domingo, 28 de abril de 2024

crônica da semana - A Terra

 A Terra

Maldo que até pecado é. Não vejo mesmo nenhum poeta, escritor de juras e modos ou mesmo letrista de ocasião, explicar o que escreve. Eu já tenho este sestro. Esta mania. É a minha índole analítica corroendo, expondo os intricados mundos da inspiração. Por vezes, me vejo arremedando aquele personagem de um programa de humor antigo que gostava de tudo ‘bem explicadinho’.

Deu-se então, que tenho vivido dias deslumbrantes, enriquecedores, aquecidos de carinhos intensos... de vovozinho. E assim, né, daquele vô que quer prestar reparo em tudo, dar pitaco nas horas, nos jeitos, modos, seres, entenderes e estares, da netinha. Um dia desses cismei que precisava mostrar este mundo para a pequenina. Subi ao alto e infinito e de lá vi nosso planeta. Este aqui é o nosso mundo, a Terra.

Fácil apresentar o planeta para minha neta. Sou da barra, do meio. Sei dos termos. Dou ali meus pulinhos na Geologia e daí, era fácil. Era só falar sobre a formação do planeta, os 4,5 bilhões de anos contados em várias fases e constituições. Citar, com suas reais relevâncias, a crosta, o manto, o núcleo, as extinções; dar um destaque ao meteorito que caiu no México, à abertura do Atlântico; argumentar sobre a configuração das placas tectônicas, as interações ambientais; esclarecer que tudo isso vai acabar e big e bang. Tudo certo. É o final, acabou o mingau.

Para ser um aprendizado leve, fiz um poema.

No meio do caminho, as pedras da Geologia me alertaram que a Terra não era só substância, calor, o fim um dia, racionalidade, e a Física da natureza. Há muito sentimento envolvido. Deram uma guinada então, meus versos.

O poema foi adiante e pretende mostrar para minha netinha que além da natureza física, nosso planeta é envolto em sentimentos, em gestos de afeto. Em manifestações e sublimações de prazer ou de dor. Somos uma mistura de rochas, sonhos, água, desejo, ar, claridade, solidão. Pensamento, chão, maldade, gravidade, esperança, fogo. Livros, ligeireza, químicas, corpos, pétalas, peixes, vazios, amores vãos e sãos.

De forma que o poema se propõe a explicitar nossa completude. Nossa perfeição. Um planeta delicado, que necessita de um ajustado equilíbrio entre as camadas que o fazem vivo.

Quando nos referimos aos riscos que o planeta corre e que se não contidos podem abreviar o fim, que sabemos ser certo, não apontamos apenas para a frieza dos pólos, para as profundezas dos mares. Para as lonjuras dos picos mais altos ou para a sensibilidade das florestas. Nos dirigimos também aos escaninhos da alma. Aos entusiasmos dos olhares e aos sabores dos beijos. A Terra é feita de toda a espécie de matéria muda, bruta e... de gente. Na elaboração, busquei envolver as essências humanas, as sensações, as abstrações, a esperança eterna, o amor. Não somos apenas a materialidade racional, a molécula, a substância.

Meu compadre Edir Gaya musicou meu poema. É nossa mensagem para a netinha. Coisa de vôs. Acredito que nossa canção vai levar a ela, um entendimento de cumplicidade, de compromissos mais afinados e sinceros com o planeta. E meu desejo puro é que a netinha veja a Terra com os olhos da amizade e do cuidado. Abonada pela energia que a música oferece.

A canção foi lançada em todas as plataformas, no dia 22 de abril próximo passado. Está disponível. É só procurar por “A Terra” ou Edir Gaya. Se pesquisar Raimundo Sodré, vão aparecer dois. O famoso baiano da “massa da mandioca” e outro. Eu sou o outro. Põe pra tocar aí na vitrola e se gostar, passa pros amigos, parentes e aderentes. Quanto mais gente conhecer nossa música, mais a gente se realiza um pouquinho e, dizque quando tá na rede, a gente ganha uns centavinhos se as curtidas ultrapassarem um número xis de registros. Bora ver se daqui a uma eternidade o apurado dá pra gente comemorar o sucesso d’A Terra, com uma rodada de vinho de cupu.

domingo, 21 de abril de 2024

crônica da semana - meu violão, meu amigo

 Meu violão, meu amigo

As cicatrizes são heranças, registros, dotes incontestes, ativadores de memórias, de capacidades de resistir, de viver mais, superando dores. São traçados marcantes, desenhos frutos da dor ou da crueldade dos tempos. Cicatrizes se mostram no tecido das lembranças, na tez negra dos ancestrais, nos olhos de quem vê, no coração de quem sente. Cicatrizes são multisons, multivozes, muitimatérias. São recortes latentes de algum sofrimento. São remendos recontadores de histórias.

Meu violão, meu amigo, tem uma cicatriz.

O que torna é que semana passada, seguindo a dita de que a gente oferece aquilo que gostaria de ganhar, dei um violão de presente para minha nora, no dia do aniversário dela. Ela gostou, porém confesso que a satisfação foi mais da minha parte. Senti que fazia o bem presenteando com um companheiro da mais alta valia, um amigo de todas as horas. O violão é parça de não se desapregar. Cuida da gente. E a gente cuida dele...

Tenho um Di Giorgio há nem sei quanto tempo. A lembrança mais remota que tenho dele é que foi com ele que compus as leves canções de ninar para minha filha, logo que ela nasceu. Só aí se contam 26 anos. Ainda que velhinho, ainda que exibindo as cicatrizes, tem um som de responsa, e uma postura elegante. Esses dias, comprei um suporte imponente pra ele e o acomodei num ponto de destaque na  casa. Ele compõe o ambiente com aquela elegância, aquela presença refinada digna de um Di Giorgio. Eu o trato com carinho, respeito e uma gratidão sem fim, por me acompanhar, por me dar esta oportunidade, de forma indulgente, em tantos anos reconhecendo meus limites, de me aproximar dos prazeres que a música ativa na gente. Tivemos, porém, momentos de extremada dor.

Certo dia, cheguei em casa e me deparei com o tampo do meu violão totalmente descolado. Um cenário desolador e distorcido que me apavorou e me desnorteou. Meu violão, meu amigo, estava destruído!

Quem nos salvou foi o Armando.

Na época, meu companheiro fazia um curso de luthier. Viu meu sofrimento e sem contar tempo, me socorreu.

Armando era assim, na essência, o que reconheço como companheiro. Sempre agia para o bem. Comunista bem mais preparado que eu, pois até hoje me sustento no valor sintético do método “ver, julgar e agir”. Ele não. Era estudioso. Analítico. Dominava as teorias, defendia e assumia os postulados que pregam uma sociedade livre e igualitária. Militamos em nichos sindicais diferentes. Eu, na iniciativa privada, ele, no serviço público. Armando chegou a presidir o Sinjep e a elaborar políticas também no campo partidário. Mas foi no meio da arte, que nos aproximamos.

Armando Soares era um ser de luz. E essa luz se irradiava. No meio sindical, na família, nas batucadas da vida. Sempre composto em sua boina de crochê, em várias ocasiões nos encontramos em saraus, nas intervenções populares de cultura em praça pública, nos shows de artistas e poetas da terra. Nossa família também se aproximou. Fizemos alguns encontros na Pirajá pautados na mais doce amizade de nossa petizada.

Aí, ele viu minha dor.

Pegou meu violão todo estiolado, levou para a oficina que oferecia o curso de luthier, organizou uma ‘junta médica’ e tratou meu violão, meu amigo. Não me cobrou nada. Era comunista, companheiro, camarada. Trouxe meu violão recuperado até mim, e quando o pôs nos meus braços, percebi nele, o ar de servidor que lhe era peculiar, aquele aspecto límpido, aprazível, cheio de afeto e carinho de quem se deleita em fazer o bem. E eu? Eu transbordando de felicidade e, ao mesmo tempo, imensamente agradecido.

Meu violão, meu amigo, tem uma cicatriz.

Encarou poucas e boas. Sem pele, sem osso. Passou. Encontrou, no caminho das desolações, Armando. Hoje dá nobreza à minha casa, à minha vida. Cicatrizes são recortes latentes de algum sofrimento. São remendos recontadores de histórias.

 

 

 

sábado, 13 de abril de 2024

crônica da semana - começou a aula

 Começou a aula

Se tem algo, uma entidade física que comanda todas as coisas, e estados e movimentos, é o tempo.

Esta é uma reflexão profunda, cheia de ramificações, derivações, mãos e contramãos filosóficas, mas de palmo em cima com a vida, a gente vai no rés, na bucha, sem nem esforço, e confirma a tese. Pode reparar. Conte quantas vezes disse ou ouviu alguém fazer considerações aleatórias nesse rumo: “tal coisa era assim, assim, mas com o tempo, mudou”. Não tenho dúvida, a gente fala no jeito e na maneira, das deduções e dos rumos da nossa história, o tempo todo que o bom Deus nos dá de vida. E sempre destacando o tempo como o definidor, o que altera, o que move e o que comanda nossa caminhada sobre os trilhos sem fim da Terra.

Deixa estar que o tempo me deu acompanhar o primeiro dia de aula de minha netinha. Com dois anos e pouquinho, a pequenina já se integra à rotina de uma estudante. E foi um ritual agregado à vovozice: Aquele instante em que ela, com uma mochilinha na costa fazendo menção de ter algo dentro, e que era mais simbólica que funcional; aquele momento sublime, em que, antes de abrir a porta da rua, deu uma paradinha, virou pra mim, abriu um sorrisinho e lançou um ‘tiau vovô’, vai para a conta de uma emoção tal, de não se perder no tempo. Uma cena marcante, de um lado pela expressão integral de fofurice, e de outro, pela reiteração da fé que tenho na educação, e que me dá a certeza de que ultrapassando aquela porta, minha netinha está avançando para um futuro de muitas realizações pautadas no conhecimento e na defesa dos valores que fizeram o tempo nos trazer até aqui.

Aí, olha só, tornei no tempo.

E como o tempo muda, né, ou pelo certo, como as coisas mudam com o tempo...

Na escola, escola mesmo, desse modelo institucionalizado, com professora do magistério, chamada, lápis e papel com pauta, eu só ingressei com sete anos. Centro Educacional e Técnico Nossa Senhora Aparecida. A escola da igreja que oferecia vagas do governo para quem não podia pagar. Não sei como mamãe conseguiu. Mas eis que um dia bem diferente dos meus dias comuns, vesti meu uniforme, que tinha uma estrela estilosa no peito, peguei na mão da minha tia, nos adiantamos pela Marquês, dobramos na Barão e mais com pouco, formaria na fila do menor para o maior na vez de iniciar minha caminhada me ajeitando na Primeira Atrasada.

Com sete anos na Primeira Atrasada, no segundo semestre, a partir da justificativa de que eu já sabia uma coisinha, dei um salto para a Primeira Adiantada e daí pra frente.

O que seria essa coisinha, que me deu o status de geninho, é que me pego a perguntar. Conhecia algumas figuras geométricas. Meu tio, que cursava o ginásio no Magalhães Barata, aqui, ali, pegava umas caixas de sapato, guardadas não sei pra quê, pelas tias, e traçava naquela superfície de papel áspera, um quadrado, um triângulo. Verdade. Na Primeira série eu já reconhecia até um losango ou um trapézio, formas que vejo até hoje, confundem muitos marmanjos. Talvez tenha sido este o talento que impressionou e levou minha professora a me adiantar. Outra habilidade que deve ter contado era a que eu já sabia a tabuada e o abecedário todo, apreensões alcançadas a peso de uma palmatória com um furo no meio, ferramenta jamais dispensada pela professora Lurdes na aula particular que eu frequentara até pintar a vaga na Aparecida.

Esta guinada ao passado, me dá reconhecer o caráter reparador, consertador, do tempo. O seguir dos anos cuidou para que a medida do tempo dada pela idade da criança, não fosse um critério inabalável. De lá para cá entendemos que a capacidade de aprender não está marcada por uma linha limite. Vai do método. E quem vê como os pequeninos manejam um celular hoje, me entendem.

No primeiro dia de aula de minha netinha, não duvidei: temos que cuidar dos valores que fizeram o tempo nos trazer até aqui.

quinta-feira, 11 de abril de 2024

crônica da semana - a minha alma canta II

 A minha alma canta.

Tô eu aqui de perna pro ar, pensando na vida da bezerra, só na manha das férias. Nem seu Souza para o tempo que passa.

Nisso que esbarro no tempo, reinei de contar um pouquinho da noite longa que foi minha viagem aqui para a Guanabara. Digo longa porque sou desses, se a viagem é tantas horas do dia tal, uma eternidade antes já estou pronto, todo etiquetado, documento em mãos, mexendo aqui, ali no celular pra ver hora de voo, início de embarque, portão, poltrona, não pera, vai que muda...E foi desse jeitinho mesmo. Duas horas antes do embarque, calcei a meia, os sapatos, que constam da parte final do rito de me aprontar, chamei o carro e me piquei para o aeroporto.

Agora, no avançar dos anos, estou é me dando com essa coisa de prioridade. Não curto mais a fila. De prima entrei na sala de embarque, o que representa o primeiro suspiro da jornada. Antes, a tensão daquele apitinho no detector de metais e qualquer outra coisa, no curralzinho de entrada. Já me pararam por causa de um desodorante. Que dirá dessa vez, trazendo umas gotinhas de cachaça de jambu para os novos moradores da cidade maravilhosa. Enfim, tudo na paz. Deixaram a cachaça passar. Era pouquinha mesmo. Só um souvenir. O homem só perguntou se eu não usava cinto. Disse que não e fui s’embora.

O bom de chegar cedo é que a gente vai se aliviando aos poucos. Logo adiante, me livrei da bagagem. Agora tem essa presepada de cobrarem um valor para despachar a mala. Maior parte dos passageiros não paga e se vira com as maletinhas de mão. Aí quando a gente tá pra embarcar as empresas chamam para despachar sem custo. Agora fica nesse puxa-encolhe, eu heim. Se foi pra desfazer, por que é que fez!

Fui o pri também para entrar na aeronave, só que desta vez, junto com uma galera da Venezuela. Parece que era um embarque especial de um grupo tutelado pela imigração. O que exigia àquela turma, uma atenção espacial dos comissários. Houve o cuidado de agrupá-los por afinidade, por família, para que não se sentissem sozinhos. E isso causou um desconcerto, pois acabaram ocupando lugares de outros passageiros. Foi um para pra acertar, olha, um jogo das cadeiras. A minha preocupação é que essa manobra poderia, como de fato aconteceu, atrasar o voo e eu tinha uma conexão muito rápida em Campinas, menos de 40 minutos pra descer dum avião e subir noutro. Se perdesse tempo... Tudo ajeitado, ainda sobrou lugar. O bichão virou o bico para o céu e voamos por 3  horas e meia até São Paulo. E nesse tempo todo não preguei o olho. Éraste! Não consigo dormir. De formigamento estranho nas pernas, ao incômodo do ouvido tapado, passando por uma dose cavalar de ansiedade, além da hora da broca, tudo me corta o barato de uma sonequinha.

Deu no que deu. Cheguei na biqueira pra pegar a conexão. Desembarquei e dei aquela velha corridinha. Alcancei o ônibus que levaria ao outro avião, já lotado. Fui me ajeitando, mas tinha uma moça atrás de mim se virando com uma sacolona. Foi aí que vi um cidadão japonês todo à vontade ocupando duas cadeiras com bagagem, naquela parte alta do ônibus. Olhei feio pra ele. Num instante ele se aviou. Abri caminho e a moça conseguiu se ajeitar com as tralhas dela. Tá vendo como é a internacionalização da deselegância, da falta de empatia. Fiquei na bronca com o cidadão japonês.

Entre Campinas e o Rio é rapidola e uma viagem beirando o Atlântico. Muito firme! Um contratempo, porém, e o avião ficou zanzando a 3.000 metros sem poder pousar. Uma garotinha faladeira, da poltrona ao lado, ligada no mapa do voo, ainda atiçou perguntando aos pais se  iríamos cair.

Caiu o pano, a pista foi liberada. O pouso no aeroporto Santos Dumont é algo entre delirantemente belo e docemente apavorante.

O Rio continua lindo, lá fora, porque eu cheguei e dei o desconto. Dormi o dia todo que o redentor me deu.