu recentemente nas obras do metrô de São Paulo, quando da coincidência frustrada de um túnel que vinha de lá com o outro que vinha de cá; um desencontro que foi inaceitável para o padrão das novas engenharias, e olha que foi ali na escala dos centímetros). Era tudo no muque, na década de 50, tudo na caderneta e na visada certa. E a bem da verdade, esse negócio de posicionamento global, de direção, a percepção do espaço não é coisa muito fácil não de compreender. Já perdi um tempão em discussões improdutivas com um amigo querido pra lá de gabaritado na arte dele, mas completamente desfocado, quando se trata dos artifícios de localização. Pra ele, Belém está no Norte e pronto. Quando eu dizia que Belém está a Norte de São Paulo, e ao mesmo tempo está situada a Sul de Macapá, ele pirava. Não entendia esta bipolaridade. O tempo fechava e a gente tinha que recorrer, mais que depressa, a um vinho amigo para celebrar a paz. 
É conflito recorrente entre as gentes este mundiamento. Temos zangas com as referências. Em cima, embaixo. Na frente, atrás. De cabeça pra cima, de ponta-cabeça. Ao norte, ao sul. Estes são conceitos que dependem mais de entendimentos e combinações; de diplomacias e interesses, do que das leis naturais. O poder, pelo comum, dá a letra (percebemos isso quando olhamos o mapa múndi e vemos os Estados Unidos, a Europa, no lado de ‘cima’ e nosostros, embaixo. Por que não é ao contrário?). 
Essa história com a BR-010 é uma implicaçãozinha minha. Não é pra criar arenga e nem menosprezar os topógrafos que alinharam a estrada. É apenas uma birra com a notação, com a nomenclatura, no frigir dos ovos, pelo que se torna, está explicado que a Belém- Brasília é um conjunto de rodovias, incluindo esta BR 316 que nos inferniza os dias no Entroncamento; e pelo que se deixa, Santa Maria do Pará é uma cidade simpática e devota. 

domingo, 24 de novembro de 2013

crônica da semana - Andes

Mente livre
A gente se arruma todo, com antecedência, com todo o cuidado, provê e reserva. Mas na hora de viajar, a bendita da meia some. Acho que é a falta de costume. Não é coisa do meu eu, usar meia. Mas a meia sumiu. Na horinha de viajar aqui para o Peru. Sim, escrevo agora aqui da beira do Pacífico, na borda da grande cordilheira. Pois é, na horinha de ‘se aprontar’ e ir para o aeroporto, dei pela falta da meia. Tive que emprestar, rapidola, uma do meu filho (a outra perdida também era dele, porque eu mesmo, não tenho meia própria). Acontece que a que ele me arrumou era bem grossa, com um sanfonado tenso. Resultado: o que essa bicha me apertou na viagem, não foi brincadeira. Me tirou do sério. A primeira coisa que fiz, quando desci na conexão em São Paulo, foi tirar a meia. Não poderia, de jeito e maneira cruzar a cordilheira dos Andes, com os pés atrapalhando minha lucidez. Precisava, para contemplar melhor tanta beleza, estar bem comigo mesmo. Precisava da mente livre.
Foi o momento mais bonito da viagem. Desde que soube que viria para Lima, fiquei ansioso. A idéia de ver de perto uma das mais belas paisagens da Terra, me deixou num pé e n’outro de excitado e feliz. Uma noite sem dormir nada, os olhos ardendo e o embarque em São Paulo. Natural seria, logo ao entrar no avião, cair no sono. Mas quando! Não preguei o olho. Tinha garantido meu lugar na janela e não ia desapregar de lá até que vislumbrasse as cimeiras do mundo.
Sou fascinado pelas montanhas. Já escrevi aqui da admiração que tenho pelas aventuras dos alpinistas, e até declarei que se me houvesse mais um pulmão, arriscaria uma escalada num monte (modesto em altitude, porque não tenho esse pique todo, mas famoso, com nevinha nas ombreiras e cimos aplainados). Reconheço nas montanhas uma ânsia titânica do planeta. Elas refletem a energia dos interiores pulsantes da Terra quando se rebelam, quando transgridem. Quando vencem as pressões e migram aos céus. As montanhas nos levam para bem pertinho de Deus.
E essa força incontida, esse impulso criador é a Terra viva nos Andes. É a nossa casa dobrando-se, vincando-se, elevando-se. É a fúria abissal reformando e rejuvenescendo a tez do planeta.
De São Paulo até Lima, atravessamos o Brasil. Cinco horas de viagem e uma diversidade de cenários que ajuda a espantar o sono. O sentido do vôo é meio enviesado, meio noroeste. Neste trajeto a gente vê todo o retalhamento agrícola do centro-oeste com fazendas enormes, traçados retos e coloridos. Floresta nenhuma; mata ciliar, apenas um reguinho. Estes são os sertões dominados do Brasil. Adiante, uma amostra do Pantanal. Uma planura alagada, aqui acolá uma fazenda e uma textura de solo  breado, melado.
Logo a frente um colorido verde e discretas elevações anunciam a cordilheira. Atenção. Muita atenção. Um momento de muita satisfação para qualquer cristão, que dirá para mim, apaixonado confesso. Fissuras, rasgos, encostas íngremes, rios retinhos e estreitinhos. A vegetação vai rareando até que a superfície vai ganhando cores mais estáveis, constantes, um prateado com marrons, vermelhos suaves. Um frio no cocuruto, um batucado no coração e os picos. Formas múltiplas agudizadas, arrogantes, seios de neve. Declives radicais. Rios de neve. Chega dá um arrepio de tão belos que são os desenhos que a natureza faz nas rochas. Depois dos picos, aquele relevo que sempre a gente ouviu falar e que agora se mostra de vera: o altiplano. Vilarejos, pequenas cidades, mineração, barragens. Somos nós, os homens, dominando as alturas. Na sequência um suave rebaixamento, Lima e o Pacífico. Demais!

sábado, 16 de novembro de 2013

crônica da semana - pandeiro

Raimundinho-do-pandeiro


Um sábado desses fui cortar o cabelo num salão popular aqui da Pedreira e tive uma boa surpresa. Tava bem no meu cantinho, com minha senha na mão, esperando a vez, quando de repente, uma moça veio até mim. Perguntou: “É o Sodré, o Raimundo Sodré?”. Rapidamente na minha cabeça, listei os meus mais maliciosos credores, me certifiquei que não era arte de nenhum deles, confirmei. Sim, sou eu mesmo. A jovem se apresentou como minha leitora aqui da coluna. Fez-me elegantes elogios, comentou algumas crônicas que escrevi, deu realce àquelas que têm a Pedreira como tema. A nossa conversa tava animada. Tanto que foi logo juntando gente. Os clientes ali do salão assuntando quem era aquele neguinho que tirava fotos, autografava num lencinho uma lembrancinha para a leitora. Percebi e logo tirei uma casquinha da fama inesperada. Saí abraçando todo mundo, distribuindo beijinhos. Quando estava no meio da pequena multidão, eu já era o famoso Raimundinho-do-pandeiro, vocalista de um grupo de pagode aqui das quebradas. Curti pacas. Esbocei até um sambinha de minha própria autoria tamborilando na mão um descompensado um-dois. Foi a minha glória. A gerente do estabelecimento me ofereceu água, um cafezinho e ainda por cima me franqueou o corte. Tive ali meus 15 minutos de fama. 
É certo que parte do que escrevi aí em cima é invencionice. Faz parte da minha arte. Havia sim, uma leitora, no salão: a Deise. Talvez tenha me reconhecido de umas das matérias que fiz quando do lançamento do meu livro no início do ano. Conversamos um pouquinho, e muito discretamente. Agradeci a atenção que ela dedica à coluna e depois fui me sentar na cadeira do cabeleireiro. Já havia quitado a conta. 
O que ficou, porém daquele encontro, foi a certeza de que meu universo de leitores no jornal, vai além daqueles oito fiéis catalogados quando iniciei aqui na coluna, há quase 9 anos. 
Percebi isso na Feira do Livro. Lançamento de trabalho independente, a gente sabe. Vão os parentes, os amigos, alguns amigos dos parentes, outros dos amigos. Este ano contei também com a presença dos leitores do jornal. Conheci gente que me lê em silêncio: a filha que foi pegar um exemplar autografado para o pai que não pôde ir, mas que fazia questão de um livro meu. Aquela senhora que citou pelo menos quatro crônicas e as relacionou com passagens triste ou alegremente ocorridas na vida que ela levou junto ao marido recentemente falecido (aí choramos os dois). 
Sei que tenho a honra de ser apanhado no alpendre da casa do Seu Fernando, da Dona Walda, do Oséias Silva...da Alessandra Martins, da Juliana Silva, da Deise...logo na batida da campa do sábado. São os  leitores do jornal que comigo se batem há tantos anos. 
(E eu podia tá roubando, tá me prostituindo, tá errando na vida. Podia ser político circunstante. Mas não, tô aqui tentando lançar mais um livro para o ano. Quero montar os textos. Mas quais crônicas escolher? Um trisca de idéia me bateu: os leitores vão escolher as crônicas do próximo livro. 
Então, queridos e queridas, peço que me ajudem selecionando cada um de vós, a sua crônica preferida. As crônicas do meu próximo livro vão ser aquelas que vocês escolherem. Vocês me ajudam? Espero terminar a seleção, com as sugestões de vocês, até o final de dezembro. As mais mais dos leitores podem ser enviadas para o e-mail que está aí em cima). 
Isso pode parecer presunção, né, coisa do Raimundinho-do-pandeiro, mas não é não. É o meu agradecimento por estarmos juntos nesta batidinha semanal. Meu próximo livro será todinho de vocês. 

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

crônica da semana - anjo da


Exame de vista (santo anjo do Senhor) 
A gente sai de casa que nem malda, né, numa pose. Põe uma roupa leve, porque o calor em Belém tá de a gente correr doido. Uma bermuda simplesinha, chinelo, um dinheirinho no bolso para um chope de groselha, no semáforo, se a secura for tanta. Nenhum esquema especial. Articulação, aquela mínima: “se demorar muito, já almoço por ali mesmo”. Meninos na escola, patroa no trabalho. Despreocupação e normalidade. 
Sou um cara meio desatento comigo. Não me cuido, é vero. Vou ao médico uma vez na vida, outra na sobrevida. Dia desses, na fase sobrevida, dei uns bugs de pressão e, olha, logo que me aviei para umas coisas que me aporrinham em silêncio. Aproveitei e emendei em outras que gritam dentro de mim, mas não ouço assim, todas as horas, só de vez em quando. O certo é que se não der passamento, não rolar uma cara branca, uma dorzinha aqui, outra ali, não vou mesmo. Não sou dado a checape não. 
Ocorre que desde o início do mês, tô me batendo com médicos (menos cardiologista, este pelo qual meu coração clama, me parece que professa uma especialidade em extinção, não se acha em Belém unzinho que tenha tempo para este humilde servo do condado do Xapuri, o jeito, por ora, é apelar para a Coramina), consultas, exames, papeladas e diagnósticos. Tô levando a sério, ora, quero viver mais e melhor. 
Deu-se então que nesta última segunda-feira, cumpri o rito. Saí todo pintoso, banhado, entalcado, todo prosa-cor-de-rosa, para fazer um exame de vista (aí eu confesso: se recomendação alguma havia para levar acompanhante, não li. Uma, porque a vista tá pouca, por isso os exames; outra, porque não corri os olhos no prospecto que me deram lá no consultório, nem por curiosidade. Decorei o dia, o horário e só. Nem o nome do exame eu sabia). Dancei. Paguei pela minha sensaboria. 
A pupila da gente é aquela bolinha que fica bem no meio dos olhos. Funciona como se fosse o obturador de uma máquina fotográfica. Quando o ambiente tem pouca luz, ela se dilata buscando perceber toda a luminosidade do lugar. Se, por outro lado, o ambiente tem muita luz, a pupila se contrai, fica pequenininha e só deixa passar a luminosidade necessária para definir as imagens. Já viu um obturador de máquina fotográfica funcionando? É do mesmo jeitinho. No caso da máquina-homem, quem faz as demandas para a pupila é o cérebro. Ele é que comanda o abrir/fechar da forma que melhor lhe apraz. Isso quer dizer que a dosagem de luz através da visão está subordinada a uma regra natural. É uma propriedade seletiva do nosso cocuruto. 
Daí que quando a gente vai fazer um exame de vista, na maioria das vezes, fazemos durante o dia, com o sol por acolá de forte, distribuindo, aos quatro cantos, fótons pra lá de espevitados. E nossa pupila, obediente que só ela, nem se atreve abrir além da conta, fica ali, apertadinha que ela não é besta. Mas como temos que fazer o tal exame, o que a natureza não subverte, um bom colírio dilatador providencia. Dois pinguinhos, uns lacrimejos e as nossas bolinhas, contra a vontade, se dilatam, viram bolonas. 
Já dá pra adivinhar o desnorteio que me vi, quando saí do consultório, né. Me vi azuruotinho ali no meio da rua, com o cérebro dizendo fecha, o colírio dizendo não fecha e o mundo se mostrando para mim num amplo, isotrópico e inclemente clarão. 
Não tinha companhia, é certo, aquelas representadas por parentes, amigos ou aderentes. Mas sozinho, também não estava. Até que eu conseguisse discernir alguma coisa, fui guiado, com absoluta certeza, até em casa, pelo meu anjo da guarda, santo anjo do Senhor, meu zeloso guardador. 

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

crônica remix - Euclides

Euclides 
Não sei se estou sendo radical ou, de certa forma, extravagante. Mas tenho sustentado, para os meus colegas de escola, a opinião de que um geólogo, para ser um geólogo de verdade, tem que ler o Euclides da Cunha.
É claro que esta minha opinião não encontra eco na grade curricular do curso (outras matérias são consideradas mais urgentes). Abriga-se, porém, na conduta profissional, no perfil visionário, na articulação contextual que reconheci no geólogo Roberto Moscoso, lá pelos idos de oitenta e poucos, em Rondônia.
Moscoso faz parte de um grupo de geólogos que não se limita ao catecismo acadêmico (e neste grupo destacam-se escritores, músicos, pensadores, poetas, e ora vejam, só pra provar que nenhum modelo é perfeito, até políticos).
Roberto Moscoso é um dos meus ídolos até hoje. É do nordeste. Um amante do semi-árido. Puxava, naquela época a brasa pra sardinha dele. E assim, tendencioso, me indicava João Cabral, Patativa do Assaré, a estética ligeira de Capiba...Mas no fundo era um sentimental. E universal. Por causa do Moscoso, conheci Pablo Neruda, o pessoal do Planeta Diário (hoje Casseta e Planeta), o Angeli, Sartre... Percebi uma parte do céu noturno e criei em mim a necessidade de um Euclides da Cunha na minha vida.
E, engraçado, as coisas vão, vão acontecendo...
Houve uma ocasião, já aqui em Barcarena, que os peões mais saidinhos, naquela zombaria corriqueira e desmesurada, no caminho até a fábrica, cognominavam este ou aquele mais discreto ou retraído, de “Euclides da Cunha”.
Na época a rede Globo estava exibindo a série ‘Desejo’. A tragédia na vida do grande escritor se consumara e inspirara (ah, nosostros, peões, sabe como é) a galera no ônibus (depois de um tempo é que fui sacar que no entendimento dos operários do turno da noite, “Euclides da Cunha” era sinônimo de marido traído, no popular: o dito corno).
Passada a indignação e pesquisando um pouco sobre a vida do autor de “Os Sertões”, fui descobrindo aquele tempero angustiante que marca a vida dos grandes gênios. No caso de Euclides, um desenrolar insano que desandou para a descendência e para a nulidade de todo e qualquer senso no posterior desencanto amoroso de Ana (de Assis) ante o mito Dilermando (que depois de todas as derrotas impostas ao grande Euclides, dizem as más línguas, ainda propôs-se vilipendiar-lhe a obra).
Em 2004, comprei uma edição, das baratas, de “Os sertões”. Fui tomado de todos os medos e todas as objeções diante do precioso relato. Resisti à tentação de começar pelo fim, naquele momento impressionante em que o autor descreve a queda de Canudos (pra lembrar: “Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda história, resistiu até ao esgotamento completo. Expegnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.”).
Comecei do começo e vi o quanto Euclides da Cunha é importante, não só para a literatura nacional, mas para a ciência, para o entendimento das interações homem-natureza. Muitas das coisas que estão sendo exploradas como temas contemporâneos, modernos já foram dissecados em Os Sertões, por Euclides da Cunha. (o próprio conceito de meio-ambiente está condensado nos três capítulos que compõem o livro : A Terra, O Homem, A Luta). Uma das melhores explanações sobre o processo de desertificação (tão amplamente aludido hoje em dia) é elegantemente desenvolvida pelo escritor. Para os amantes das ciências da Terra, o primeiro capítulo, vale por um bifinho.

Outro dia, um amigo, indignado com o eterno sofrimento do povo nordestino, questionou a razão daquele povo viver em lugar tão inóspito. A resposta, seja do ponto de vista sociológico, quando a obra esclarece sobre o surgimento dos jagunços e anuncia o fenômeno do cangaço, seja pela ótica antropológica, quando interpõe a crença à razão de viver, está em Euclides da Cunha, que se foi há 100 anos, vítima de um sentimento desconhecido que costumamos chamar de amor.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

crônica remix - bandola

Bandola
Li n’O PARAZÃO impresso um texto muito rico discorrendo sobre as regras do futebol de rua. Todas muito pertinentes e oportunas. Este humilde servo do condado do Xapuri se permite complementar, apenas, que o futebol de rua também tinha a sua versão compacta, meio que na onda da momó, tipo ‘hoje-a-gente-não-vai-formar-vai-ficar-só-na-calçada-infernizando-a-vida-do-vizinho’. A lei era basicamente a mesma, com alguns ajustes na concepção espacial. No futebol de calçada, por exemplo, ‘bola no ar, não dá’; a tabela com o muro (embora detestada e considerada desleal) é tolerada; gol de cabeça vale dois e a bola, logicamente, tinha que ser especial, de tamanho menor. Uma Dente-de-leite esvaziada, toscamente remendada com faca quente e com aquele fiofiozinho de ar vazando pelo remendo. A travinha era medida a pés juntinhos, num total de oito equilibradas pisadas.
Foi-não-foi, o futebol de calçada ocorria paralelamente ao futebol de rua com o pessoal que ficava na grade, mas era mais pleno e disputado nas férias de julho quando a molecada dava uma sumida e não rolava o quorum para formar no asfalto da Mauriti. A composição era minimizada e previdente. Dois pra cada lado, e um menino atrevido, pronto par enfrentar o seu Ernesto caso a bola caísse nos domínios dele.
O palco preferido para os grandes combates era a calçada do seu Cézar. Um valoroso paraense, doutor Cézar Bentes não bulia com a gente (fazia uma leitura generosa daquela situação). O muro da casa dele era alto, o gramado era amplo, a casa era recuada. Não fosse pelo embaraço no portão, quando ele chegava, lá pelas cinco e poucas, seu Cézar jamais seria incomodado com a nossa bola. Ele entrava com o carro, sumia lá pra dentro, na paz, e a gente ia até de noite, aproveitando as luzes de mercúrio.
O problema era o seu Ernesto, cujo muro baixo limitava a trave que dava pros lados da Marquês (condição que ensejou a regra que validava dois gols para quem intentasse de cabeça, porque, como a bola alta sempre varava pro outro lado, quando voltava inteira, era uma festa; e que também instituiu a figura do moleque atrevido, aquele que pulava o muro e recuperava a bola). Na maioria das vezes, porém, seu Ernesto vencia a contenda e devolvia a bola bandada. Puxava pelo remendo, separava as partes e jogava de volta. Aí não tinha festa, não.


domingo, 3 de novembro de 2013

30.000

Tá chegando, né...
Só lembrando que aquele que for o 30.000 visitante do blog
basta acusar-se como tal
para ganhar um monte de prêmios
dentre os quais
- um quilo de bombom
- 30.000 bitocas
- um prêmio surpresa
- um exemplar autografado de O rio do meu lugar
e outro de A Filha do holandês

sábado, 2 de novembro de 2013

crônica da semana - rádio


Nas ondas do rádio 
Eu ouço A Voz do Brasil. O programa vai ao ar justo quando chego do trabalho. Venho de Barcarena pela alça, e desço lá no Bosque. De lá até em casa, venho andando. Não sei se minto pra mim mesmo, mas acho que esta caminhada de 25 minutos me dá um plus à vida. No trajeto, reparo nas notícias que vêm de Brasília. 
Não é muito normal, em tempo de internet, alguém sintonizar n’A Voz..., mas este tipo de propagação já esteve muito presente na minha vida. O rádio foi desde antes um companheiraço meu. 
Em Belém, aprendi a ouvir rádio com a mamãe. Durante uns quantos anos, varamos os dias sem televisão. Aqui, ali, assistíamos a um capítulo de Xeque-Mate, na televi’zinha. Um desaviso e ela nos deixava ver algum programa depois da novela, mas depois tornava da liberalidade, fechava a janela e a gente se aviava em procurar outros termos. Íamos direto para o rádio. Mamãe atava a rede na salinha de casa, ajeitava a freqüência num programa de seresta e aí a gente ia embora, noite à dentro, só curtindo. Só s’embalando. 
Em Rondônia, dei com a Rádio Nacional de Brasília. Era a internet da época. Não exatamente daquele início dos anos oitenta. A Rádio Nacional dominou o espaço amazônico durante décadas. Por aqueles dias tinha um time de responsa. Edelson Moura e Márcia Ferreira eram as mais cintilantes estrelas da emissora. Faziam a chinfra das manhãs e os musicais animados. Artemisa Azevedo aparecia num horário pouco concorrido, mas dava seu recado com simpatia. O domingo nos trazia a graça e a docilidade de Tia Leninha: “hoje a Tia Leninha vai contar uma historinha muito bonita pra vocês”. Era o dia da petizada, e esta agradável atmosfera de programa infantil, anos mais tarde, já de volta a Belém, me faria acordar às 9 da madrugada do domingo, eu mais os meus meninos, para ouvir o Abracadabra da Linda Ribeiro. 
Comparo a Rádio Nacional como a madrinha boazinha do homem amazônico. Pega no mais escondido cafundó. Atualiza o preço do ouro, ratifica o valor das pelas de borracha, anuncia a chuva nas cabeceiras dos rios, alerta sobre o nível do rio Tocantins à jusante de Tucuruí, transmite recados dos filhos debandados que chapinham pelos garimpos do Cuiucuiú, do Crepori, do Creporizinho. Uma rádio obsequiosa, mas pragmática. Foi-não-foi seus locutores ganham o trecho para fazerem shows. Viram cantores e para mim, perdem o encanto. O bacana mesmo é quando eles pairam lá por cima, pelos céus, nas ondas do rádio. Invisíveis, misteriosos. Sublimes e inatingíveis ao longe, ao sonho e à imaginação. Lindas e poderosas vozes reverberando no ar verdades, mesmo que tristonhas; mentiras, ainda que risonhas. Saudades. 
Da Almirante até a Pedreira, tento ganhar mais uns dias de vida intentando fazer de uma caminhada funcional, uma providente atividade física. Passo a passo, vou me inteirando dos acontecimentos, dos pronunciamentos, das disputas partidárias, das reminiscências ideológicas, dos fisiologismos previsíveis, ouvindo A Voz do Brasil. 
Quando quebro na Marquês, varo na frente da casa de um cidadão, que, do mesmo jeitinho que eu, está sintonizado n’ A voz... Só que ele ouve rádio do jeito tradicional. Tem um aparelho daqueles de botão e com alça. Mas não segura pela alça. Põe a cadeira na porta da rua, senta, segura o Motorola por baixo e o posiciona a altura do ouvido. Sério, entretém-se com as locuções. Passo por ele, aceno com a cabeça (como se dissesse, também tô ouvindo aqui no meu fone). Ele me devolve o cumprimento como se respondesse: “eu sei”...E o efeito Dopller vai nos distanciando, apesar das nossas afinidades e proximidades.